Carles Puigdemont, Oriol Junqueras, Carme Forcadell e Anna Gabriel. Sem a intervenção destes quatro políticos catalães não teria sido possível aprovar a declaração de independência no parlamento catalão, um ato que o Governo de Mariano Rajoy viu como justificação suficiente para destituir o governo regional e dissolver o parlamento. Quatro pessoas que partiram de contextos diferentes para chegarem a um objetivo comum: a criação de um novo Estado na Europa.
A realidade não se afigura, porém, tão simples quanto os quatro poderiam desejar. Após o desafio catalanista a Madrid, os próximos tempos deverão ser marcados pela atuação da justiça espanhola. Esta segunda-feira, o procurador-geral espanhol apresentou uma queixa que imputa aos “principais políticos da Generalitat” os crimes de rebelião, sedição e desvio de fundos. Cada um à sua maneira, arriscam penas de prisão que podem chegar aos 30 anos de prisão.
Até agora, nenhum deles deu a entender que vai abandonar a causa independentista. Algo que, como as próximas linhas explicam, sempre fez parte das suas vidas.
Carles Puigdemont, o filho do pasteleiro que tentou criar um país
É o autor moral do referendo de 1 de outubro e o responsável máximo pela declaração unilateral da independência da Catalunha, efetivada a 27 de outubro. Carles Puigdemont assumiu a presidência do governo regional da Catalunha em janeiro de 2016, depois de uma saída de cena in extremis do seu antecessor, Artur Mas, que não colhia apoio entre a maioria necessária ao independentismo.
No ato da sua tomada de posse, era-lhe exigido por decreto real que prometesse “cumprir fielmente as obrigações do cargo com lealdade ao Rei, zelar e fazer zelar a Constituição, o Estatuto da Catalunha e as instituições nacionais da Catalunha”. Porém, imitando aquilo que já tinha sido feito por Artur Mas, prometeu antes “cumprir fielmente a vontade do povo da Catalunha e dos seus representantes no parlamento”. Por “parlamento”, entenda-se o regional da Catalunha, claro. E por “vontade”, entenda-se um referendo à independência catalã — e, possivelmente, a declaração da Catalunha como uma república livre e soberana.
Foi precisamente isso que foi acontecendo, aos poucos. A 1 de outubro, depois de um dia igualmente marcado pela ida às urnas em grande parte da Catalunha e pela repressão policial que a tentou impedir, Carles Puigdemont fez um discurso onde dizia: “Ganhámos o direito de ser um Estado independente que é constituído sob a forma de uma república”.
As semanas que se seguiram foram marcadas pelo crescendo catalanista.
A 11 de outubro, Carles Puigdemont confundiu meio mundo quando declarou a independência da Catalunha e logo a suspendeu. Porém, por mais confuso que o anúncio possa ter parecido, o Governo de Mariano Rajoy não teve dúvidas e iniciou o processo para aplicar o Artigo 155 da Constituição, que prevê a retirada de autonomia de uma região cujo governo incumpra a Constituição.
Perante a ameaça de Madrid, Carles Puigdemont hesitou. No dia 26 de outubro, o seu governo esteve por um fio quando começou a ser noticiado que estaria disposto a aceitar a realização de eleições regionais antecipadas e a abrir mão de uma declaração unilateral da independência — tudo isto para não ver o Artigo 155 a ser aplicado. Era uma capitulação em quase toda a linha. A Esquerda Republicana Catalã (ERC), o segundo maior partido da oposição, ameaçou bater com a porta. Mas não foi preciso. Com o avançar das horas, Madrid garantiu-lhe que o Artigo 155 era para avançar. Carles Puigdemont, queixando-se de não lhe terem sido dadas “garantias”, passou para as mãos do parlamento a decisão de tornar, ou não, a Catalunha independente.
Era uma decisão anunciada. Com a minoria de deputados unionistas a abandonar a sala, os parlamentares independentistas depositaram o seu voto secreto numa urna e, entre eles, deram início a um novo país.
