Os últimos anos têm sido uma “tempestade perfeita” para o populismo. É assim que Cas Mudde, politólogo holandês radicado nos EUA e que dá aulas na Universidade da Georgia, explica o surgimento de várias forças políticas populistas — da esquerda à direita — um pouco por todo o mundo. Sobre Donald Trump, explica que este só pode ser combatido de forma eficaz se o movimento de protesto contra ele tiver visibilidade — e acredita que ele não vai mudar. “Qual é o homem de 70 anos que muda?”, ironiza ao Observador, antes de falar numa conferência da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre o tema “O que é o populismo?”.
O Observador ainda lhe lançou um desafio: quando confrontado com uma citação de um político populista, será capaz de identificar o seu autor? Cas Mudde aceitou tentar, mas deixou um aviso: “Eles dizem quase sempre o mesmo, por isso provavelmente não vou acertar nenhuma”. No final de contas acertou algumas — mas errou a maioria. Veja aqui o vídeo:
No livro que acaba de editar em Portugal (Populismo – Uma brevíssima introdução, Gradiva, 2017), refere que o rótulo de “populista” tem servido como uma espécie de acusação, ou até insulto, entre adversários. Tendo em conta o aparecimento de tantos políticos populistas um pouco por todo o mundo, acha que mais cedo do que tarde chamar alguém de “populista” passará a ser um elogio?
Não, embora se possa ver políticos que muitas vezes são apelidados de populistas que agora estão a começar a aceitar o rótulo, mas também a redefini-lo. Agora dizem: “Bom, se um populista é alguém que quer saber do povo, então eu sou um populista”. Mesmo que isso não seja, obviamente, o que o populismo é. Mas eu acho que, particularmente na Europa, o populismo é um termo negativo e vai continuar a sê-lo.
De que forma é que entende que os políticos populistas estão a tentar dar uma nova roupagem ao populismo?
Associando-o a uma ideia de democracia. Dizendo que “se o populismo significa que se ouve o homem comum, as pessoas verdadeiras, então eu sou um populista” ou que “se significa que estamos a par com as pessoas em vez de estarmos numa bolha cosmopolita, então somos populistas”. Isto era o que alguma direita radical já dizia na década de 1980 e de 1990 com o racismo, quando diziam “se o racismo significa que nós levamos o nosso povo a sério e que o colocamos à frente de estrangeiros, então sou racista”. É uma redefinição de um termo negativo para termos positivos e amplamente partilhados. O que, é evidente, não tem muito a ver com o termo verdadeiro.
Em poucas palavras… Nigel Farage: “É um convencido”
Qual é exatamente, o mal do populismo? Qual é o problema de apelar às massas, já que são elas que votam e são elas a quem os políticos terão de servir?
Esse não é o problema, isso é democrático. O problema do populismo está na sua essência, que é monista e moralista. Eles colocam o povo “puro” contra a elite “corrupta”. Eles acham que todas as pessoas são puras e então todas as pessoas têm os mesmos interesses e os mesmos valores, quando as coisas não são assim. Também a elite é visto como corrupta, embora nos países mais corruptos do mundo ainda haja políticos que não o são. Além disso, a corrupção só pode ter sucesso se uma parte significativa do povo faz parte dessa rede de corrupção. É altamente problemático haver uma distinção moral, porque se temos o povo “puro” de um lado e a elite “corrupta” do outro, nunca se chega a um compromisso, porque se os puros se comprometerem com os corruptos, então serão corrompidos. O que isto cria é uma política em que o outro lado é ilegítimo e não merece nada. E isso vai contra as regras democráticas, em particular as da democracia liberal, onde fações diferentes chegam a um entendimento.
Porque é que estamos a ver este crescimento dos populismos agora?
Até um certo ponto por questões antigas, que vão até a processos como a secularização ou a revolução pós-industrial, em que há mais pessoas no setor dos serviços e menos na indústria. Isso torna as pessoas menos integradas em subculturas e menos ligadas aos partidos do establishment, o que resulta na criação de um eleitor flutuante. Muitos deles poderiam votar em partidos do establishment, mas o que vimos nas duas últimas décadas foi um crescendo das críticas às elites por parte das pessoas com mais estudos. Depois, os media mudaram de forma profunda e estão hoje mais concentrados em escândalos de corrupção e em crítica. Em cima disso, surge a crise económica e a crise dos refugiados. Ou seja, foi criada a tempestade perfeita em que o populismo prospera. Mas algumas destas coisas são temporárias, como a Grande Recessão ou a crise dos refugiados. Outras são a longo prazo e não vão mudar. A volatilidade eleitoral ou a queda dos partidos do establishment é permanente. Mas o sucesso do populismo não é necessariamente permanente. Eles podem voltar a perder votos e as pessoas podem continuar a votar em novos partidos que não são populistas, como o Ciudadanos [em Espanha], por exemplo.
