A azeitona está seca. A meteorologia fintou a agricultura e provavelmente nem vai dar para fazer azeite. Ou será pouco. As consequências inevitáveis não roubam o sorriso da cara de Conceição Lopes. Depois de uma jornada de trabalho na apanha da azeitona vai voltar para a cozinha – onde na noite anterior preparou panados e frango assado. Foi o farnel que levou para o meio-dia, tomado entre oliveiras despidas e um garrafão de vinho caseiro. Já de noite, os vizinhos que a ajudaram durante o dia vão poder refastelar-se com um coelho à caçador. Assim se vive no campo. Ali na aldeia de Sorvel Fundeiro, mesmo ao lado de Sorvel Cimeiro, no concelho da Sertã.
O corpo não acusa os 72 anos de idade. Tem energia e é domado pela boa disposição. Conceição casou com um homem dali, mas foi em Lisboa que teve um casal de filhos e trabalhou nas limpezas. Era onde havia trabalho. O marido, agora presidente da junta de freguesia de Figueiredo, conduzia um táxi e vendia livros do Círculo de Leitores nas horas vagas. Quando chegou a reforma, entregou o táxi ao filho e nem esperou por ela. Veio à frente instalar-se na aldeia onde nasceu. Ela juntou-se depois. Já passaram vinte anos.
A qualidade de vida não levanta questões de comparação. E até os problemas de saúde encontraram cura no ar puro do campo. “Tomava cortisona por causa da falta de ar e desde que aqui vivo já não preciso”, conta Conceição, à porta de casa, ainda com a bata “suja” da azeitona.
O concelho da Sertã é o maior dos quatro que compõem a zona do Pinhal Interior Sul. Além deste, Vila de Rei, Proença-a-Nova e, mais a norte, o de Oleiros. Segundo dados divulgados pelo Eurostat, no final de 2013 esta era a região mais envelhecida da Europa com 32,4% da população com mais de 65 anos de idade. Uma tendência que os concelhos têm tentado contrariar com medidas de incentivo à fixação de população jovem e de empresas.
Com exceção da neta de uma vizinha que, de vez em quando, ali vem passar uns dias, não se ouvem crianças. Nem gargalhadas. Nem brincadeiras. É o silêncio total.
Os autarcas da Sertã têm consciência disso. E, paralelamente às medidas de incentivo aos jovens e à fixação de empresas, têm um pacote de medidas direcionadas para os idosos. É o caso da ginástica sénior, em que um instrutor contratado pela autarquia se desloca às freguesias mais longínquas para tornar os idosos mais desportivos. “Pretende-se não só a prática do exercício físico como também o combate à solidão e isolamento dos idosos”, explica ao Observador a vereadora Cláudia André. Algumas aulas funcionam nas escolas primárias entretanto encerradas por falta de alunos. Outras, como o caso de Figueiredo, funcionam na sede da freguesia.
Conceição é uma das alunas. “Nem todos os idosos daqui vão, mas há pessoas que nunca tinham feito ginástica na vida. Começou há três anos, éramos 14. Este ano somos 17”. A cerca de 16 quilómetros de Conceição, já no centro da Sertã, Fernanda Marçal, é das poucas que nasceu na terra e por lá ficou. Aos 40 anos viu-se divorciada e com duas filhas. Pediu para receber as prestações do centro de emprego na totalidade e investiu num negócio. Na “Mercearia do Largo” vende vários produtos da região, como compotas, licores e biscoitos. Muitos à base de medronho, o fruto mais consumido na região. Outros são feitos pelas próprias mãos. E ser da terra trouxe-lhe uma vantagem: “acho que vêm aqui porque me conhecem”.
A cerca de 20 minutos de Fernanda é o centro de Portugal. Literalmente o centro. Melhor, o Centro Geodésico de Portugal. Promete vistas sobre a Serra da Estrela, as Lezírias do Tejo e, até, as Planícies Alentejanas. O ponto em plena serra da Melriça, e que permite avistar parte do País, está num dos concelhos da região mais envelhecida da Europa, o de Vila de Rei. Mesmo que, na boca do vice-presidente Paulo César, seja o “concelho mais bonito de Portugal”.