Esse era, há muito tempo, o desejo de Carles Puigdemont. Nascido numa família de pasteleiros, Puigdi, a alcunha pela qual é conhecido, entrou no jornalismo e na política quase em simultâneo. Aos 16 anos começou a escrever para o Los Tiempos (atual Diari de Girona) e logo aos 17 anos fez-se militante da Convergência Democrática Catalã (CDC) e co-fundou a Juventude Nacionalista da Catalunha. Na universidade, estudou Filologia Catalã, mas interrompeu os estudos para trabalhar no jornal El Punt (atual El Punt Avui), onde chegou a ser chefe de redação. Como jornalista, continuou a nutrir um fascínio pela causa independentista. “Eu podia fazer um comentário sobre uma mulher que acabava de passar e Puigdi respondia-me com a independência”, recordou ao La Vanguardia o jornalista Albert Gimeno, antigo colega de “Puigdi”.
Foi o fim de uma relação amorosa de cinco anos que o levou a sair cada vez mais do caminho do jornalismo e aproximar-se a passos largos para a política. Quando terminou a relação com a namorada, em 1999, tirou um ano sabático e visitou várias regiões onde o sentimento independentista é forte: Tirol do Sul (Itália) e Sardenha (Itália), Flandres (Bélgica), Occitânia e Córsega (França).
Depois de fundar dois projetos jornalísticos — a Agência Catalã de Notícias e a revista Catalonia Today — entregou-se de corpo e alma à política. Em 2006, foi convidado pela Convergência e União (CiU), a coligação a que se juntara o CDC, para concorrer à câmara de Girona. Perdeu a autarquia, mas tornou-se deputado no parlamento regional. Porém, em 2011, tornou a tentar — e dessa vez venceu, pondo fim ao domínio socialista naquela cidade e tornando-se no seu primeiro alcaide independentista.
O salto para a liderança do governo regional deu-se, enfim, em 2016. O independentista Artur Mas tinha vencido as eleições regionais de 27 de setembro de 2015, mas não conseguia conquistar o apoio de todos os partidos catalanistas. Apesar de ter do seu lado o Juntos Pelo Sim, a distribuição de mandatos tornou claro que precisaria do apoio da CUP, anticapitalista e de extrema-esquerda. No fim, Artur Mas deu um passo ao lado para que Carles Puigdemont desse um em frente. Quando foi apresentado aos partidários da CUP, foi aceite. Com uma missão: levar avante um referendo à independência. A promessa foi feita em setembro de 2016: “Ou referendo, ou referendo”. Cumpriu-a a 1 de outubro de 2017.
Agora, Carles Puigdemont pode ter a liberdade em risco. Esta segunda-feira, o Procurador-Geral apresentou formalmente queixa à Audiencia Nacional contra os “principais políticos da Generalitat da Catalunha”, imputando-lhes os crimes de rebelião, sedição e desvio de fundos.
As declarações do procurador-geral não apanharam Carles Puigdemont. Na véspera, foi de carro até Marselha, juntamente com quatro ex-conselheiros do seu governo regional, e depois apanhou um avião até Bruxelas. A viagem foi feita um dia depois de o ministro da Imigração e Asilo da Bélgica, Theo Francken, ter dito que “os catalães que se sintam ameaçados podem pedir asilo na Bélgica”. Já na segunda-feira, o primeiro-ministro belga, Charles Michel, disse que o asilo de Carles Puigdemont “não está de todo na ordem do dia”.
Já na terça-feira, disse que não estava na Bélgica para pedir asilo mas sim para continuar a trabalhar como “presidente de governo” em ” “liberdade e segurança”. “A Catalunha é um problema europeu e estou em Bruxelas para obrigar a UE a encontrar uma solução”, acrescentou. E, fazendo eco daquilo que já circulava como rumor, assumiu que era candidato às eleições que Mariano Rajoy convocou depois de ter anunciado a sua destituiçõa. “Vamos assumir as eleições convocadas pelos Estado espanhol como um repto democrático”, garantiu. “É a votar que se resolvem os problemas e não levando as pessoas para a prisão.”
Oriol Junqueras, o católico com fé no independentismo
Numa entrevista em 2012 ao La Vanguardia, Oriol Junqueras dizia-se um independentista de longa data. Segundo adiantou à altura, o independentismo tornou-se para ele uma causa aos oito anos, quando estudava no Liceu Italiano de Barcelona. “Aos oito anos, já era para mim muito claro que estava contra a Constituição espanhola”, disse. “Já tinha vocação política.”