Em poucas palavras… Viktor Órban: “Inteligente e determinado. Ele sabe exatamente o que faz e tem tido um sucesso incrível em mudar o sistema húngaro para se manter no poder”.
Vamos falar dos EUA. Donald Trump é um homem rico, que passou a vida rodeado de pessoas que fazem parte uma elite urbana, muitas vezes liberal. Como é que um homem com este perfil conseguiu tornar-se numa espécie de porta-voz de cidadãos conservadores e do mundo rural ou da classe trabalhadora, de colarinho azul?
Parece estranho, mas ao mesmo tempo é bastante normal. Os partidos social-democratas têm sido, desde as suas origens, liderados por pessoas que não eram trabalhadores. Pense-se em Karl Marx ou até em Friederich Engels. Ou em Hitler, que era o poster boy para os arianos embora fosse baixo e tivesse cabelo escuro. Mas a distinção no populismo não é a riqueza, é a moralidade. E o que Donald Trump vende é “eu tenho os mesmos valores do que vocês, eu odeio o politicamente correto, eu quero dizer o que me apetece, eu acredito na América, na América verdadeira”. E isso permite pessoas ricas a tornarem-se na voz do homem comum. Há muitos exemplos. Silvio Berlusconi, que é um dos populistas com mais sucesso na história da Europa, é uma das pessoas mais ricas em Itália. Tem a ver com a forma como cada um se comporta, o que cada um diz, o que usa para se relacionar com o povo. Para lá disso, no contexto dos EUA, a riqueza não é vista de forma negativa. Por isso, ele é visto como um empresário que teve sucesso. E isso é bom. O ressentimento dos eleitores de Trump em relação aos ricos não é muito forte. O ressentimento vai antes para as pessoas que têm contactos e facilidades. Claro que Donald Trump tem contactos e facilidades, mas essa história não recebe muita atenção.
É interessante ouvi-lo a colocar Donald Trump e Karl Marx no mesmo patamar.
Sim, no sentido em que, ao longo dos tempos, quase todas as organizações dos oprimidos têm sido lideradas por pessoas que não são oprimidas. O Lenine tinha uma teoria sobre isso, que devia ser a vanguarda a liderar a classe trabalhadora. Mas isto é bastante comum. Marine Le Pen é bastante rica. Jörg Haider [antigo líder da extrema-direita austríaca, que chegou a ser parceiro minoritário do Governo entre 2000 e 2002] era bastante rico. Pim Fortuyn [extrema-direita da Holanda, assassinado em 2002] era exuberantemente gay, embora tivesse o eleitorado mais homofóbico da Holanda, tinha um motorista, dois cachorrinhos e um Jaguar que exibia sempre, ao contrário do que os holandeses fazem com a sua riqueza. Mas isso não importava, porque o que ele estava a vender era a moralidade, o ser pelo “povo verdadeiro” e um quebra-tabus. Isso dá-lhe muita margem de manobra.
Em poucas palavras… Pablo Iglesias: “Professor. Ele é um falso populista, que diz que é marxista mas que hoje em dia isso não vende, por isso é populista. Tudo o que ele faz é estudado e incrivelmente estudado”.
Depois do discurso do Estado da União de Donald Trump, houve quem tivesse dito que ele tinha soado como um moderado. Outros disseram mesmo que, pela primeira vez, falou como Presidente. Dias depois, parece ter voltado ao seu estilo inicial e acusou Barack Obama de ter colocado escutas na Trump Tower, mesmo sem ter provas. Será esta a maneira de Donald Trump encontrar um equilíbrio entre ser Presidente e um político populista?
Há dois tipos de políticos: o que tem guião e o que é espontâneo. O Trump sem guião é uma forma extrema de emoção e paranóia. Por isso, a diferença entre o Trump normal e o Trump com o guião é enorme. Mas o que Donald Trump fez foi ler um discurso escrito por outra pessoa, que escolheu ser menos combativa. O discurso foi muito interessante porque quando ele disse coisas como “devemos unir-nos e não podemos ser divisivos”, ele apontava sempre com a mão para os democratas. Sempre! Foi isso que ele acrescentou ao texto: “Vocês são o problema, vocês são o problema, vocês são o problema”. Por isso, não achei que o discurso fosse muito moderado. E ouvir comentadores liberais dizerem que ele foi muito presidenciável demonstra porque explorou a angústia da viúva de um soldado que morreu basicamente por uma operação que era dele, demonstra uns media incrivelmente superficiais. E também demonstra que há uma enorme vontade, entre liberais e conservadores, de pedir: “Por favor, não o deixem ser como ele é”. É como estivéssemos desesperados por qualquer sinal de que ele pode mudar. Mas ele não vai mudar. Qual é o homem de 70 anos que muda? Nessa idade ninguém muda e Donald Trump é quem ele é.
