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Carlos Alvarez

Carlos Alvarez

"Durante muito tempo os espanhóis foram juancarlistas, não monárquicos"

O filho de Juan Carlos vai ser proclamado Felipe VI num momento de grave crise económica e política. As manifestações republicanas foram proibidas, mas os protestos devem ocorrer.

“Quero chegar às 9h para estar na primeira fila”. Eliseo Férnandez, 21 anos, fala entusiasmado do cortejo real. Parece um adolescente à espera de um concerto da sua banda musical preferida. O amigo Jaime incentiva-o: “Ontem vi um póster de Felipe e pensei em ti”. E Eliseo responde-lhe: “Quero o retrato dele vestido de Capitão Geral da Armada”. “És um freak”, diz-lhe Jaime, que traz no pulso uma pulseira com as cores da bandeira republicana espanhola.

São os dois estudantes de Ciência Política na Universidade Complutense e membros da associação de estudantes UEFP – União de Estudantes para o Futuro Profissional – que, segundo Eliseo Férnandez, quer aproximar os jovens do mercado de trabalho e é uma organização “sem ideologia e não partidária”. A prova, garante, é que ele, Eliseo, é o único monárquico e a maior parte dos seus colegas são de esquerda.

Eliseo vai passar a manhã a assistir à cerimónia de proclamação de Felipe VI e Jaime juntar-se-á à manifestação que foi convocada para esta noite por movimentos de esquerda que reivindicam a realização de um referendo que permita aos espanhóis escolher a forma de Estado que querem para o país: a monarquia ou a III república.

Eliseo Férnandez

Juan Carlos II foi proclamado rei a 22 de novembro de 1975, dois dias depois da morte de Francisco Franco. Escolhido pelo ditador para suceder-lhe como Chefe de Estado, Juan Carlos jurou as Leis Fundamentais do franquismo nesse ano, mas acabou por abdicar dos poderes autoritários.

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Segundo Manuel Marquez, especialista na Transição Democrática epanhola da Universidade Complutense de Madrid (UCM), Juan Carlos sabia que “a única possibilidade de a monarquia sobreviver era num sistema democrático”.

Ao contrário do que aconteceu em Portugal em 1974, a democracia espanhola não chegou num momento em que se rompeu com a ditadura. Não houve uma revolução, mas sim uma “transição ordenada”, diz Jose Manuel Ruano, professor de Ciência Política na Complutense. “Foram-se desmontando os elementos institucionais do regime franquista até chegar à democracia”, explica Ruano ao Observador.

E Juan Carlos foi “uma dessas peças que vêm da ditadura mas que constituem um elemento de mudança”, diz o professor de Ciência Política. “A monarquia foi uma solução para passar da ditadura à democracia”, continua.
Em 1977, quando se discute a nova Constituição espanhola, há um consenso generalizado relativamente à monarquia. A forma de Estado era considerada uma questão secundária: “Não havia um sentimento monárquico, mas um sentimento pragmático”, explica Jose Manuel Ruano.

Muitos consideravam que a figura de Juan Carlos manteria os franquistas controlados e impediria um golpe por parte do exército. Era a monarquia ou o regresso à ditadura. Santiago Carrillo, líder do Partido Comunista espanhol apoiou o regime monárquico por essa razão. Os socialistas abstiveram-se nessa questão. Com a aprovação da Constituição, a Espanha transformou-se numa monarquia parlamentar.

Mas o país tinha passado quarenta anos sem um rei e a monarquia que saiu desse pacto constitucional era “débil”, diz Ruano: “Depois da ditadura não havia um sentimento monárquico em Espanha”.

O golpe de 23 de fevereiro de 1981, levado a cabo por militares e cujo episódio mais emblemático foi o assalto ao Palácio das Cortes. Juan Carlos falou na televisão e condenou o golpe. Foi o momento de o rei “obter a legitimidade social que não tinha”, diz Jose Manuel Ruano.

Um referendo para a forma de Estado?

Depois da abdicação de Juan Carlos, no passado dia de 2 junho, levantaram-se vozes na esquerda radical espanhola pedindo um referendo à forma de Estado. Cinco dias depois, o El País divulgava uma sondagem que revelava que 62% dos espanhóis desejavam uma consulta para poder responder se queriam continuar na monarquia ou se preferiam mudar para a III república. De dentro do PSOE – um dos partidos do pacto constitucional – chegavam notícias de uma rebelião republicana no seio do partido.

