Na introdução deste livro, o autor confessa que não o escreveu para religiosos nem para descrentes: “Se tudo tiver corrido bem, este livro é para todos. Todos os que se interessem pelo fenómeno da fé e pela forma fascinante como contribuiu para fazer Portugal”. Santos e Milagres: uma história portuguesa de Deus, de Alexandre Borges (colaborador do Observador) procura mostrar como a religião foi importante na construção do país e quais as figuras ou momentos que mais contribuíram para esse processo.
Santo António e a Rainha Santa Isabel, São Torpes, São Vicente ou Santa Senhorinha. E, inevitavelmente, Nossa Senhora de Fátima, as aparições e os pastorinhos. Episódio incontornável na história recente de Portugal, entre políticas e peregrinos, das orações ao inquestionável valor turístico — ainda mais em ano de centenário. O excerto do livro que o Observador publica recorda os acontecimentos de 1917, as consequências imediatas e os efeitos a longo prazo.
“Francisco e Jacinta veriam muito pouco do que se passaria depois da última aparição. Na antevéspera do Natal de 1918, os irmãos adoecem, vítimas da gripe espanhola que assolou a Europa na sequência da guerra. Francisco vem a morrer a 4 de Abril, em casa; Jacinta resiste, mas nunca recupera. Em Julho, é internada no hospital de Ourém; em Fevereiro, já em estado grave, levam-na para o Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. É lá, cerca de duas semanas depois, que vem a falecer. Calcula-se que os prolongados jejuns e sacrifícios físicos auto-infligidos pelas crianças tenham contribuído decisivamente para o estado debilitado em que se encontravam à época da epidemia.
Lúcia ficava sozinha como única testemunha directa dos acontecimentos – de resto confirmando outra das profecias que atribuía à aparição. No entanto, o fenómeno de Fátima já não dependia dela ou da questão dos videntes em geral; tinha entrado, rápida e definitivamente, na devoção popular.
Durante os primeiros 20 anos, o povo não saberá mais sobre Fátima do que isto: Nossa Senhora apareceu e pediu que se rezasse o terço. Quanto muito: pediu que se rezasse o terço pela paz e para remissão dos pecadores. E, no entanto, isso bastará para que uma tremenda adesão popular se estabeleça desde o princípio… O fenómeno das peregrinações nunca foi determinado pela instituição oficial Igreja; foram as pessoas que, simplesmente, desde o início, decidiram caminhar até Fátima, peregrinar, adoptá-la como uma nova Santiago de Compostela ou Jerusalém. Em nenhuma das Memórias Lúcia refere que a senhora tivesse pedido peregrinações. Nunca falou em cumprimento de promessas, nunca exigiu pessoas de joelhos nem oferendas, romarias anuais ou sequer uma vez na vida. E, todavia, elas estabeleceram-se desde o princípio. Espontaneamente.
Nas duas últimas aparições, já não havia sequer azinheira. Tinha desaparecido, levada, folha a folha, ramo a ramo, pelos peregrinos. No local, é construída, logo em 1919, a Capelinha das Aparições original. É feita pela mão de um humilde pedreiro de nome Joaquim Barbeiro e financiada com os donativos populares que Lúcia referiu, certa vez, à aparição, à margem de qualquer autorização municipal. A primeira imagem da Virgem de Fátima, um elemento decisivo para todo o culto mariano posterior, é uma pequena estátua de 1,10 metros, de cedro do Brasil, oferecida por um devoto de Braga, em 1920; e a primeira missa realizada no local sucede em 1921 – tudo antes, muito antes, do reconhecimento oficial da Igreja do que ali algum dia se tivesse passado.
Nesse mesmo ano de 1921, as peregrinações e ajuntamentos populares tinham adquirido já dimensão tal que levam o Governo central a pronunciar-se e, pela voz do ministro do Interior, António Maria da Silva, a proibir toda e qualquer manifestação religiosa em Fátima. Só que, uma vez mais, a tentativa de condenação surtiu precisamente o efeito oposto ao pretendido: desencadeou uma reacção de resistência ainda mais evidente, com jornais católicos como O Dia a apelarem à desobediência civil – «Vamos lutar contra o Governo», escreve abertamente.
O ponto mais quente e, ao mesmo tempo, mais simbólico para o triunfo do culto popular acontece em 1922. A 6 de Março, um atentado bombista destrói parcialmente a Capelinha das Aparições. Os terroristas tinham colocado uma bomba em cada canto da pequena ermida, claramente com a intenção de a reduzir a pó, mas nem todos os explosivos detonaram, contribuindo ainda mais, no entendimento do povo, para a ideia de que alguém ou algo de sobrenatural protegia aquele lugar. Em pouco tempo, a capela estava completamente reconstruída – e, mais uma vez, devido a iniciativa popular exclusiva – e o culto ainda mais reforçado.
A 13 de Outubro de 1922, Fátima já tinha o seu órgão de informação próprio: o jornal Voz de Fátima, que se publica ininterruptamente desde então e que chegou a ter tiragens de 300 000 exemplares, ao nível dos maiores jornais nacionais da época. Na segunda metade da década de 20, as peregrinações de 13 de Maio e 13 de Outubro já reuniam, anualmente, multidões de 100 a 200 000 peregrinos. E a 13 de Maio de 1928, ainda sem o reconhecimento oficial da hierarquia católica, já o arcebispo de Évora benzia a primeira pedra da futura basílica.