Como é que tem visto, a partir do estado sulista onde vive, a Georgia, estes primeiros tempos de Donald Trump?
Eu vivo um bocado numa bolha, porque vivo numa cidade universitária. Athens é, juntamente com Atlanta, a única zona democrata da Georgia. Mas o que se vê é normalização, a maior parte das pessoas simplesmente continua a viver a vida e tenta mentalizar-se de que temos um Presidente republicano. Há uma crença de que a democracia americana é muito forte e que não pode ser desfeita, porque é a América. Mas do outro lado há um medo entre estudantes que são liberais e sobretudo os que são de minorias, hispânicos ou outros. É um medo genuíno. No dia a seguir às eleições tínhamos bastantes estudantes a chorar. Há um país polarizado. Nas universidades, o lado republicano está muito silencioso. Mas sabemos que 85% de republicanos estão satisfeitos com a maneira de governar de Trump. Mas eu vivo numa bolha universitária e penso que os nossos estudantes que votaram em Trump tê-lo-ão feito relutantemente. Queriam votar no Partido Republicano e a única opção que havia era Trump.
Em poucas palavras… Beppe Grillo: “É um palhaço”.
E o resto dos estudantes são o que os media conservadores agora chamam, de forma jocosa e para gozar com uma alegada falta de resiliência, de “flocos de neve liberais”?
Certamente muitos acham que os liberais são exagerados. Eu não sei… O que eu acho mais incrível é que os americanos são obcecados com a Constituição deles, que acham que é o melhor texto do mundo, é como se Jesus tivesse descido à Terra para escrevê-la. E Trump já disse tantas coisas que vão contra a Constituição e ainda assim os americanos não estão alarmados. Ele é irresponsável no que diz respeito à ação militar e passa por cima dos generais. E os generais são muito estimados nos EUA, a militarização é enorme, eles são vistos como heróis. E mesmo isso não afeta. Há uma tolerância para o Trump que é verdadeiramente perturbante.
No seu livro fala da construção que os populistas fazem da sua própria ideia de “povo”, que adaptam consoante os seus objetivos. Mas como é que Donald Trump pode unir o povo americano quando o nível de divisão continua altíssimo e depois de ele ter vencido umas eleições em que perdeu no voto popular?
Eu acho que ele não tenta e que prefere redefinir o que é o povo.
Em poucas palavras… Geert Wilders: “Traumatizado. Ele vive há 13 anos sob vigilância total, 24 horas por dia. Como é que não haveria de ser traumatizado?”.
Mas não será isso uma fraqueza para um populista? Se ele não tentar apelar ao seu povo — o povo verdadeiro, não necessariamente apenas àqueles que encaixam na sua conceção de “povo” — isso não lhe trará problemas?
Só é um problema quando é visível. Quando se consegue dar uma nova definição de “povo” e do “país profundo”, isso chega para manter essas pessoas contentes e manter a polarização. O resto, se ficar invisível, não trará problemas. O que é pior para a narrativa de Donald Trump e para a sua posição são coisas como a Marcha das Mulheres, em que milhões de pessoas vão para as ruas e que demonstra que o “povo” que ele construiu não é o povo inteiro. Isto torna-se numa ameaça, porque a narrativa procura ter raízes democráticas e, se for claro que ele não fala por milhões e milhões de americanos, ele fica ameaçado. E ele é claramente vulnerável a isso. Ainda hoje fala dos números de pessoas na tomada de posse, ainda fica chateado com as manifestações nos town halls e diz que os manifestantes são pagos. Ele é muito vulnerável a tudo isto e por isso é que precisa dos seus comícios, porque tem de demonstrar que é popular e que fala para o povo.
Como é que o Partido Democrata pode dar a volta a esta situação sem recorrer a uma solução populista?