Apesar desse entusiasmo dos tempos de criança, Oriol Junqueras só entrou efetivamente para a política bem mais tarde. Depois de uma carreira como académico na Universidade Autónoma de Barcelona, onde tirou uma licenciatura em História Moderna e Contemporânea e um doutoramento em História do Pensamento Económico, Oriol Junqueras entrou na política como independente da Esquerda Republicana Catalã (ERC) às autárquicas no concelho de Sant Vicenç dels Horts. Corria o ano de 2003 e Oriol Junqueras, que tinha nascido e crescido naquele município, tornava-se vereador.
A vereação não lhe impediu a continuação da sua carreira académica. Ao longo dos anos, fez investigação sobretudo na área da História, tendo inclusive feito pesquisa no arquivo secreto do Vaticano. Chegou até a falar com Bento XVI. “Tanto a conversa como os arquivos ainda são secretos”, atalha, sobre aquilo que foi uma oportunidade para um académico e um privilégio para um católico, como ele, mesmo que em crise. Numa entrevista de 2015, dizia-se “crente” e “católico”. “Tento ser crente, mas vivo numa crise permanente com a fé, porque é a fé é muito exigente”, disse. “Tanto Deus te toca com a sua graça como estás em crise.”
Em 2009, assumiu um novo voo político: foi cabeça de lista da ERC às eleições para o Parlamento Europeu, nas quais garantiu a eleição. Em Bruxelas, privou com Ramon Tremosa (da Convergência Democrática Catalã) e com Raül Romeva (da Iniciativa Catalunha Verde), formando com eles uma aliança informal de catalães independentistas no seio da Europa.
Porém, em 2011, regressou a casa. Voltou a concorrer às eleições municipais em Sant Vicenç dels Horts — a então autarca socialista, Amparo Piqueras, desdenhava-lhe o estilo palavroso, dizendo-lhe “Senhor Junqueras, menos ler e mais saber”. Daquela vez, foi para ganhar. E, à falta de uma maioria, conseguiu firmar um pacto com a CDC e com a ICV — isso mesmo, os partidos dos seus “colegas” em Bruxelas.
Acabado de assentar em Sant Vicenç dels Horts, Oriol Junqueras logo demonstrou que os voos que tinha em mente eram mais altos. Também em 2011, perante a crise que os maus resultados eleitorais ditaram à ERC em 2010 (7% e quinto lugar), Oriol Junqueras chegou-se à frente e — não sem antes se tornar militante do partido — candidatou-se à liderança dos independentistas. Acabou por vencer, sem qualquer lista adversária.
Em 2012, ano de eleições regionais antecipadas na Catalunha, resgatou a ERC do quinto lugar e elevou-a a segunda força política daquela região, com 13,7% dos votos. Ficou na oposição enquanto Artur Mas, reeleito, perdia fôlego e popularidade, tanto pelos cortes que decretava, como pelos escândalos de corrupção em seu torno.
Em 2015, com a causa independentista em crescendo, levou a ERC a entrar na coligação independentista Juntos Pelo Sim. Foi assim que, numas eleições onde os independentistas reuniram mais deputados do que os unionistas, e não sem antes Artur Mas cair a favor de Carles Puigdemont na liderança do governo regional, Oriol Junqueras se tornou vice-presidente do governo regional e responsável pela pasta da economia e finanças.
Porém, havia outra pasta debaixo do seu braço: a do referendo à independência da Catalunha. Foi em Oriol que Carles Puigdemont delegou grande parte da organização daquela consulta popular que o Tribunal Constitucional viria a decretar como “ilegal”. O referendo acabou por ir para a frente — não sem antes o seu número dois, Josep Maria Jové, ter sido detido pelas autoridades.
Na mesma entrevista onde dava conta do seu independentismo precoce, Oriol Junqueras já se demonstrava irredutível na realização de um referendo — e de certa forma no seu desejo independentista. Quando lhe perguntaram se, havendo um referendo, a maioria dos catalães escolhessem ficar em Espanha, respondeu: “Esperamos uns anos e voltamos a convocar outro”.
