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Uma viagem à Praga dos dias da invasão pela mão de quem aí os viveu

Cândida Ventura, histórica dirigente comunista, e depois dissidente, viveu em Praga os dias da invasão soviética, há 50 anos. Anos passados, guiou José Manuel Fernandes pelos lugares dessas memórias.

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(Texto publicado no Observador a 17 de dezembro de 2015, assinalando a morte de Cândida Ventura, a primeira mulher a entrar, depois de 1940, para a direcção do PCP, uma vez que a sua rutura com o comunismo começou e acabou em Praga e teve como ponto cardeal a invasão da então Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, a 20 de agosto de 1968. Este texto é também uma adaptação do que editei no Público na passagem do 40º aniversário dessa invasão e tem como ponto de partida a viagem que fiz com Cândida Ventura a Praga, com ela revisitando os lugares onde vivera esses trágicos dias de 1968.)

Uma imagem de Dubcek

Em cima da cómoda, junto à porta do pequeno apartamento de Portimão, destacava-se uma pequena moldura. Feita de cabedal grosso, com um acabamento artesanal, mostra uma fotografia de Alexandre Dubcek, o líder da Primavera de Praga. A fotografia impressa num folheto da época.

“Essa moldura foi-me oferecida na prisão, por um camarada”, explica Cândida Ventura.

“E ainda guarda uma imagem de Dubcek?”

“Sempre.”

Estivéramos longas horas a conversar e só então calha dizer-lhe que iria a Praga daí por dois meses. Foi o suficiente para os olhos se acenderem e perguntar-me se não seria possível aproveitar para também regressar à cidade onde viveu mais de uma década. “Gostava de lhe mostrar algumas coisas…”

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Foi no Café Slavia, o mesmo que Vaclav Havel e tantas outras gerações de intelectuais checos frequentavam, que, em frente de dois cálices de Becherovka, convers´ºamos sobre as memórias de 1968

Dois meses depois, após um dia inteiro às voltas pela cidade, Cândida Ventura senta-se por fim no Café Slavia e encomenda dois cálices de Becherovka, um licor tradicional checo. “Era aqui que os intelectuais se juntavam para conversar, escrever, até para conspirar”, conta-nos. Intelectuais contemporâneos, como Vaclav Havel ou Ji í Grossmann, mas também os que ali se reuniam no final do século XIX, como Viktor Oliva, o criador da pintura O Bebedor de Absinto, que ainda se pode admirar numa das salas do café, ou Rainer Maria Rilke, que situa mesmo neste café uma das suas Duas Histórias de Praga.

Aos 88 anos (entretanto já completou 90), a energia de Cândida Ventura parecia inesgotável ao fim de um dia em que voltara a percorrer algumas das ruas e lugares que mais marcaram a sua vida. Porque foi em Praga que as suas certezas de dirigente comunista terão começado a ser abaladas, ainda nos anos 1950, e porque foi lá que ruíram de vez quando foi testemunha da Primavera de Praga e do seu esmagamento.

Em 1958, encontro com Artur London

“A primeira vez que aqui vim foi em 1958”, recorda-nos esta mulher pequenina, muito magra, de olhar doce mas voz por vezes dura e sempre afirmativa, ainda capaz de irradiar um raro encanto. “Ia visitar pela primeira vez a União Soviética e tinha de passar por Praga. Estou convencida de que me ofereceram essa viagem como compensação pelo processo que me tinham movido por fraccionismo”, recorda.

“Há uma pessoa que não podes deixar de ver antes de seguires para Moscovo.” E que pessoa: Artur London, uma das vítimas do “processo Slansky”.

O “castigo” acontecera quatro anos antes, num período difícil da história do PCP, quando, depois da prisão de Álvaro Cunhal, a direcção de Júlio Fogaça enfrentava uma contestação quase permanente. Cândida Ventura, a primeira mulher a chegar ao Comité Central depois da reorganização do PCP no início dos anos 40, foi então despromovida e, depois, reabilitada. Indo a Moscovo.

Mas, ao passar por Praga, reencontra um dos dirigentes que mais admirava e de quem era mais amiga: José Gregório, o líder sindical que, em 1933, encabeçara a revolta de 18 de Janeiro na Marinha Grande. Doente, o partido enviara-o para Praga e, quando se encontraram, Gregório disse-lhe: “Há uma pessoa que não podes deixar de ver antes de seguires para Moscovo.” E que pessoa: Artur London, uma das vítimas do “processo Slansky”, o “julgamento espectáculo” que marcara a vitória do estalinismo na Checoslováquia dos anos 40. Dos 14 réus, onze foram condenados e fuzilados, três enviados para a prisão.

