Abriram-se as portas da igreja a uma sexta-feira e ouviram-se os sinos quando se soube, em Vila Chã, Ponte de Lima, que Mariana estava de regresso a casa depois de cinco dias desaparecida de casa dos pais, que fica mesmo ao lado da capela de Santa Eulália, no cimo do lugar. E o lugar não é mais que um pequeno amontoado de casas em pedra, rodeado de campos de cultivo e videiras por agora secas, onde as mulheres carregam fardos de erva na cabeça e os equilibram como se fosse fácil, enquanto se demoram a relembrar a semana e esperam que Mariana volte de vez para a aldeia que sofreu com o seu desaparecimento como se fossem todos família.
A rapariga de 13 anos saiu de casa na passada segunda-feira, como todos os dias, no autocarro que a levaria à escola EB 2/3 António Feijó, em Ponte de Lima. Nunca entrou na escola e, quando a noite chegou, já estava em Aveiro, na companhia de Manuel Fernandes, que está preso à espera de ser julgado por rapto agravado e abuso sexual de menores.
A pergunta perpassa, num murmúrio, em todas as conversas: “Porque é que a Mariana saiu de casa?”. O café Beiral, em Vila Chã, é um espaço amplo mas um pouco escuro, com bilhar, mesas em contraplacado. Na televisão presa à parede começam a passar imagens destas ruas que eles conhecem tão bem. As oito pessoas que estavam nas mesas param a olhar para o écrã. Há um plano onde se vê o café onde todos estão sentados.
O que a terá levado a fazer a viagem para Aveiro “só ela sabe”, diz Manuel Rodrigues, dono deste estabelecimento onde Mariana vinha com os pais quase todos os domingos. “Talvez nem os pais ainda saibam porquê”, acrescenta.
Não havia, na personalidade de Mariana, nada que deixasse adivinhar o seu comportamento. Não era um “bichinho do mato”, nem sequer era introvertida, não respondia mal, não se lhe conhecem caprichos.
Manuel Rodrigues é da Quinta do Gato, onde outro Manuel, o Fernandes, suspeito nesta história, terá também vivido uma parte da sua adolescência. O dono do Beiral não conhece o rapaz, mas conhece bem Mariana, que “vem à missa todos os domingos”, “recolhe a esmola e anda na catequese” e “se senta aqui com os pais a tomar café sossegada, até mais calma do que os adolescentes que conheço”, diz, apontando para uma mesa ao pé da porta onde a família se costuma sentar.
Também Abílio Araújo, tesoureiro da Junta de Freguesia de Beiral do Lima, à qual pertence Vila Chã, conhece bem tanto Mariana como a sua família. “A Mariana é uma menina ativa, sorridente, simpática, que participa sempre em todas as festas da vila de Ponte de Lima, sempre entusiasmada e disposta a ajudar. E os pais também são membros ativos da nossa comunidade”, diz.
Amigo da família, Abílio Araújo está preocupado com o futuro de Mariana: “Ela tem que ser acompanhada antes de regressar à escola, os miúdos vão fazer perguntas, podem ser indelicados sem quererem e ela precisa de estar preparada para saber responder a isso”, diz.
Vila Chã é um lugar demasiado pequeno, e, agora, conhecido de todo o país. Do café Beiral até casa da Mariana são três quilómetros, por estradas estreitinhas e sempre a subir. Lá, as janelas estão fechadas.
Família unida
Na segunda-feira à noite, quando o autocarro que traz de volta as crianças de Ponte de Lima arrancou do lugar sem deixar Mariana, os pais correram à casa dos vizinhos, à espera que um dos adolescentes, que tinham ido para a escola com a jovem, tivessem notícias dela. Nada. “Não a vi na escola naquele dia, e foi o que eu lhes disse. Mas ouvi a Mariana a perguntar ao condutor o preço e quanto tempo demorava o autocarro de Ponte de Lima a Braga”, diz um dos colegas de Mariana.
As pessoas mais próximas da família de Mariana optam por não dar o nome aos jornalistas. Foi por causa da presença da comunicação social que Mariana e a família preferiram que a jovem ficasse uns dias em casa de uma amiga, onde estará a ser visitada diariamente por uma psicóloga da escola.
A mãe do rapaz que ouviu a pergunta de Mariana ao condutor do autocarro foi a primeira a receber os pais da adolescente quando a noite caiu e eles começaram a ficar preocupados. “Chegaram aqui e pediram-me para chamar o meu filho, para saberem se ele a tinha visto. Choravam, choravam. Eu não entendi o que se passava, porque eles nem conseguiam falar muito bem, depois é que me disseram que a Mariana não tinha ido à escola, nem tinha ainda aparecido em casa. Fiquei completamente em choque, a Mariana andava sempre com a mãe, é tão bem-educada, sempre ‘bom dia’ e ‘ boa tarde’ a toda a gente”, diz a mulher, que além de ter um filho na escola com Mariana também é uma amiga próxima de Lurdes Fernandes, mãe de Mariana.