Abraham Mendieta, 19 anos e Carmen Romero, 19, são dois estudantes de Ciência Política da UCM que se dizem republicanos e que defendem a ideia do referendo.  “Quando se aprovou a Constituição, foi num clima social de medo. Foi uma espécie de chantagem ao povo espanhol. Penso que ja superámos isso”, diz Abraham Mendieta. Carmen

Romero pensa que os governantes “têm medo de perguntar ao povo aquilo que eles querem verdadeiramente”. Um desses medos, diz Carmen, está relacionado com o precedente que se poderia abrir para os movimentos separatistas. “Poderia dar aos independentistas o direito de decidir”.

Para estes jovens, a monarquia e a democracia “contrapõem-se” e a pergunta do referendo, a existir um referendo, deveria ser: “monarquia ou democracia?”.

Abraham Mendieta e Carmen Romero

Jorge Vestrynge, professor na UCM, pensa que não realizar o referendo é um erro. “Se o fizesem ganharia a monarquia. Se não o fizerem, vão ficar sempre com essa dúvida”, diz. Vestrynge, que está ligado ao Podemos – partido que nas eleições europeias teve mais de um milhão de votos apesar da sua curta existência – e acha que em democracia “a Chefia de Estado não pode depender da velocidade ascendente de um espermatozóide, nem da velocidade descendente de um óvulo”.

Paloma Marugan, diretora do departamento de Ciência Política da UCM, também é a favor do referendo: “É um pecado original. A qualidade da democracia espanhola depende deste referendo”. Mas a professora critica a campanha feita pela esquerda em que se opõe a monarquia à democracia e diz que “não é verdade que se tivermos uma monarquia não estamos a cumprir os standards da democracia”.

Na mesma sondagem revelada pelo El País, 49% dos inquiridos diziam querer uma monarquia em que o rei fosse Felipe VI. A favor da república estariam 36% dos espanhóis. O jornal El Mundo também fez a pergunta e 55% do inquiridos disse querer que a Espanha continue uma monarquia.

Juan Camacho, 35 anos e Ivan Hita, 23 anos, são dois jovens monárquicos, próximos do PSOE e pensam que seria necessário fazer o referendo. “Quando nos perguntaram em 77 se queríamos a monarquia, aprovou-se a Constituição e nela vinha incluída a monarquia. Não era uma pergunta à parte e não foi debatido”, explica Juan Camacho, que também está convencido que na consulta ganharia a monarquia.

Eliseo Férnandez percebe o argumento de que um referendo legitimaria a monarquia, mas pensa que mais importante do que isso é “não passar por cima das leis”.  Opinião semelhante tem Ruben Herrero, professor de Relações Internacionais da UCM que diz ser “liberal no nível económico, conservador a nível social e monárquico”: “Um referendo seria terrível. Vai contra o marco normativo”. Para além disso, defende o professor, iria afetar a estabilidade do país. “Não podemos dar esta imagem aos mercados. Não podemos dizer: ‘Desculpem, estamos de referendo’”.

Manuel Marquez, próximo do PSOE, pensa que “levantar a bandeira republicana neste momento é mau”. Para Marquez, um referendo iria introduzir uma crise institucional “muito grave quando o país já tem problemas suficientes”. O professor explica que as instaurações republicanas em Espanha “chegaram sempre em momentos de crise” e que apesar de hoje “não existir o fascismo, existe a crise económica”.

Marquez pensa que a república não resolveria problemas “que não possam ser resolvidos com a monarquia” e que haveria um problema adicional, por causa da “mitificação” que se faz do regime republicano: “Ia produzir uma grande desilusão”.

O momento mais baixo da popularidade do rei

Paloma Marugan acha que os espanhóis também concebem a monarquia como “um mito”. A professora defende que a monarquia esteve “blindada” e “foi sustentada artificialmente”, falando de uma “auto-censura” dos média relativamente à Casa Real.

Jose Manuel Ruano concorda e explica este fenómeno com a existência de um “consenso tácito entre os principais partidos políticos e os meios da imprensa para proteger a instituição e converter a figura do rei num elemento central da transição”, na altura – antes de 1981 – em que a legitimidade do monarca era muito débil.

Para Jose Manuel Ruano, “o dique de proteção que existiu durante muitos anos em torno da casa real desmorona-se” quando Letizia é apresentada como namorada de Felipe e o passado da antiga jornalista começa a ser dissecados na imprensa cor-de-rosa. “Abre-se uma brecha sobre a casa real nesse momento e começam a criticar-se coisas que antes não eram criticadas ou conhecidas”, explica Ruano.