Agora, Oriol Junqueras arrisca-se a uma pena de prisão que pode ir até aos 30 anos, depois de ter sido imputado pelo procurador-geral pelos crimes de sedição, rebelião e desvio de fundos.
Carme Forcadell, a mulher que pôs as ruas a exigir a independência
O El País chamava-lhe, em 2014, a “madrinha do independentismo”. E, como é marca das boas madrinhas, esteve presente desde os primeiros dias. Neste caso, nos primeiros dias da causa pela independência da Catalunha.
Nos anos da Transição, que começou no final de 1975 com a morte de Francisco Franco e terminou em 1978 com a aprovação da Constituição que ainda hoje corta pela raiz as aspirações independentistas, Carme Forcadell foi jornalista no primeiro noticiário televisivo a ser emitido na Catalunha estritamente na língua catalã. O programa chamava-se “Giravolt” e Carme Forcadell, que com pouco mais de 20 anos tinha terminado o curso de Jornalismo e Filologia Catalã na Universidade Autónoma de Barcelona, era uma das suas jornalistas mais jovens. Segundo o El Periódico, os relatórios policiais de então diziam que a equipa daquele programa era um “ninho de subversivos”.
Depois do jornalismo, entregou-se estritamente à causa da língua catalã, que esteve sob ameaça durante o franquismo e viu na Transição uma oportunidade de renascimento. Foi dar aulas de catalão para a Escola Industrial de Sabadell, do ensino secundário. Durou três anos no ensino, até que passou a ser funcionária do Departamento de Educação, assumindo a pasta do programa de normalização linguística, que culminou no uso cada vez mais corrente do catalão dentro das salas de aula.
Fundou a Plataforma pela Língua, foi vogal da associação independentista Òmnium Cultural e, em 1999, entrou para a Esquerda Republicana Catalã (ERC). Foi eleita para a comissão executiva nacional da Esquerda Republicana entre 2001 e 2004 e entre 2003 e 2007 subiu a vereadora de Sabadell nas listas do partido. Quando procurou a reeleição, esbarrou no insucesso da ERC nas eleições municipais desse ano. Apenas com um vereador eleito em Sabadell, Carme Forcadell saiu da política ativa e passou ao ativismo catalanista. Numa primeira fase, reforçou a sua atividade na Òmnium Cultural e na Plataforma Pela Língua. Por fim, em 2011, fundou a Assembleia Nacional Catalã (ANC).
Foi ao leme da ANC que Carme Forcadell se tornou num nome conhecido de todos os catalães — e um nome reconhecido entre os independentistas, que viram naquela organização um veículo da sociedade civil para a causa catalanista. Se cada 11 de setembro dos últimos cinco anos resultaram em largas centenas de milhares, podendo até ultrapassar o milhão, de manifestantes a pedir a independência da Catalunha, é porque a ANC, entre outros, os chamou para a rua. A primeira de todas, em 2012, foi convocada sob o lema: “Catalunha, novo Estado da Europa”.
Foi numa dessas manifestações sob a bandeira da ANC que Carme Forcadell, alçada no seu protagonismo recente, exigiu ao então presidente do governo regional da Catalunha, Artur Mas, que fossem convocadas eleições antecipadas. A exigência surgiu a 2014 e, em 2015, os catalães foram às urnas. Dessa vez, o boletim de voto era mais curto do que nos outros anos. Muitos dos partidos independentistas juntaram-se no Juntos Pelo Sim — algo que aconteceu, também, após insistência de Carme Forcadell. Ela própria figurava naquelas listas, sob a bandeira da ERC. E, enfim, acabou por ser eleita. Depois de Artur Mas ser dado como inaceitável para a maioria independentista, o seu nome chegou a ser equacionado para liderar o governo regional da Catalunha. Porém, essa função foi atribuída a Carles Puigdemont. A Carme Forcadell, viria a ser dado outro papel: o de presidente do parlamento regional.
Carme Forcadell esteve longe de ser uma figura consensual dentro do parlamento regional da Catalunha, onde os partidos unionistas a acusaram de parcialidade e de desrespeito à lei. Uma das sessões mais duras deu-se a 6 e a 7 de setembro, quando o parlamento regional aprovou a lei do referendo e a lei da transitoriedade, ao arrepio da Constituição espanhola e do Estatuto da Catalunha.