Entretanto, desde 1918 que tinha sido restabelecida a diocese de Leiria, entregue, a partir de 1920, ao bispo Dom José Alves Correia da Silva. Dom José, que se manteria naquelas funções até à morte, em Dezembro de 1957, desempenharia um papel fundamental no modo como a mensagem de Fátima se haveria de materializar. É ele quem manda comprar os terrenos para salvaguardar a futura construção de um recinto e tratá-lo como algo sagrado e não o espaço de uma mera romaria popular. Em 1922, é também ele quem abre o processo canónico destinado a averiguar da validade das aparições; em 1927, preside pela primeira vez a uma cerimónia oficial na Cova da Iria; e, em 1930, pela carta pastoral A Divina Providência, autoriza finalmente o culto a Nossa Senhora de Fátima, dando as aparições como «dignas de crédito» e assumindo que o povo católico há muito havia «confirmado» a veracidade das mesmas.
O reconhecimento oficial tinha demorado 13 anos a chegar. Mais do triplo das aparições de Lourdes. Em 1931, o Episcopado Português consagra Portugal ao Imaculado Coração de Maria, no seguimento da mensagem de Fátima. Em 1932, os bispos portugueses reúnem-se, pela primeira vez, na Cova da Iria. Como um dia dirá o cardeal Cerejeira: «Não foi a Igreja que impôs Fátima, mas foi Fátima que se impôs à Igreja.» À Igreja, a Portugal, ao mundo.
A partir da Segunda República, a convivência entre o poder político e Fátima foi consideravelmente mais pacífica do que até então – mas não da forma simplista como se possa pensar. A oposição católica revelou-se fundamental para a mudança de regime; todavia, Salazar nunca foi, propriamente, um fiel devoto dos pastorinhos… Para o ditador, Fátima foi um instrumento útil à propaganda fascista da unidade nacional transcontinental – tal como qualquer outro dos «efes» da trilogia. Ao que se sabe, Salazar pouco ia à missa, detestava fado e nunca se lhe deu por qualquer espécie de simpatia futebolística, mas, ao contrário de Afonso Costa, conhecia o país que governava (e neste aparente detalhe está, sobretudo se tivermos presente que governou em ditadura e Costa em democracia, toda uma lição sobre política. Não será este, no entanto, o local para a aprofundar).
Em 1949, no Porto, dizia assim, na sessão inaugural da II Conferência da União Nacional:
Portugal nasceu à sombra da Igreja e a religião católica foi desde o começo elemento formativo da alma da Nação e traço dominante do carácter do povo português. Nas suas andanças pelo Mundo – a descobrir, a mercadejar, a propagar a fé – impôs-se sem hesitações a conclusão: português, logo católico.
O que lhe importava fica bem explícito noutro texto, este de Julho de 1953:
Só uma grande instituição não abandonou nunca a doutrinação do seu público próprio – foi a Igreja. (…) Há, decerto, larga margem de concordância entre os nossos princípios políticos e os grandes princípios morais que o cristianismo perfilha; nesse ponto nos entendemos favorecidos e tiramos vantagem da sua acção.
Nem «Fado, Futebol e Fátima» nem «Deus, Pátria e Família» diziam o que quer que fosse acerca das paixões pessoais do chefe de Governo; eram simplesmente sintoma da sua terrível inteligência. «A propaganda encontra-se na base de toda a actividade política», disse, em Outubro de 1933, na tomada de posse de António Ferro como director do Secretariado de Propaganda Nacional. «Politicamente, só existe o que se sabe que existe; politicamente, o que parece, é.» É o que dirá, de modo mais subtil, no célebre discurso comemorativo do décimo aniversário do Estado Novo:
Às almas dilaceradas pela dúvida procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever. Temos necessidade do absoluto.
Oficialmente, o regime tolera Fátima, mas demora a aproximar-se. Em 1929, o Presidente Carmona desloca-se à Cova da Iria, todavia, faz questão de deixar claro que está ali na condição de visitante, não na de peregrino. Salazar prefere procurar resposta às suas ansiedades nas cartomantes que consulta, semanalmente, por telefone. E o próprio cardeal Cerejeira só se há de converter a um fenómeno que, até ali, desprezou depois de Roma se começar a interessar por ele…
Pio XII, que há-de dar a canonização a João de Brito e recusá-la a Nuno Álvares Pereira, é o primeiro Papa a referir-se explicitamente a Fátima. Fá-lo no último dia de Outubro de 1942, de viva voz e em português, aos microfones da Rádio Vaticano. Não era um ano qualquer, mas o quarto da Segunda Guerra Mundial, um que havia amanhecido «mais sombrio ainda». Através da Emissora Nacional, os Portugueses ouvem o líder da Igreja Católica consagrar o mundo ao Imaculado Coração de Maria, tal como teria pedido a Lúcia, expressamente, Nossa Senhora de Fátima. Reportando-se à peregrinação do 13 de Maio daquele ano, a grande concentração em que se tinham assinalado os 25 anos das aparições, louva a «jornada heróica de sacrifício que, por frios e chuvas e enormes distâncias percorridas a pé, concentrou em Fátima, a orar, a agradecer, a desagravar, centenas de milhares de peregrinos». A Pio XII impressiona, sobretudo, a presença dos jovens. E deixa uma referência implícita à Rússia que, mais tarde, se compreenderá estar no eixo daquela que era a mensagem de Fátima:
Aos povos pelo erro ou pela discórdia separados, nomeadamente àqueles que Vos professam singular devoção, onde não havia casa que não ostentasse o vosso venerando ícone (hoje talvez escondido e reservado para melhores dias), dai-lhes a paz e reconduzi-os ao único redil de Cristo, sob o único e verdadeiro Pastor.