Artur London, em Paris, durante uma acção de apoio aos dissidentes checoslovacos, com a actriz Simone Signoret, protagonista do filme A Confissão, baseado na história do antigo dirigente comunista

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London fora um destes e em 1958, com a “desestalinização”, saíra em liberdade. O que então contou a Cândida Ventura sobre o seu processo, a prisão, as torturas e o julgamento – a história eternizada na sua memória auobiográfica A Confissão – levou-a a começar a encontrar explicação para as suas primeiras dúvidas, “especialmente depois das falsas acusações de que tinha sido vítima em 1954”, como escreveu em O Socialismo Que Eu Vivi (1984).

“Que diferença entre o que nos dizia o ‘secretariado’ e o que acabava de conhecer através de Gérard [o pseudónimo de Artur London] e de outros amigos checos”, escreveu então. “Foi através dele que conheci, pela primeira vez, a verdadeira dimensão dos campos de concentração no mundo comunista.”

"O meu choque foi tão brutal que, quando voltei a Praga, disse ao José Gregório que ia deixar o partido. Ele pediu-me para ter calma. Convenceu-me de que as coisas não iriam continuar como estavam."
Cândida Ventura, recordando o regresso da primeira visita à União Soviética, em 1958

“Já segui para Moscovo com dúvidas”, contou-nos enquanto percorríamos as ruas de Praga. “Depois, em Sochi, a estância para onde iam os quadros dos partidos amigos, encontrei um casal de médicos e, ao ver os olhos dele, vi os olhos de London. Quando consegui ter um momento para lhes falar a sós, disse-me que era um dos médicos do processo dos ‘batas brancas’ [uma das paranóias finais de Estaline, quando mandou prender todos os que o tratavam por suspeitar que o estavam a envenenar]. O meu choque foi tão brutal que, quando voltei a Praga, disse ao José Gregório que ia deixar o partido. Ele pediu-me para ter calma. Convenceu-me de que as coisas não iriam continuar como estavam.”

A prisão, o exílio e o regresso a Praga

De volta a Portugal, mergulha de novo na clandestinidade até ser presa em Agosto de 1960. Julgada e condenada, os meses passados na cela de isolamento e a tortura deixaram-na numa situação de tão extrema debilidade física que a família acabaria por conseguir, em 1963, autorização para sair em liberdade condicional e ser tratada em França. Daí segue de novo para Moscovo até passar a ser a representante do PCP em Praga e a trabalhar na Revista Internacional – Problemas da Paz e do Socialismo. Nos dez anos seguintes, até regressar a Portugal, passaria a ser Catarina (“pronuncia-se ‘catarjina'”, explica-nos), o seu último “nome de guerra” no PCP.

"Tinha o estatuto dos que eram conhecidos pelos 'grandes animais', os dirigentes da nomenclatura, os que tinham direito a hotéis especiais, motoristas e tratamento de privilégio"
Cândida Ventura, sobre o estatuto dos dirigentes máximos dos partidos comunistas

“Tinha o estatuto dos que eram conhecidos pelos ‘grandes animais’, os dirigentes da nomenclatura, os que tinham direito a hotéis especiais, motoristas e tratamento de privilégio”, recorda. “Nessa altura o José Gregório já tinha morrido e o London acabara de partir para França, mas algo já tinha começado a mexer. A pouco e pouco fui-me integrando no ambiente de discussão cada vez mais aberto que acabaria por levar à Primavera de Praga.”

Ela e os portugueses que então viviam em Praga – entre os quais se destacava o historiador Flausino Torres – tornam-se apoiantes entusiásticos da abertura reformista e de Dubcek. Quem o testemunha é António Barreto, à época um jovem estudante comunista. “Fui a Praga mais de uma vez, para encontros com o responsável do PCP pelo meu sector, Álvaro Bandarra, e, para além das conversas políticas, lembro-me de Cândida Ventura me pedir para lhe levar coisas tão extraordinárias como aspirinas ou rolos de fita-cola. Achei estranho essas faltas num país que se dizia tão desenvolvido”, recorda.