Mal termina a reunião numa sala da sede da câmara, Paulo César prontifica-se a prestar todas as informações sobre o concelho. Teme que as palavras escritas sobre a região prejudiquem as medidas em que tem apostado para atrair jovens e empresas.
Em 2006, o concelho de Vila de Rei saltou para a comunicação social depois de um acordo com o Brasil: receber quatro famílias brasileiras em troca de um visto de residência de forma a repovoar a zona. Das quatro famílias, obrigadas a partilhar casa, só uma se estabeleceu de facto. E por lá continua. A família Duarte, ou, melhor, Marcelo de 39 e Letícia de 42 anos têm quatro filhos e não querem regressar ao Brasil. Nem mudar de vila. Quando chegaram, ele foi trabalhar na restauração, ela num lar. Hoje a mulher é encarregada do Lar de São João do Peso e ele é empresário.
“Abandonei a minha carreira de informático porque perdi a evolução da profissão”, disse ao Observador. Quatro anos depois de ter chegado a Vila de Rei, em 2010, entrou no mundo dos negócios e comprou o supermercado Minipreço. Quem o vendeu era português, mas tinha mulher e filhos no Brasil e queria partir. Pareceu quase uma troca. Ele pediu um empréstimo ao banco e diz que o negócio “corre bem”.
Dos quatro filhos, dois já nasceram em Vila de Rei e Marcelo recebeu da autarquia o apoio à natalidade. Mas desengane-se quem achar que esta é a maior atração do concelho. Que o diga Manuela Brito, a trabalhar no gabinete jurídico da câmara municipal. Chegou à terra natal do marido há já 13 anos, mas é lisboeta de gema. E é na capital que tem os pais e, até, os sogros.
“Qualidade de vida”, acrescenta Manuela à lista de vantagens de viver no interior. Manuela é casada com o diretor da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Portalegre de quem tem oito filhos. Isso mesmo, oito. Uma família numerosa como há muito não se via em Vila de Rei. Quatro rapazes e quatro raparigas em que o mais novo tem três anos e o mais velho 19, e já frequenta a universidade. “Decidimos construir uma casa e começámos a passar aqui mais tempo”. Podem assim viver numa vivenda com piscina e ter transporte gratuito para a escola.
Mas nem tudo são rosas. Este ano letivo não houve alunos suficientes para frequentar o 10º ano e os jovens são obrigados a deslocar-se para a Sertã, como acontece com um dos quatro filhos do brasileiro Marcelo. E há atividades que não existem porque há falta de crianças e jovens. “A minha irmã enfrentou listas de espera para por os filhos nos escuteiros. Aqui não existe escutismo”, diz Manuela. Também as atividades desportivas são escassas. Principalmente para o filho, com “boas” aptidões de ginástica e que, para praticar, teve que inscrever-se num clube em Tomar. A única forma de se profissionalizar.
“Na realidade isto é uma micro amostra do que acontece no País. Mais do que um problema de interioridade, Portugal atravessa um problema de natalidade, que carece de intervenção do poder central. Há trinta ou quarenta anos, países como a França e Inglaterra tomaram medidas. Por muito que o poder local encontre formas de incentivar a natalidade, se não existirem medidas do poder central vão ser em vão. E o nosso país vai definhar”, opina Manuela, que sempre teve como opção de vida ter “muitos filhos”.
As ruas do centro de Vila de Rei estão vazias. O comércio é escasso. Mas é no concelho com uma área de pouco mais de 190 quilómetros quadrados e com cerca de 3.500 habitantes que a advogada quer investir. Além do serviço jurídico e de ser mãe de oito filhos, Manuela formou-se em Medicina Tradicional Chinesa e quer abrir um consultório ali no centro. Apesar dos planos, recusa pensar que ficará por ali o resto da vida. “Não penso nisso, é o meu modo de estar”.