Pio XII abraçou Fátima e o seu carácter político como a mensagem da Igreja ao mundo para o trágico tempo da Segunda Guerra. Contudo, há, para além disso, um laço pessoal. O Sumo Pontífice sente que algo o liga a Fátima desde o princípio. Por coincidência, foi ordenado bispo precisamente no dia da primeira aparição da Cova da Iria: 13 de Maio de 1917. Muitos anos mais tarde, relatará ter assistido ele próprio a um «milagre do Sol», a 30 de Outubro de 1950, a partir dos jardins do Vaticano, e à repetição do fenómeno nos dois dias seguintes e ainda uma última vez uma semana mais tarde – e que, segundo ele, esta seria a confirmação enviada por Deus do dogma da Assunção do corpo e da alma de Maria ao céu. Ainda antes, a 8 de Maio desse mesmo ano, sentenciara claramente: «Já passou o tempo em que se podia duvidar de Fátima.»
O Estado português e a Igreja Católica tinham nesta altura, já o sabemos, restabelecido as boas relações. Em 1940, foi assinada a Concordata e, em Outubro desse mesmo ano, por ocasião da entrega das credenciais de Carneiro Pacheco como novo embaixador português junto da Santa Sé, o próprio Pio XII afirmara: «O Senhor deu à nação portuguesa um chefe de Governo que tem sabido conquistar não só o amor do seu povo, mas também o respeito e estima do mundo.»
Nem assim, porém, se derreteu o coração de Oliveira Salazar. A 13 de Maio de 1946, o primeiro ano depois da guerra, o cardeal Benedetto Masella volta a Portugal para, em representação do Papa, coroar a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Era o momento mais solene da história do culto até então. A coroa, que completaria a imagem tal como hoje a conhecemos, pesava 1,20 quilos e tinha 313 pérolas e 2679 pedras preciosas. Fora feita com os donativos das mulheres portuguesas em agradecimento pelo facto de Portugal não ter entrado na Segunda Guerra Mundial, reforçando o carisma de Nossa Senhora de Fátima como símbolo da paz. Todavia, não deixava de ser também a referência directa a algo que, até prova em contrário, dependera apenas e só de uma decisão do chefe do Governo português. A 8 de Maio, dias antes da grande ocasião, Cerejeira escreve ao amigo: «António, imploro-te que vás como peregrino a Fátima» (bem se vê como o cardeal se tinha, final e arrebatadamente rendido ao mistério dos pastorinhos…). E acrescentava, tentando tocar no ponto fraco do antigo colega de Coimbra: «O milagre de Fátima está à vista. Tu estás ligado a ele: estavas no pensamento de Deus quando a Virgem Santíssima preparava a nossa salvação.» Porém, nem a vaidade chegou para dobrar a teimosia do Presidente do Conselho. Permaneceria, como sabia fazer melhor do que ninguém, orgulhosamente só…
A partir de 1947, a imagem de Nossa Senhora de Fátima começa a peregrinar pelo mundo; a 13 de Maio, inicia uma viagem pelos países europeus destruídos pela guerra. Cotinelli Telmo desenha a praça do santuário com um sentido evidente de grandiosidade e deixando um dos lados aberto ao infinito e, portanto, ao mundo. Fátima, que, quando começara, parecia apenas a fantasia de três crianças analfabetas, já não era sequer de Portugal; era de toda a humanidade.
Depois de Pio XII, nenhum Papa deixaria a pequena Cova da Iria de fora dos seus itinerários pelo globo. Em 1956, o cardeal Roncalli, patriarca de Veneza e futuro Papa João XXIII, vem a Fátima, presidindo à peregrinação internacional. Em 1967, e já depois de ter confiado a humanidade ao Imaculado Coração de Maria e concedido a Rosa de Ouro ao santuário, Paulo VI torna-se o primeiro Papa a visitar Fátima. O primeiro a visitar Portugal.
Os Portugueses nunca esquecerão esse 13 de Maio… Ainda que apenas por breves horas, o líder mundial dos católicos pisava solo nacional. Quantos séculos tinham passado para que se cumprisse, finalmente, esse destino. Quantos santos, quantos mártires, quantas preces, promessas, terços, sacrifícios e orações. Quantos momentos dramáticos da História – e só agora, por causa das visões da pastorinha sobre a azinheira, o herdeiro do trono de Pedro vinha caminhar entre os Portugueses.