Estudantes distribuem comunicados de protesto contra a invasão soviética de 21 de Agosto de 1968

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Só que a Primavera de Praga e o entusiasmo dos portugueses não durou muito. Na madrugada de 21 de Agosto de 1968, tropas soviéticas, da Polónia, da RDA, da Hungria e da Bulgária atravessaram as fronteiras e começaram a ocupar as principais cidades e a repor a “normalidade”. Nessa noite Cândida Ventura estava numa estância nos Altos Tatras, mas quando a Rádio Praga difundiu o primeiro grito de alarme, e todos saíram alvoraçados dos seus quartos, pouco mais conseguiram fazer do que abraçar-se. “Há factos, acontecimentos, dias, momentos em que a grandeza e o conteúdo dramático do que vivemos nos dá um sentimento de impotência”, escreveria muitos anos depois em O “Socialismo” Que Eu Vivi.

“Tinha a sensação de me decompor fisicamente, a certa altura não conseguia falar nem estar de pé.” A obsessão era regressar a Praga, o que só conseguiria dias depois, indo ao encontro da realidade que Flausino Torres optaria por registar num diário que acaba de ser editado em Portugal pela primeira vez (Diário da Batalha de Praga, Afrontamento).

O chapéu de Dubcek

“Começaram, desde há três ou quatro dias, as cerimónias fúnebres da Juventude em homenagem aos seus mortos. E a catedral em que se realizam os ofícios é ao pé da estátua de Venceslau”, escreveu Flausino Torres. “Foi ali que caiu varado pelas balas de um tanque invasor o primeiro herói, um pequeno herói de à volta de 15 anos! O rapazito correu para um tanque e atirou-lhe com qualquer explosivo de fabrico caseiro. O colosso incendiou-se, remexeu-se, torceu-se; os soldados tentaram fugir ao calor infernal… e o pequeno, sempre correndo atrás dele, de grande bandeira na mão! Foi neste momento que as metralhadoras de um outro carro o abateram. Ali caiu e ali ficará para sempre a sua memória.”

"Olhámo-nos, ele aproximou-se e, discretamente, levantou o chapéu para me deixar ver os sinais das feridas que lhe tinham deixado os 'tratamentos' sofridos em Moscovo. Abraçámo-nos sem trocar uma só palavra. Não era preciso."
Cândida Ventura, recordando um encontro com Dubcek depois do esmagamento da Primavera de Praga

E ficou. Quando desço com Cândida Ventura a Praça Venceslau aquele é um dos pontos que me quer mostrar, tal como os sinais de bala que ainda não desapareceram da fachada do Museu Nacional. Mas de entre as memórias desses dias uma parece tê-la marcado mais do que todas as outras: o reencontro com Dubcek depois de este regressar, para onde tinha sido levado nos primeiros momentos após a invasão e obrigado a assinar uma declaração em que renunciava a parte do seu programa e dava assentimento à ocupação. Ainda era o líder do PCC, mas já era também um homem destruído.

Alexander Dubcek (à esquerda) com os dirigentes russos Alexei Kosygin e Leonid Brezhnev numa cimeira em que os soviéticos tentaram convencê-lo a parar com as reformas

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“Estava um dia no hall do Hotel Praha quando ele entrou de chapéu na cabeça – ele que usava chapéu. Olhámo-nos, ele aproximou-se e, discretamente, levantou o chapéu para me deixar ver os sinais das feridas que lhe tinham deixado os ‘tratamentos’ sofridos em Moscovo. Abraçámo-nos sem trocar uma só palavra. Não era preciso.” Cândida Ventura fala-nos como se tudo se tivesse passado ainda ontem, com gestos simula a forma como Dubcek lhe mostrou as feridas, notamos nos seus olhos a sombra de uma lágrima contida. “Sacha”, como o tratava, era mais do que o dirigente do “partido irmão”: era um amigo que conhecia desde 1965, ainda bem antes de subir ao topo de hierarquia comunista. E era também alguém que recorda como muito afável e acessível, sem nenhum dos tiques das outras “altas personalidades”.

Cunhal disse-me para me afastar de Dubcek, pois ele iria acabar mal. ‘Mal como?’, perguntei-lhe. ‘Pendurado num candeeiro, atropelado, tu sabes como estas coisas são’.

Quando “Sacha” morreu num acidente de automóvel, em 1992, já depois da queda do comunismo na “Revolução de Veludo” de 1989, “Catarina” viu cumprir-se uma velha profecia de Cunhal. É que, vivendo então em Moscovo, o secretário-geral do PCP começou por ir a Praga ouvir Cândida Ventura. O reencontro não foi fácil, pois esta recusou subscrever a linha oficial do PCP sobre a legitimidade de intervenção soviética.

Não romperam, mas o líder histórico do PCP deixou-lhe um aviso: “Disse-me para me afastar de Dubcek, pois ele iria acabar mal. ‘Mal como?’, perguntei-lhe. ‘Pendurado num candeeiro, atropelado, tu sabes como estas coisas são’, respondeu-me. É por isso que ninguém me tira da cabeça que ele não sofreu apenas um normal acidente de automóvel.”