“Devo obediência à senhora que desobedece às leis catalãs? Devo calar-me quando ela me manda calar? Devo falar quando ela mo permita?”, lançou o líder da bancada parlamentar dos Ciudadanos, Carlos Carrizosa, em jeito de pergunta retórica. “Senhora presidente, você não obedece às leis.”
O clima de constante crispação arrastou-se até ao dia 27 de outubro, dia em que, com o aval de Carme Forcadell, os deputados independentistas votaram, de forma secreta, a independência da Catalunha. Como presidente da mesa do parlamento, a ex-presidente da ANC foi a última a votar. Chamou pelo seu nome e, depois, levantou-se para depositar aquilo que certamente foi um “Sim” à independência da Catalunha.
Na primeira segunda-feira após a declaração unilateral da independência da Catalunha, Carme Forcadell apresentou-se ao serviço cedo. Eram 8h30 da manhã quando saiu do lugar de trás de um carro que parou mesmo à entrada do parlamento da Catalunha. O momento foi registado num vídeo que Carme Forcadell partilhou no seu Twitter.
Continuem treballant. #Parlament https://t.co/6l3fhAGdu4
— Carme Forcadell Lluís (@ForcadellCarme) October 30, 2017
A legenda do vídeo era simples: “Continuamos a trabalhar”. O que se seguiu depois, foi tudo menos simples.
Numa primeira fase, Carme Forcadell deu um passo atrás nas aspirações independentistas quando cancelou uma reunião da mesa do parlamento que estava marcada para esta terça-feira. A razão? Segundo fontes citadas pelo Europa Press, porque, segundo a própria Carme Forcadell, o parlamento tinha sido “dissolvido”. Se para uns é uma evidência, para uma das caras mais conhecidas do independentismo catalão não era menos do que uma capitulação.
Horas depois, começou a segunda fase. Numa conferência de imprensa, o procurador-geral espanhol, José Manuel Maza, anunciou que apresentou uma queixa ao Tribunal Supremo onde imputava a Carme Forcadell, e aos restantes membros da mesa, os crimes de rebelião, sedição e desvio de fundos.
Já esta terça-feira, o Tribunal Supremo aceitou a queixa da Procuradoria-Geral. Como consequência, Carme Forcadell, e os restantes membros da mesa visados pela queixa, vão ser retirados da deputação geral, o órgão responsável por manter os serviços mínimos do parlamento regional até serem convocadas novas eleições. Afinal, ao contrário daquilo que garantiu Carme Forcadell, não vão continuar a trabalhar.
Anna Gabriel, a filha das bruxas que não conseguiram queimar
Num dos momentos mais importantes para a vida da Candidatura de União Popular (CUP), o partido de extrema-esquerda, anticapitalista e independentista da Catalunha, a sua deputada Anna Gabriel apresentou-se da seguinte maneira numa conferência de imprensa: “Sou uma puta, traidora, amarga e mal fodida. E a única coisa que queria defender é um país catalão livre, socialista e feminista e recordar a impunidade da extrema-direita”.
Corria o mês de janeiro de 2016 e, nessa altura, aquele pequeno partido de extrema-esquerda era o centro de todas as atenções na Catalunha. Depois das eleições regionais de 2015, os independentistas do Juntos Pelo Sim, liderados por Artur Mas, venceram as eleições mas ficaram aquém de uma maioria absoluta. Porém, se aos seus 62 deputados se somassem os 10 da CUP, os independentistas passariam a dominar o parlamento catalão. Só que, para alguns na CUP, Artur Mas não era uma escolha aceitável para liderar o governo regional. Por isso, bloquearam a sua recondução para a liderança da Generalitat, arriscando a repetição das eleições — algo que foi evitado com a nomeação à última hora de Carles Puigdemont.
O bloqueio da CUP não caiu bem entre alguns independentistas — com as militantes destacadas deste partido feminista a serem um alvo preferencial nas redes sociais. Por isso, convocaram uma conferência de imprensa onde listaram alguns dos insultos que lhes foram atirados. Em suma, uma tomada de posição — e também uma provocação.