Era o quinquagésimo aniversário das aparições. Parecia mentira. Tinha passado já meio século. O que fora preciso para aqui chegar… Pela televisão, que existe há dez anos, o povo vê o Papa e vê, muito dele pela primeira vez, a célebre Lúcia. A vidente Lúcia. A pequena Lúcia que é então uma mulher de 60 anos, de quem tanto se fala e falou e que esteve desaparecida, em clausura, quase todo este tempo… Porque é ela quem está no palanque das cerimónias. Não é Salazar. Onde estaria Salazar? Diz Paulo VI na homília, perante uma impressionante multidão de um milhão de pessoas:
Tão grande é o nosso desejo de honrar a Santíssima Virgem Maria, Mãe de Cristo e, por isso, Mãe de Deus e Mãe nossa, tão grande é a nossa confiança na sua benevolência para com a Santa Igreja e para com a nossa missão apostólica, tão grande é a nossa necessidade da sua intercessão junto de Cristo, seu divino Filho, que viemos, peregrino humilde e confiante, a este santuário bendito.
O Papa, este Papa, é persona non grata para Salazar, que o considera «anti-português» desde que se deu à indelicadeza de visitar Bombaim, em 1964, e atribuir ao Presidente indiano a mais alta condecoração da Santa Sé a não-cristãos. Isto apenas três anos volvidos sobre o ataque às colónias de Goa, Damão e Diu que fizera colapsar o Estado Português da Índia. Pela sua vontade, não perderia um minuto com a vinda de Paulo VI, que é tudo menos uma visita de Estado. O convite não partiu do Governo nem do Presidente, mas do bispo de Leiria – e o próprio Paulo VI fez questão de não parar sequer em Lisboa. Aterrou em Monte Real, seguiu directamente para Fátima e regressa a Roma no mesmo dia.
Não fora o embaixador Leite de Faria e o ministro dos Negócios Estrangeiros Alberto Franco Nogueira, fazendo ver ao Presidente do Conselho que tinha muito a perder se ignorasse a primeira visita de um Papa a Portugal, e nessa tarde, certamente, Salazar teria sido um daqueles poucos pacatos cidadãos que, por pouco, não deixaram deserta Lisboa. Ainda assim, ao chegar à Cova da Iria e avistar, ao longe, a pequena silhueta de Lúcia ao lado da magnética presença papal, ainda voltou a entrar no carro e a bater com a porta. Mais uma vez, porém, valeu o tacto dos dois diplomatas… A bem da nação, o ditador acedeu à conveniência da ideia de um encontro de não mais de dez minutos com Paulo VI. No final da cimeira (que, na verdade, se prolongou por 50 minutos), para surpresa de Leite de Faria e Franco Nogueira, vinha sorridente… O Papa tinha arriscado que um homem inteligente como Salazar não resistiria à fineza de uma ironia – e acertou em cheio. O ditador dirigira-se ao Sumo Pontífice tratando-o por «Sua Santidade» e Paulo VI retorquira chamando-lhe «Sua Eternidade»…
E foi essa a história da única vez que Salazar foi a Fátima. Mal sabia Paulo VI que o velho governante, então há 39 anos no poder, só resistiria mais um… Em 1968, uma queda inesperada deixá-lo-ia incapacitado para governar; em 1970, vem a morte. Entre uma coisa e outra, nova ironia: uma multidão de 10 000 pessoas vai reunir-se em Fátima para rezar-lhe pelas melhoras…
Tinha razão, Salazar, mesmo contra vontade: Fátima já se tinha tornado no que nunca mais deixaria de ser: o coração religioso de Portugal.
Lúcia é a grande narradora da história de Fátima; alguns dirão mesmo: a única. E, no entanto, é por demais notório como essa história ganhou vida própria e a dispensou imediatamente após a última aparição. Não precisou dela durante aqueles 50 anos, de Outubro de 1917 a Maio de 1967, data da primeira visita papal. Dos terrenos lamacentos do dia do «milagre do Sol» ao rico santuário, com um milhão de pessoas em festa, à espera de Paulo VI. Quão estranho deve ter sido para Lúcia estar ali naquele palanque, olhando o que fora outrora a paupérrima Cova da Iria, terra de seus pais? E, no entanto, quem reveja hoje essas imagens notará: Lúcia não parece minimamente surpreendida.
Onde esteve ela durante aqueles 50 anos? Que lhe aconteceu? Lúcia, para uns uma personagem delirante, para outros a escolhida por Deus para Sua intermediária na transmissão da grande mensagem do céu aos homens do século xx, viveu toda a sua longa vida em função desses seis cruciantes meses de 1917.
Nos primeiros anos após as aparições, foi protegida pelo bispo de Leiria, Dom José, numa sua propriedade. Porém, o constante assédio dos peregrinos, que queriam ver, falar ou, simplesmente, tocar a vidente, tornava impossível à jovem continuar a viver no século. Em Junho de 1921, entrou para o Colégio das Irmãs Doroteias de Vilar, no Porto. Rumores antigos dizem que causava distúrbios, que a madre superiora a chamava de bicho-do-mato e que acabou, fatalmente, mandada embora. Verdadeiros ou falsos, quatro anos depois Lúcia parte para Tui, Espanha. Em Outubro, entra para a Casa da Congregação de Santa Doroteia, em Pontevedra. Pouco depois, começa uma nova série de aparições. A 10 de Dezembro de 1925, Nossa Senhora ter-lhe-á aparecido na cela para pedir a devoção dos cinco primeiros sábados. A 12 de Fevereiro de 1926 e a 17 de Dezembro de 1927, duas novas aparições, estas do Menino Jesus, apenas para reiterar o mesmo pedido. A 13 de Junho de 1929, já depois de ter professado votos temporários, em Tui, e tomado o hábito com o nome de Maria Lúcia das Dores, tem a visão da Santíssima Trindade e do Imaculado Coração de Maria cercado de Espinhos, a que o Papa, de acordo com todos os bispos do mundo, deveria consagrar a Rússia.