O vice-presidente e vereador, Paulo César, elege a beleza da região e a aposta no turismo como pontapé de saída para desenvolver a vila. E na estante do corredor público da autarquia não faltam propostas que valorizam a Natureza a o Rio Zêzere ali tão próximo. Caminhadas, percursos de BTT, turismo rural são algumas das ofertas. Todas com paragem obrigatória na pequena aldeia de Água Formosa, a única do concelho construída em xisto e que integra a Rede de Aldeias do Xisto. Aqui há já um hotel de paragem para os amantes de bicicleta, um bike hotel. Habitantes há poucos. Quatro ou cinco. Todos com mais de 65 anos.Um a realidade a mudar. Recentemente um casal de polícias decidiu trocar o Entroncamento pela aldeia cravada na serra.
“Será mais importante ter mais 20 ou 30 pessoas residentes ou mais de cinco mil que vêm de vez em quando? É importante que as pessoas cá vivam, mas também é importante que as pessoas cá venham. E é preciso criar elementos que o motivem”, afirma Rui Simão, o coordenador da Adxtur, Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto. Este é um dos projetos turísticos que tem contribuído para combater esta desertificação. Quatro das 27 aldeias da rede estão localizadas na zona do Pinhal Interior Sul e, nalgumas delas, “há mais de 30 anos que não nascia uma criança”.
Mais do que reabilitar casas, o projeto das Aldeias do Xisto passa por apoiar as infraestruturas à volta destas aldeias, como é o caso das praias fluviais. Há ainda a “qualificação de serviços e de produtos”, como explica Rui Simão, fundamentais quando se fala em turismo. Acrescem os eventos promovidos nestas zonas, tragam eles a gastronomia regional, a música ou mesmo as atividades educativas. “As pessoas que ainda aqui vivem são portadoras de um conhecimento apreciável. E isto valoriza a cultura e a tradição”.
A atenção de João Matias despertou para isso. É o único empresário com portas abertas na aldeia da Figueira, uma aldeia de casas em xisto – grande parte caídas – em Sobreira Formosa, no concelho de Proença-a-Nova. Também ele tenta contrariar a sazonalidade na casa de turismo rural e no restaurante que só abre ao público aos fins de semana. João nasceu ali, a dois passos da casa que agora tem dois quartos disponíveis para turistas. Na altura (nasceu há 31 anos) ainda havia crianças para brincar, agora é o único que saiu para estudar e que voltou com a ideia de ficar.
É na “Casa da Ti Augusta”, o nome da última dona das instalações, que conta como chegou ali. Recua à idade em que pensou ser veterinário, mas que acabou por optar por Engenharia Zootécnica. Os tempos em que estudou em Castelo Branco, mas que não acabou o curso. E os anos como militar do Exército. Acabou por ser empresário.
“Os meus pais sempre estiveram ligados à criação de gado e à produção de leite e de queijo. E eu decidi criar uma nova área de negócio”, conta.
A câmara municipal tem um projeto para o centro da aldeia e “havendo alojamento, criam-se dinâmicas”, refere João. Antes de 2008, a aldeia da Figueira nem sequer tinha saneamento básico. Foi graças ao projeto Aldeias do Xisto que o panorama mudou. E foi por esta altura que João investiu no turismo rural. Quatro anos depois decidiu abrir o restaurante e pode, assim, escoar a carne de cabra que os pais negoceiam. Como é o único comércio da aldeia, funciona também como posto de turismo. Mais. Para ajudar os idosos a pagar as contas da água e da luz.
Meses depois de abrir o restaurante, a cunhada Joana Pereira, 33 anos, juntou-se ao negócio. Nascida em Espinho mas estabelecida em Lisboa, com o irmão de João, viu-se a braços com a situação de desemprego na área de Ciências da Educação. “Ao início a adaptação custou-me imenso, porque cheguei no inverno. Cheguei a pensar desistir”, diz.
Depois de deixar de enfrentar filas de trânsito, de “respirar o ar puro” e de encontrar atividades que, antes, não teria tempo de desenvolver conseguiu adaptar-se. Até porque ali há internet. Um curso de fotografia, outro de inglês para restauração e um projeto para criação do próprio emprego permitem-lhe manter-se ocupada. Com um bónus. Todas estas formações foram gratuitas.