Essa postura faz parte da herança genética Anna Gabriel. Nasceu em Sallent, um vila mineira da Catalunha. Foi para ali que a sua mãe, nascida em Huelva, se mudou e conheceu o seu futuro marido, também ele filho de um imigrante daquela cidade andaluz. Era uma família política. A mãe de Anna Gabriel fazia parte do PSUC, o correspondente ao Partido Comunista Espanhol na Catalunha, partido pela qual foi vereadora em Sallent. E o seu avô, o tal que se mudou para Sallent após sair de Huelva, fez parte das revoltas mineiras de Súria e de Sallent. Por crer que aquele levantamento enterrava de vez o capitalismo, queimou em público todo o dinheiro que tinha.
Apesar de tudo, Anna Gabriel e o irmão foram os primeiros independentistas da família. Foi nessa condição que entrou para a Plataforma Antifascista de Sallent aos 16 anos e mais tarde no Endavant, uma organização de extrema-esquerda e pela independência da Catalunha. Na Universidade Autónoma de Barcelona, estudou Educação Social, área onde fez carreira aliando-se à causa da promoção da língua catalã. Mais tarde, tornou-se professora na sua alma mater. Em 2002, entrou para a CUP. Foi já sob a bandeira do partido independentista que assumiu o seu primeiro cargo político, como vereadora em Sallent. Assim foi, entre 2003 e 2011, décadas depois de a sua mãe ter integrado aquele órgão.
Em 2009, já quando fazia parte do secretariado nacional da CUP, demitiu-se, reclamando mais “democracia interna” para o partido. Aos poucos, esse apelo transformou-se na sua ascensão. Após as eleições regionais de 2012, altura em que já trabalhava a tempo inteiro para o partido, tornou-se na líder da bancada parlamentar da CUP. Apesar de aquele partido se gabar de funcionar numa postura horizontal, era inegável o protagonismo que Anna Gabriel conquistava sempre que subia ao púlpito com tshirts com mensagens reivindicativas. Foi a partir dessa altura que, apesar do seu tom geralmente baixo e de alguma serenidade, foi deixando marcas da sua postura provocatória. “Somos as filhas e as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar” é uma das frases que mais lança a (quase) todos os que estão em desacordo com ela.
Em 2015, esteve prestes a abdicar da causa independentista para avançar a sua agenda anticapitalista, quando fez frente a Artur Mas. Numa altura em que 1515 militantes da CUP votaram para apoiá-lo como presidente da Generalitat e outros 1515 defendiam o contrário, Anna Gabriel defendeu que fosse criado um “cordão sanitário” em torno de Artur Mas, a quem acusava de usar o independentismo catalão “como uma cortina de fumo para esconder corrupção”.
Depois de a CUP aceitar o nome de Carles Puigdemont, o processo independentista correu, na maior parte das ocasiões, sobre rodas. Por a aritmética independentista assim o exigir, não houve decisão tomada pelo Juntos Pelo Sim que não tivesse de contar com o aval da CUP.
No dia em que o parlamento regional da Catalunha declarou a independência daquela região, Anna Gabriel foi uma das últimas deputadas a falar. Enquanto ao seu lado os parlamentares do Partido Popular da Catalunha — que logo tratariam de abandonar a sessão em protesto — desfraldavam bandeiras espanholas e catalãs, Anna Gabriel explicava porque é que o seu partido votou a favor de que a votação do plenário fosse feita de forma secreta, com uma urna. “Fazemo-lo porque existe uma cultura política anti-repressiva. Não é por teoria, é por prática. Durante muitos anos, trabalhámos sob matérias anti-repressivas. Durante muitos anos, soubemos o que são as detenções, as torturas e as prisões”, disse, para depois referir as prisões preventivas de Jordi Sánchez e Jordi Cuixart, presidente da ANC e da Òmnium Cultura, por suspeitas de sedição. “Hoje há ameaças de queixas penais de mais de 30 anos de prisão contra pessoas dignas e honestas.”
Enfim, quando o seu nome foi chamado, foi votar de sorriso no rosto. Provavelmente, mais concentrada na independência que seria declarada dali a momentos do que nas palavras do líder do PP da Catalunha, que chamou de “cobardes” aos independentistas que não quiseram “dar a cara” na hora de votar.