Por extraordinário que pareça, nesta altura ainda ninguém sabia que mais teria dito Nossa Senhora nas seis aparições de Fátima, além de pedir que se rezasse pela paz – aquela que, aparentemente, chegara no ano seguinte com o fim da Primeira Guerra. Já iam todos os anos centenas de milhares de peregrinos a Fátima – e, no entanto, nenhum sabia mais nada do que isto.
Até que chegámos a 1935.
Em Setembro daquele ano, os restos mortais de Jacinta foram trasladados do cemitério de Ourém para o de Fátima. Quando o caixão foi aberto, constatou-se, em espanto, que o rosto da pequena pastorinha permanecia incorrupto. Era mais um elemento para juntar ao enorme misticismo que já rodeava tudo quanto a Fátima dizia respeito, mas não o mais importante. O mais importante foi que, na ocasião, o bispo de Leiria entendeu que Lúcia gostaria de tomar conhecimento do fenómeno e tratou de lhe remeter pelo correio algumas fotografias. Na resposta, Lúcia escreve a Dom José agradecida e saudosa, deixando algumas linhas onde recorda pormenores da maneira de ser de Jacinta e da vivência com ela. Apercebendo-se do interesse histórico da questão, Dom José pediu-lhe então que escrevesse tudo quanto recordava acerca da prima, antes que o tempo levasse todas as memórias. Lúcia acedeu e, em Dezembro, estava concluído o texto que ficaria conhecido como Primeira Memória da Irmã Lúcia e do qual constavam factos até então totalmente desconhecidos, como os relatos das visões da guerra e aparições particulares que só Jacinta teria tido.
A questão estava definitivamente levantada dentro da consciência de Dom José: a mensagem de Fátima, a original, pelo menos, permanecia desconhecida. Sabíamos todos quase nada acerca do que se passara. Era fundamental que a única testemunha sobrevivente dos acontecimentos os registasse. O bispo faz então novo pedido a Lúcia, um pedido simples, mas ambicioso: que escrevesse toda a história da sua vida e das aparições. No silêncio da cela, em Espanha, Lúcia redige, assim, pela primeira vez, um relato na primeira pessoa dos acontecimentos que tinham ocorrido em Fátima havia já 20 anos… Datado de 7 a 21 de Novembro de 1937, chega então à mão de Dom José o manuscrito, que ficaria conhecido como Segunda Memória da Irmã Lúcia. É aqui, por exemplo, que a religiosa revela pela primeira vez que, antes das aparições de Nossa Senhora, teriam acontecido já três outras entre a Primavera e o Outono de 1916: as do Anjo de Portugal.
A história parecia terminar por aqui – e, no entanto, o melhor ainda estava para vir.
Em carta datada de 26 de Julho de 1941, Dom José explica a Lúcia que está a ser preparado um livro acerca de Jacinta, da autoria do doutor Galamba de Oliveira, e que seria interessante se ela pudesse fazer o exercício de pensar se haveria alguma recordação importante da prima que ainda não tivesse partilhado e que se pudesse incluir na obra. Por razões que só ela poderia explicar, Lúcia vê nesta circunstância o momento adequado para começar a desvendar, por fim, o segredo que Nossa Senhora teria revelado na aparição-chave, a terceira. Em documento datado de 31 de Agosto de 1941 e que viria a ser publicado como Terceira Memória da Irmã Lúcia, a vidente conta então, pela primeira vez, o que ela, Francisco e Jacinta viram acontecer depois daquele momento em que Nossa Senhora teria aberto as mãos, em Julho de 1917:
O reflexo de luz que delas expedia pareceu penetrar a terra e mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados neste fogo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas saíam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero, que horrorizavam e faziam estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento e graças à nossa boa Mãe do Céu, que antes nos tinha prevenido com a promessa de nos levar para o Céu! Se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.
No documento, Lúcia deixa bem explícito que o segredo tem três partes e que revelaria apenas duas. Esta era a primeira: a visão do Inferno. A segunda foi revelada logo a seguir: o Imaculado Coração de Maria.
Em seguida, levantámos os olhos para Nossa Senhora que nos disse com bondade e tristeza: «Vistes o Inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser, salvar-se- -ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora dos primeiros sábados. Se atenderem aos meus pedidos, a Rússia irá converter-se e terão paz; senão, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.
Em Leiria, Dom José é completamente surpreendido com a revelação destas visões. Percebendo que há pontas soltas entre o que já foi contado e, provavelmente, ainda muito mais por contar, insta Lúcia a escrever, por fim e de uma vez por todas, com todo o pormenor, tudo o que aconteceu nas aparições de Nossa Senhora, nas do anjo e ainda tudo quanto sabe sobre Jacinta e Francisco. A 8 de Dezembro seguinte, Lúcia envia então mais um manuscrito, garantindo que dele constava tudo quanto sabia e que, dali em diante, apenas conservava para si a última parte do segredo. No documento, publicado como Quarta Memória da Irmã Lúcia, encontravam-se descrições mais pormenorizadas das aparições do anjo e a redacção definitiva das orações que teria ensinado aos pastorinhos. A vidente contava ainda que, já depois da morte dos primos, tivera uma primeira aparição particular de Nossa Senhora, e que fora essa a sétima vinda prometida logo na aparição de 13 de Maio. Acontecera em 1921, quando foi a Cova da Iria despedir-se do local antes de partir para o colégio do Porto, mas que, por se ter tratado de uma mensagem pessoal, não revelaria o conteúdo. Fazia ainda uma adenda ao texto da segunda parte do segredo para acrescentar esta frase: «Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé.»