A família é “extremamente unida” e isso nota-se, diz, “até nas pequenas coisas”. “O autocarro que os leva à escola passa mesmo ao pé da casa dela e o pai mesmo assim vem trazê-la e vai esperá-la todos os dias à camioneta”, acrescenta uma senhora velhinha, toda vestida de preto, que parece um pouco emocionada ao ouvir os vizinhos recordar a angústia desta semana.
Mas também se nota nas coisas maiores. Mariana é uma de cinco irmãos, são três raparigas e dois rapazes. A irmã mais velha e os dois irmãos estão na Córsega. Ela trabalha na área do turismo e os irmãos na construção civil. Mariana já lá foi com os pais várias vezes, e, em agosto, também os irmãos voltam com os filhos e as mulheres a Vila Chã. “Eu acho que ela disse aos pais que queria ir viver com os irmãos para a Córsega, mas isso pode ser uma coisa do momento, só porque tem vergonha ou medo de regressar à escola depois deste espetáculo todo”, diz a amiga de Lurdes Fernandes.
No monte de terra que fica na clareira entre duas casas de pedra, construídas enviesadas numa pequena colina, vão-se juntando vizinhos a falar da semana “terrível” que passaram. Temem e sofrem, na antecipação de que uma situação idêntica se pudesse passar nas suas famílias. “Uma pessoa não sabe deles umas poucas horas e fica logo aflita, imagine-se aqueles pais ao fim de três dias. Nessa noite ainda lhes disse que a menina devia ter passado a noite fora de casa com uma amiga e que voltava de manhã, mas na quarta à noite eu já pensava que não a encontraríamos”, recorda ainda a amiga da mãe de Mariana.
Vendo que a mãe estava a falar com um jornalista, a filha mais velha sai de casa e começa ela a fazer perguntas na esperança de que tenhamos respostas para as dúvidas que inquietam toda a população. A preocupação de todos, a palavra que ninguém diz e a pergunta que ninguém quer fazer, ela faz, embora não termine a frase: “Acham que ela foi…?” Ninguém sabe. O que sabem, e estão felizes por isso, é que a “Mariana não pareceu triste nem traumatizada”, concordam todos. Mas Mariana esteve apenas algumas horas em Vila Chã. Chegou na sexta-feira já da parte da tarde e no sábado de manhã a família saiu da terra.
“Eu matava o gajo”
Aproveitam-se os últimos raios de sol no café Beiral. Na esplanada estão dois homens, envolvidos num jogo de xadrez que lhes provoca reações mais comuns à última jornada da liga de futebol.
A curiosidade para saber o que realmente se passou com Mariana, tanto na sua cabeça para ter ficado fora de casa quase uma semana, como depois em Aveiro, já com o homem de 24 anos que mantinha perfis falsos na internet para alegadamente atrair jovens ao seu encontro, ocupa as cabeças de todos os habitantes que se vão juntando à porta do café. À medida que mais gente se vai envolvendo na conversa, os ânimos vão-se exaltando. Há netos e filhos de quase todos eles com a idade de Mariana, um ano abaixo, dois acima, e todos tentam pôr-se na pele da família da jovem.
“A minha filha tem mais um ano que a Mariana, 14, que supostamente é a idade do consentimento, diz a lei, mas para mim ela é uma criança, eu matava o gajo, e ele já andou por Ponte de Lima outras vezes”, afirma um cliente, irritado. Diz que o seu nome é “João” — “Não quero problemas”, responde sem que tenha havido uma pergunta.
Esta informação foi refutada ao Observador pelo diretor da escola EB 2/3 António Feijó, José António Fernandes da Silva, que está no cargo há oito anos. Garante “passar todos os dias na escola” e nunca ter visto “ninguém com o aspeto do suspeito”. Segundo o diretor, a escola está “extremamente atenta a todo o comportamento suspeito” pecando até por “excesso de zelo”. José Silva conta um episódio em que o pai de uma menor foi interrogado pelo porteiro enquanto tirava fotografias à filha e uma outra em que um menor “namorado de uma das raparigas das escola”, foi também questionado sobre as razões que o levavam a passar todos os dias à porta da escola.
“É óbvio que um sujeito com aquela aparência física, se lá tivesse aparecido, seria imediatamente identificado como estranho”, remata o responsável. José Silva confirmou que a escola está a acompanhar o caso de Mariana de perto, incluindo com apoio financeiro à extensa família da jovem, e com assistência psicológica prestada por uma profissional afeta à António Feijó.