João e Joana também reconhecem um papel social na aldeia onde a média de idade é de “80 anos”, atira Joana sorridente. Um “património cultural”, explica João. “Temos aqui pessoas que passaram pelas duas guerras mundiais. E que, apesar de não terem grande noção, contam como trabalhavam dia e noite para moer a farinha com a qual faziam o pão. E como andavam a pé 20 quilómetros para ir buscar produtos”.
Uma vida “dura” em que a população vivia da agricultura. “Quando os filhos cresceram, estas pessoas só quiseram que eles estudassem para não terem uma vida igual. E poucas acabaram por voltar”, diz. Hoje as ruas estão vazias. Vivem ali pouco mais de 20 pessoas. Mas há dias excecionais.
Os filhos de quem ficou chegam ao fim de semana. Às vezes vêm de propósito para ajudar na apanha da azeitona ou na vindima. Houve já quem recuperasse algumas das casas. Ali na Figueira há, pelo menos, dois casais que não tinham raízes na zona mas que, apaixonados pela paz da aldeia, acabaram por comprar casa e reconstruir. Por outro lado, os poucos idosos que ali vivem também começam a fugir. Uns são levados para casa dos filhos para não passarem o inverno numa aldeia vazia e longe de um hospital (o mais próximo é em Castelo Branco, a cerca de 40 quilómetros). Outros são levados para lares, como foi o caso de “João Folga”, o único cliente que entrava no estabelecimento para beber um café diariamente. “Agora tenho a máquina de café ligada toda a semana e às vezes nem um café tiro”, diz João.
As portas dos gabinetes da câmara de Oleiros estão num corredor de livre acesso ao público e não são, sequer, fechadas à chave. Há quem entre disparado no gabinete do presidente da câmara, que também é médico, e que aproveite para tirar uma dor do corpo. Seja porque sente a solidão ou porque está, de facto, doente. E há quem entre ali para se queixar de um buraco na estrada ou da iluminação pública.
O gabinete do vereador Paulo Urbano não foge à regra. “Às vezes estou concentrado num trabalho e entram aqui disparados”, diz ao Observador, bem disposto, sentado à secretária e com vista privilegiada para o centro histórico de Oleiros. “Por vezes são pessoas que só querem conversar”. Depois de enumerar as medidas de apoio aos mais jovens ou à fixação de empresas, não perde tempo em contactar Pedro Nunes, o empresário de 33 anos que trocou Lisboa pelo Pinhal Interior Sul e que hoje tem as concessões das piscinas, do parque de campismo e da praia fluvial.
Na receção do parque de campismo, a escassos metros do Açude Pinto, a praia fluvial eleita pela DECO como a melhor da região, Pedro Nunes gere as reservas. E interrompe para contar como, aos 21 anos, era o dono de um café e patrão de oito funcionários nos arredores de Lisboa. “Os meus pais são daqui mas vivem em Lisboa. Eu não quis prosseguir os estudos porque queria abrir um negócio”, conta.
Um dia uma tia desafiou-o. Porque não abria um café em Oleiros? Levado pelo desafio, e pelo coração (entretanto conhecera a futura mulher) decidiu passar um ano no concelho e experimentar o negócio. Os pais e a irmã ainda acharam que estava louco. Tinha um negócio que corria bem, com muitos clientes, e ia enfiar-se em Oleiros sujeito a não ter ninguém para lá do balcão. Ele seguiu o instinto.
Em 2006, a decisão. Pedro vendeu o café de Lisboa e instalou-se definitivamente em Oleiros. A partir daqui casou, teve filhos e mudou de vida. Hoje explora o parque de campismo, a praia fluvial e as piscinas do concelho. E abraça a causa de incentivos a quem quiser uma nova vida. “Aqui não há trânsito e há qualidade de vida”.
© Milton Cappelletti
Em Oleiros há aldeias que já não têm ninguém. Uma delas tem quase todas as casas à venda. Outras são ocupadas ao fim de semana ou nas férias. Aposta-se no turismo. Mais uma vez. Um mote comum aos quatro concelhos que integram o Pinhal Interior Sul. Ainda assim as estatísticas empurram-nos para os lugares cimeiros das regiões mais envelhecidas da Europa. Por aqui envelhece-se. Mas com ar puro. E cheiro a pinho.