Como escreverá, muitos anos mais tarde, Joseph Ratzinger, o segredo de Fátima deveria ser interpretado de acordo com uma «visão profética». Instado a pronunciar-se sobre o tema pelo Papa João Paulo II, o futuro Bento XVI, então na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, dirá que essa visão era «comparável às da Sagrada Escritura».
Numa linguagem encriptada, típica dos místicos, a primeira parte apresentava uma visão do Inferno; a segunda, uma hipótese de perdão, de remissão dos pecados das almas condenadas – mas cheia de alertas. Podendo ser lidas como as duas metades de uma mensagem intemporal, tinham demasiadas referências a ancorá-las ao momento que o mundo então vivia para serem ignoradas. As almas que ardem no fogo da primeira parte parecem vir da Primeira Guerra; os erros que não fossem emendados a tempo conduzir-nos-iam a outra, ainda pior, que encontra correspondência óbvia na Segunda Guerra. Num mundo que deixou de acreditar, a Rússia servia de metáfora para todos os regimes que não admitiam sequer a existência de Deus. Em esclarecimentos posteriores, Lúcia defenderia ainda o acerto da profecia que apontava o começo da guerra para o pontificado de Pio XI, considerando a anexação da Áustria, a 12 de Março de 1938, como o verdadeiro início do conflito. A «noite alumiada», que serviria de prenúncio ao início do castigo divino, Lúcia identifica-a com a grande aurora boreal que se observou, na Europa, na noite de 25 para 26 de Janeiro desse mesmo ano de 38.
Em criança, Lúcia não tinha como compreender muita desta informação. À época, viria a confessar, não sabia sequer o que era a Rússia – julgava tratar-se de uma senhora que estivesse doente. Mas, depois, porque esperou tanto? Teria medo das consequências de uma mensagem que se revelava carregada de implicações políticas? Porque foi que Lúcia esperou até depois dos acontecimentos para revelar os segredos que os previam? E porque seria preciso esperar ainda muito mais pela revelação da terceira e última parte?
A 3 de Janeiro de 1944, depois de muita insistência de Dom José, Lúcia transcreve, por fim, o «terceiro segredo». Deixando bem claro que o faz apenas por vontade do bispo de Leiria, escreve o texto em papel de carta, que coloca no interior de um envelope lacrado, que, por sua vez, põe dentro de outro envelope lacrado. Num terceiro envelope, de transporte, que deixa aberto, escreve: «Ler apenas depois de 1960.» Ao recebê-lo, Dom José não teve coragem de contrariar a ordem, redigida na inconfundível caligrafia da vidente. Durante os 13 anos seguintes, o segredo assim permaneceria – secreto – na cabeça de Lúcia e em papel, em parte incerta de Leiria, guardado com a vida de Dom José.
A 17 de Maio de 1946, Lúcia regressa a Portugal, mas poucos terão o contacto com ela. Aparece em público algumas vezes, como na circunstância em que efectua o reconhecimento dos locais das aparições do anjo, mas prepara-se para desaparecer novamente – e, desta vez, de modo ainda mais drástico. A 25 de Março de 1948, entra para a clausura do Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra; a 31 de Maio do ano seguinte, professa como carmelita, tomando o nome de Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado. Tinha apenas 31 anos e viveria até aos 97 – mas, dali até ao final da vida, muito poucas seriam as aparições públicas e criteriosamente seleccionados aqueles que aceitava na sua presença.
Em 1957, sentindo que o seu tempo está quase a chegar ao fim, Dom José pressente que tem de passar o testemunho de guardião do segredo. Coloca dentro de um quarto envelope o envelope que tem dentro um envelope que tem dentro um envelope, escreve por fora que aquele sobrescrito só deverá ser aberto após a sua morte e envia-o para Roma, onde dá entrada a 4 de Abril. Estava certo, Dom José – oito meses depois, vê pela última vez as cores deste mundo.
A 17 de Agosto de 1959, o Papa João XXIII decide, finalmente, abrir a célebre matriosca de envelopes… No seu diário, assinala a audiência em que o padre Pierre Paul Philippe, comissário do Santo Ofício, lhe entrega o documento, contendo a terceira parte do segredo de Fátima. O Papa lê-o, mas decide não o revelar e manda-o selar outra vez. O mesmo faz o sucessor, Paulo VI, a 27 de Março de 65 – dois anos antes, pois, da sua vinda a Fátima e do encontro com Lúcia. Lê o texto em conjunto com o secretário de Estado adjunto do Vaticano, o futuro cardeal Angelo dell’Acqua, mas, apesar de já terem passado cinco anos sobre a data estipulada por Lúcia para a revelação, entende ainda não ser propício e também ele volta a mandar selar o sobrescrito.