Ruptura de comunistas. E o “fulanão”

Por essa altura as coisas ferviam entre os comunistas portugueses exilados em Praga. No seu diário, Flausino Torres dava conta a 31 de Agosto, numa altura em que desconhecia que o Avante! já tinha tomado posição a favor da invasão, da desorientação e revolta que o atormentavam: “Entretanto, os nossos já famosos ‘Dirigentes’ começaram a sacudir-se, a espreguiçar-se: segundo a Rádio Portugal Livre, ’em vez de se fazerem declarações de apoio a esta ou aquela parte em conflito, é preferível analisar objectivamente os acontecimentos’. E que resultou então duma análise objectiva? ‘O governo checo, antes da ocupação militar, cometeu graves erros’! Porém, não se percebe donde vieram as informações para tal juízo: no dia 12 de Agosto, a Responsável [Cândida Ventura] afirmara-nos que ‘nunca o partido checo fora tão apoiado como agora, exactamente pela sua política justa (…)’.”

Impacientes, Flausino Torres e outros comunistas exilados decidem escrever uma mensagem para entregar nas embaixadas dos países ocupantes e aos dirigentes checoslovacos. Queriam que Cândida Ventura assinasse, mas esta não o fez, uma recusa que alguns nunca lhe perdoaram, como se percebe lendo Flausino Torres. Ela mesma percebeu que assim se afastava daqueles com quem partilhara o apoio à Primavera de Praga.

“Pela estima e consideração que sempre lhe dediquei”, escreveria em O Socialismo Que Eu Vivi, “lamento que já não seja possível falar com Flausino Torres [o historiador faleceu em 1974] sobre todas estas questões.”

"Foi a escolha que fiz e ajudei no que pude gente como a que viria a assinar a Carta 77, um movimento central na queda do regime."

Mas porquê, Cândida Ventura, tanto tempo, 16 anos, para vir contar a sua verdade?

“Naquela época estava muito envolvida com os reformadores comunistas, tanto na Checoslováquia como na Polónia. Mantive contacto com os que passaram à resistência. Manter o meu posto, a minha facilidade de movimentos, era muito importante para os poder ajudar. Se assinasse aquele documento teria de sair de Praga e do partido, deixaria de ser útil. Foi a escolha que fiz e ajudei no que pude gente como a que viria a assinar a Carta 77, um movimento central na queda do regime.”

Cândida Ventura recorda-se de uma reunião "penosa e tensa", em que não tomou a palavra, como o momento em que Flausino Torres rompe com Cunhal - uma ruptura definitiva que marcaria o isolamento em que viveu o resto da sua vida.

Ao mesmo tempo, e até sair do PCP em 1976, depois de regressar a Portugal, também não daria a Cunhal o gosto de a obrigar a ir além dos limites que impunha a si própria. Foi isso mesmo que aconteceu, semanas depois, quando, a seu pedido, Cunhal regressou a Praga para se reunir com os exilados. A 5 de Novembro de 1968.

Esse fulanão, esse FULANÃO, sentiu-se certamente envergonhado quando o velhote [Flausino] declarou: ‘Jamais voltarei a apertar-te a mão!

Cândida Ventura recorda-se de uma reunião “penosa e tensa”, em que não tomou a palavra, como o momento em que Flausino Torres rompe com Cunhal – uma ruptura definitiva que marcaria o isolamento em que viveu o resto da sua vida. Numa carta que escreveu à sua filha Marcela conta que “o Fulanão supremo”, Cunhal, “veio cá à terra”: “Não foi para ouvir, não foi para inquirir do nosso estudo, da nossa observação acerca do que se tinha passado à vista do milhão e meio que constitui a população da heróica cidade. Foi apenas para lançar a sua excomunhão sobre todos os Portugueses praguenses, chegando a pôr um para fora da sala a grandes brados: ‘Saia, saia; um comunista não se vende!’ (…) Esse fulanão, esse FULANÃO, sentiu-se certamente envergonhado quando o velhote [Flausino] declarou: ‘Jamais voltarei a apertar-te a mão! Mandaste sair aquele jovem. Pois tu é que deves abandonar o grupo, a direcção do grupo! (…)’.”