Segundo o Centro de Investigações Sociológicas (CIS), Juan Carlos abdicou no pior momento de popularidade da monarquia desde a transição. Em abril de 2014, os espanhóis atribuíam à Casa Real uma nota de 3,72 em 10 valores, um registo ligeiramente superior ao verificado em 2013 (3,68).

A popularidade da família real tem estado queda desde os últimos dez anos, mas, em 2011, os espanhóis deixaram de atribuir uma nota positiva e passaram a chumbar a coroa. Como escrevia o El País no dia da abdicação, o desgaste foi tal que o CIS passou a limitar e a restringir as perguntas sobre os reis nos seus estudos trimestrais.

A justificar estes resultados negativos estão histórias como a do envolvimento do genro de Juan Carlos, Iñaki Urdangarin, em casos de corrupção e fraude ou a polémica da caçada de elefantes no Botswana que obrigou o monarca a pedir desculpas publicamente.

“Sombras dentro de uma luz muito grande”. É desta forma que Juan Camacho explica que as “irresponsabilidades” do rei – de que diz não gostar – não tenham descredibilizado a monarquia aos seus olhos. Para ele, as principais vantagens deste regime consistem na “preparação que o filho de um rei tem e que um presidente da república eleito pode não ter” e no que considera a “imparcialidade do rei, que representa todos os espanhóis”. Para Ivan Hita, o melhor da monarquia é a “boa representação de Espanha no exterior” que pensa ser feita pelos monarcas.

Mario, estudante de Ciência Política anti-monárquico, tem 20 anos e pensa que “na época em que estamos já não há necessidade dessa representação”. “Temos um primeiro-ministro”, diz.
Iria, 19 anos é colega de Mario e acha que a monarquia “não representa a modernidade ou o progresso” e diz que a “linha de sangue é obsoleta”.

Uma sociedade monárquica, republicana ou indiferente?

Eliseo Férnandez, nasceu numa família que não é monárquica. Na verdade, evita discutir política com a mãe, que é republicana. O pai “não se mete em política, mas não é republicano”, diz. Eliseo pensa que o pai ilustra bem o que se passa na sociedade espanhola: “Muita gente é assim. Não desgostam da monarquia, nem são republicanos. Não querem saber”.

Paloma Marugan não acredita que a Espanha seja um país “fundamentalmente monárquico” e lembra a distinção que durante muito tempo se fez entre “monárquicos” e “Juancarlistas”. Depois da transição, “dizia-se que não havia monárquicos em Espanha, mas sim seguidores de Juan Carlos. Havia Juancarlistas”, explica Jose Manuel Ruano.

Juan Camacho também nasceu numa família onde o pai é “totalmente socialista republicano”. A mãe responde que não é monárquica, mas diz que “nem pensar” na república. Isto porque, diz Juan, viveu a Guerra Civil Espanhola.

Se, para os partidos do centro-esquerda, a II República espanhola “representa um oásis de liberdade e de direitos”, diz Jose Manuel Duran, para outra parte mais conservadora, “está associada a uma instabilidade política que leva a um golpe militar e que conduz a uma guerra civil”.

Ruben Herrero está convencido que “no pior dos casos, 60 a 40% dos espanhóis são monárquicos”. Manuel Marquez pensa que a base social republicana é constituída neste momento pela Esquerda Unida, o Podemos e alguns nacionalistas. E acha também que, a república poderia ter a maioria, mas que isto não acontece porque “a maioria pensa que a monarquia não é um obstáculo. Viram que não foi um obstáculo aos governos do PSOE”.

Os desafios de Felipe VI

O rei que esta quinta-feira é proclamado herda o trono no meio de uma grande crise económica (o desemprego em Espanha é de 26%) e a poucos meses de 9 de novembro, o dia que o Governo da Catalunha escolheu para realizar um referendo sobre a independência, apesar de o Governo Central e o Tribunal Constitucional terem declarado que a consulta seria ilegal.

Para além disso, Paloma Marugan pensa que Felipe, que se afastou da irmã Cristina, depois das investigações financeiras ao seu cunhado, “vai ter de ser mais contundente com a irmã do que Juan Carlos foi”.

Felipe é, nas palavras do antigo monarca, “o príncipe das Astúrias mais bem preparado”. Uma sondagem do El Mundo apontava que 57,5% dos inquiridos acreditavam que pode restaurar o prestígio perdido da família real.

Juan Camacho pensa que se Felipe VI reinar bem, “o movimento republicano perderá muita força”. O jovem, que diz ser monárquico e não juancarlista acha que o reinado do filho de Juan Carlos vai ser “a prova de fogo” para a monarquia.

“Agora é que vamos ver até que ponto é que os juancarlistas também são felipistas”, diz.

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