O problema é que tanto cuidado começava a provocar medo… Os rumores catastrofistas tornam-se habituais à boca pequena ou pela imprensa sensacionalista mundial. De que tinham medo os papas? Porque não revelavam o conteúdo do segredo? Guerras nucleares, impostores disfarçados de papas que iriam usurpar o trono de Pedro, ou a chegada do fim dos tempos tornam-se então aperitivos frequentes servidos por alegados dissidentes do Vaticano e especialistas em teorias da conspiração. Ainda durante a década de 60, Lúcia vê-se forçada a interromper o seu retiro para vir a público desmentir uma notícia que circula insistentemente por Itália e que dá conta de que o terceiro segredo profetiza uma guerra que há-de destruir 95 por cento do planeta.
Já o Papa seguinte não teria ocasião de tomar contacto com a verdadeira profecia. Vítima de morte súbita apenas 33 dias depois da eleição no conclave, João Paulo I teve também ele, ainda assim, a sua história pessoal com Fátima… Pouco mais de um ano antes, em Julho de 1977, ainda com o nome de Albino Luciani e então patriarca de Veneza, estivera na Cova da Iria em peregrinação. No dia seguinte, a seu pedido, celebrou missa no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, e privou, durante alguns minutos, com Lúcia. No entanto, seria o seu sucessor e não ele o protagonista do último acto desta história que, durante décadas, apaixonou crentes e não crentes…
Em 1981, precisamente a 13 de Maio, João Paulo II é vítima de um atentado em plena Praça de São Pedro. Duas balas disparadas à queima-roupa pelo terrorista turco Ali Agca deixam o Papa entre a vida e a morte: uma destrói-lhe parte do intestino, a outra passa a milímetros da aorta. Operado de urgência, o líder católico há-de recuperar – dir-se-á – por milagre: um milagre que o próprio suspeita ter de ser atribuído a Nossa Senhora de Fátima… Ainda internado, renova a consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria. Assim que recupera e regressa à Basílica de São Pedro, pede para ler o manuscrito de Lúcia. A 18 de Julho, o cardeal Franjo Seper, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, entrega-lhe dois envelopes: um branco, que contém o texto original de Lúcia, e um laranja, com a tradução em italiano. Dizem os mais próximos que a leitura afecta muitíssimo o Sumo Pontífice. Entendendo ainda não ser chegado o momento de o revelar ao mundo, João Paulo II vai, no entanto, deixando pistas sobre o segredo e atribuindo à intervenção da «mão materna» da Senhora de Fátima a razão da sua salvação.
No primeiro aniversário do atentado, o Papa vem a Fátima em agradecimento. Será só a primeira das três visitas oficiais que há-de fazer ao longo do pontificado e o início de uma relação de grande proximidade com o lugar, a mensagem e os intervenientes de Fátima – Lúcia, em particular. Na ocasião, a vidente entrega uma carta onde oferece ao Papa uma orientação pessoal para a interpretação da terceira parte da profecia.
A 25 de Março de 1984, em cumprimento do pedido que, segundo Lúcia, Nossa Senhora teria feito, consagra o mundo ao Imaculado Coração de Maria, em união com os bispos de todo o mundo e diante da imagem número um de Nossa Senhora de Fátima, que mandou vir especialmente ao Vaticano. Na circunstância, entrega ao bispo de Leiria-Fátima, Alberto Cosme do Amaral, uma das balas do atentado de 1981 retiradas do seu corpo. Em 1989, o projéctil é colocado na coroa da imagem de Nossa Senhora de Fátima, depois de os responsáveis pelo santuário terem descoberto nela um orifício precisamente do mesmo diâmetro e encontrando nisso novo sinal divino.
Em 1991, décimo aniversário do atentado, João Paulo II vem pela segunda vez a Fátima. A seu pedido, Lúcia desloca-se também ali e encontram-se durante 12 breves minutos. Antes do final do ano, Mikhail Gorbachev anuncia o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Dois anos antes, já o Muro de Berlim caíra, colocando um ponto final na Guerra Fria e na esquizofrenia que dividiu o mundo entre o Ocidente de matriz liberal e capitalista e o Leste comunista. Em Outubro de 1992, aconteceria assim o que durante décadas parecera impensável: a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima chega a Moscovo e é exposta para culto dos fiéis em plena Praça Vermelha.
Até que, por fim, veio o ano 2000 e o Papa sentiu que era chegado o momento de fechar o círculo.
A 13 de Maio, João Paulo II, já muito debilitado, vem pela terceira e última vez a Fátima para beatificar os pastorinhos Francisco e Jacinta Marto. Jacinta, que morrera com apenas nove anos, tornava-se assim na beata não-mártir mais jovem da história. Porém, havia algo mais guardado para aquele dia: a revelação da terceira parte do segredo…
É curioso notar como Lúcia, essa mulher de baixa estatura que viveu a maior parte da vida em silêncio e retiro, uma humilde irmã carmelita, foi, na verdade, uma figura tão poderosa… Durante décadas, falou directamente a bispos, cardeais e papas. Escrevia-lhes, dizia-lhes que era preciso consagrar o mundo a Maria, ou levar a imagem de Fátima para Roma, ou manter secreto o segredo – e todos respeitaram a sua vontade, os seus tempos, a sua ordem. E uma vez mais, mesmo neste momento final, João Paulo II não avançou sem lhe dar conhecimento…
Numa carta pessoal, datada de 19 de Abril daquele ano de 2000, o Papa pede a Lúcia um encontro com um seu enviado especial para discutirem o segredo. Nove dias depois, o cardeal Tarcisio Bertone e Serafim de Sousa Ferreira e Silva, então respectivamente secretário da Congregação para a Doutrina da Fé e bispo de Leiria-Fátima, reúnem-se com Lúcia, no Carmelo de Santa Teresa, para ouvirem, da boca da própria, a interpretação que faz da terceira parte. A vidente subscreve a leitura de João Paulo II: também para Lúcia, é ele o «bispo vestido de branco» referido por Nossa Senhora.