Uma pequena placa na Praça Venceslau

Se Cunhal levou a sua avante no PCP, na Checoslováquia os soviéticos também começavam a impor o seu “processo de normalização”. As figuras mais relevantes do movimento reformista foram afastadas uma a uma, os que tinham tomado posições a favor do “socialismo de rosto humano” obrigados a retractarem-se por escrito, os que mantiveram a espinha vertical obrigados a abandonar os empregos e muitos, mesmo os com as profissões mais qualificadas, acabaram nos empregos mais humildes. Não sem que houvesse sobressaltos, envolvendo sacrifícios tocantes. Um deles foi o de Jan Palach.

"Venho sempre aqui quando regresso a Praga", diz-nos junto ao pequeno memorial onde se recordam os sacríficios de Jan Palach, a 16 de Janeiro de 1969, e Jan Zajic, a 25 de Fevereiro

“Na Praça Venceslau há uma coisa que quero mostrar”, avisara-nos logo pela manhã Cândida Ventura. Só que naquele domingo cheio de sol, numa praça cheia de jovens, o lugar de romagem a que nos queria levar parecia quase escondido. “Venho sempre aqui quando regresso a Praga”, diz-nos quando nos aproximamos do pequeno memorial, erguido já depois da Revolução de Veludo, aos dois jovens que se imolaram pelo fogo em protesto contra a intervenção soviética. Primeiro Jan Palach, a 16 de Janeiro de 1969, depois Jan Zajic, a 25 de Fevereiro.

"A ilusão de que o comunismo era reformável, que o estalinismo fora um passo em falso, um erro que ainda podia ser corrigido, (...) essa ilusão foi esmagada pelos tanques a 21 de Agosto de 1968 e nunca se recompôs"
Tony Judt, em "Pós-guerra"

É apenas uma pequena lápide, quase escondida num canteiro, mas que marca o local onde Palach pegou fogo a si mesmo. Todos parecem ignorá-la, sobretudo os turistas que fotografam a estátua equestre do Rei Venceslau, uma dezena de metros mais acima. Todos, não. Quando nos aproximamos adianta-se-nos um homem nos seus cinquenta e muitos que pousa um ramo de flores e, por alguns instantes, se ajoelha numa homenagem silenciosa. Se fossem vivos, os dois jovens que a placa recorda deveriam ter a sua idade.

Praça triste cheia de gente

É então que Cândida Ventura tem mais dificuldade em esconder a emoção. Tapa até o rosto por um momento enquanto guarda um longo silêncio, um silêncio que só quebra ao tomarmos a direcção do Café Slavia. Solta então a torrente das memórias com a urgência de quem não sabe se um dia ali voltará. Conta-nos como foi o funeral de Palach, num dia cinzento de chuva, diz-nos que esteve entre os que ajudaram a convencer outros estudantes a não repetirem o gesto do seu colega, recorda a primeira vez que, depois da invasão, aquela praça triste se encheu de gente alegre e de cânticos, o dia em que a selecção de hóquei em gelo checoslovaca bateu a da União Soviética. “Foi lindo.”

Foi só um dia, vivido como uma jornada de “vingança” nacional e só isso: a esperança de que era possível regenerar por dentro o socialismo tinha acabado. Cândida Ventura já o compreendera bem, como contou recentemente à Visão Octávio Cunha, hoje médico no Porto, que depois de ter estado com ela em Praga poucos dias antes da invasão receberia um telegrama. Onde se lia apenas: “O socialismo acabou.”

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Ou, para ser mais preciso, “a ilusão de que o comunismo era reformável, que o estalinismo fora um passo em falso, um erro que ainda podia ser corrigido, que os ideais centrais do pluralismo democrático ainda podiam de certo modo ser compatíveis com as estruturas do colectivismo marxista, essa ilusão foi esmagada pelos tanques a 21 de Agosto de 1968 e nunca se recompôs”, como escreveu Tony Judt no seu monumental Pós-guerra.

Valeu então a pena ter ficado no PCP e ter seguido o conselho de José Gregório? A Catarina de então, a Cândida Ventura de hoje, acredita que sim: “O socialismo acabou ali, a luta pela democracia não. E ajudei muitos dos que viriam a estar nas revoluções que deitaram abaixo o comunismo.”

Já não há Becherovka no fundo dos cálices e o sol está quase a desaparecer. Tomamos um eléctrico que segue ao longo do Vlata e custa-nos a crer como, na cidade que reencontrou toda a sua magia, os edifícios que aqui e além Cândida Ventura nos indica só eram acessíveis aos “grandes animais”. Mas ela conhece-os, era um deles, frequentava-os, lembra quando se despede com um sorriso matreiro.

(Artigo adaptado do publicado originalmente no Público de 20 de Agosto de 2008)

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