Ao contrário do que se dissera durante 43 anos, desde o dia em que chegara ao Vaticano o envelope, com três outros envelopes dentro enviado pelo bispo Dom José, até àquele, o segredo de Fátima não anunciava o fim do mundo nem uma guerra nuclear nem usurpações na Basílica de São Pedro. Parecia antes descrever o atentado de que o Papa João Paulo II fora alvo, o ataque ao líder máximo dos católicos, no contexto de uma mensagem global, a de Fátima, que alertava para o sofrimento das vítimas da fé, perseguidas pelos regimes políticos ateus.
À entrada do terceiro milénio e talvez tendo em conta que já não lhe restaria a ele ou a Lúcia muito tempo de vida, João Paulo II, ele próprio uma figura-chave na queda do bloco comunista e na criação de um diálogo entre as religiões, entendeu que tinha chegado a hora de partilhar o que sabiam com toda a humanidade. Perante nova multidão a perder de vista e no local onde tudo começara 83 anos antes, o cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano, revelou, então, ao mundo o «terceiro segredo de Fátima»:
Então vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo na mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro. O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n’uma luz imensa que é Deus: «algo semelhante a como se vêem as pessoas num espelho quando lhe passam por diante» um Bispo vestido de Branco «tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre». Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subiram uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fora de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, neles recolhiam o sangue dos Mártires e com ele regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Ainda a 8 de Outubro daquele ano, a imagem de Nossa Senhora de Fátima seguiria mais uma vez viagem para o Vaticano. Diante de 1500 bispos de todo o mundo, João Paulo II consagrava o novo milénio ao Imaculado Coração de Maria.
A irmã Lúcia morreu a 13 de Fevereiro de 2005, no Carmelo de Santa Teresa, aos 97 anos. Doente, João Paulo II far-se-ia representar no funeral pelo cardeal Tarcisio Bertone. A 2 de Abril, cerca de mês e meio depois, veio a hora do Papa: passados muitos anos de sofrimento, João Paulo II «voltou», disse então Joaquín Navarro-Valls, director da sala de imprensa da Santa Sé, «para a casa do pai». Em 2008, o cardeal Dom José Saraiva Martins, prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, revelou que o Papa Bento XVI autorizara a abreviação do prazo canónico para a abertura do processo de beatificação de Lúcia. Em 2013, num processo também excepcionalmente rápido, o Papa Francisco declarou santo João Paulo II.
Fátima, com a sua enorme carga de religiosidade popular, impôs-se a Portugal, ao mundo e à própria Igreja oficial. Independentemente do que cada um possa pensar acerca dos acontecimentos originais, o fenómeno é indiscutível.
Descrita como a grande mensagem católica para o século xx, senão mesmo como o maior texto ditado pelo céu desde os Evangelhos, o impacto de Fátima não terminou, visivelmente, com a chegada do século xxi nem com a revelação da totalidade do segredo. Foi, aliás, o que disse Bento XVI em 2010, em visita ao santuário: que se iludia quem pensasse que a missão profética de Fátima estava terminada.
Fátima não é dogma de fé. Muitos católicos não acreditam em Fátima – e muitos não católicos acreditam em Fátima. Actualmente, 12 imagens de Nossa Senhora peregrinam pelo mundo, chegando a fazer 85 000 quilómetros de viagens por ano. Visitam o santuário todos os anos cinco milhões de peregrinos, oriundos de toda a parte. Católicos e de outras confissões. Crentes e ateus. Só cada um deles sabe o que o traz ali. Que verdade é essa que cada um estabelece com aquele lugar, com aquela imagem e com os significados que deles se desprendem.
Foi, na verdade, sempre assim. Mais importante do que o segredo e os pormenores da mensagem que Lúcia só começaria a revelar, e pouco a pouco, muitos anos depois, Fátima viveu e cresceu das pessoas. Daquilo que elas ali encontravam, muito mais do que do que lá acontecera. Mais do que as aparições, Fátima são os crentes. Mais do que os pastorinhos, Fátima são os peregrinos. O apoio, o conforto, a segurança, a força, a fé, a esperança que ali encontram. Por isso, sobreviveu à perseguição da Primeira República, à tentativa de instrumentalização do Estado Novo, aos excessos revolucionários de 1974-75 e até ao lento processo de laicização da sociedade.
Fátima é o fim da História, o fechar do círculo. A resistência do povo contra as elites políticas. Aquilo em que se acredita a determinar aquilo que se é. A fé, independentemente de tudo – até da razão. O que somos, independentemente do que nos dizem para ser. A súmula, enfim, de muitas coisas que os Portugueses são desde o tempo em que ainda nem havia Portugal.”