Neste momento, há duas pessoas. Há um grupo que simplesmente diz que precisamos de um populismo de esquerda, o que é errado e não tem funcionado em lado nenhum nem vai funcionar nos EUA. E o outro diz que temos de ser um partido inclusivo e assegurar-nos de que mais pessoas votam. Se os democratas conseguirem o eleitorado das minorias, vão ganhar as próximas eleições facilmente. O problema é que o Partido Democrata está à deriva. Há uma divisão terrível, está mal organizado e é particularmente fraco a nível estadual. Mesmo na Marcha das Mulheres e outros eventos o Partido Democrata é secundário. Mas isso até é bom, porque a mobilização deve ser pela democracia liberal em vez de partidária. Se o Partido Democrata tomar estes manifestantes como garantidos, simplesmente vai para a direita para tentar arranjar ainda mais eleitores, como Clinton fez, de certa maneira. Isso vai levar a que uma grande porção de jovens e minorias não vão votar, porque vão dizer que aquilo não é o partido deles.
Em poucas palavras… Hugo Chávez: “Uma desilusão. Ele teve sucesso ao início, mas no final tornou-se autoritário. Mas até aí defendeu as suas políticas, manteve-se no poder e era bastante popular”.
Em França, Os Republicanos escolheram François Fillon, o candidato mais à direita nas primárias e mais próximo da Frente Nacional. Na Holanda, o primeiro-ministro, Mark Rutte, tem cada vez mais uma postura anti-imigração, como Geert Wilders. Em Espanha, com o aparecimento do Podemos, as bases do PSOE chegaram-se para a esquerda. É impossível os partidos mainstream adaptarem-se à onda populista sem perderem parte da sua ideologia pelo caminho?
Eu acho que eles já perderem a sua ideologia e por isso é que vão tão facilmente para a esquerda e para a direita. Tudo isto é uma resposta ad hoc e é uma consequência de serem os populistas quem marca a agenda. Os partidos mainstream respondem apenas com alterações no sentido do discurso. Tudo isso tem efeitos muito reduzidos. Jean-Marie Le Pen já tinha dito nos anos 1990 que as pessoas preferem o original à cópia. Por isso, é uma postura de vistas curtas e não ajuda em nada. Quem está realmente preocupado com os muçulmanos não vai votar em Rutte, vai votar em Wilders, porque sabe que Wilders quer mesmo dizer aquelas coisas e vai fazer alguma coisa. Ao falar do Islão, Rutte dá relevância não só ao Islão também a Wilders. A melhor maneira de tornar os populistas de direita menos relevantes é falar de medidas socio-económicas, porque eles não têm muitas.
Em poucas palavras… Alexis Tsipras: “Está para lá das suas capacidades. Não estava de todo preparado para o que encontrou e no fundo é um político como os outros, que está disposto a fazer tudo para se manter no poder”.
As sondagens sugerem que Geert Wilders pode ganhar as eleições na Holanda, mas é pouco provável que ele venha a ter apoio parlamentar para formar um Governo. Mas será que estar na oposição é a melhor prenda para Geert Wilders, já que foi aí que ganhou importância?
Para ele é bom, mas ele quer mesmo governar, porque acredita mesmo que estamos numa luta contra o Islão global. Mas ele vai ficar numa posição confortável na oposição, porque será o partido da oposição contra um Governo de cinco ou seis partidos. Vai haver esta misturada de partidos que não são capazes de chegar a acordo em nada e ele será a voz coerente que está contra isso.
Então ele vai virar a seu favor a ideia de ser o representante do povo contra a “misturada política” e os políticos em geral. Ainda por cima contra os “políticos”, que hoje em dia é um insulto.
Claro. Ele vai dizer que “a única coisa que os mantém juntos é manterem-me longe do poder e eles querem manter-me longe do poder porque eu sou a vossa voz”. E esta é exatamente a narrativa populista. É dizer que eles são todos a mesma coisa. Quando as coisas se complicam, não importa se é conservador ou ecologista. O que interessa é ter poder. E ele vai vender esse Governo dessa maneira. E vai funcionar, mas não acho que os números de Geert Wilders vão disparar. A minha preocupação é que muitas pessoas deixem de votar. Vê-se que em muitos países a participação eleitoral está cada vez mais baixa e isso deve-se em parte a estas coligações para manter os populistas fora do poder e também por culpa dos partidos mainstream, que não conseguem inspirar ninguém e se tornaram em instituições ad hoc, pragmáticas. Há cada vez menos razões para votar neles, porque eles não vendem nada.
Em poucas palavras… Donald Trump: “Assustador. Eu acho, honestamente, que ele tem problemas mentais, é instável e incrivelmente volátil. Ao mesmo tempo, é a pessoa mais poderosa do mundo”.
Então acredita que, para além de precisarmos de falar sobre os partidos populistas, também devemos pensar um pouco mais sobre os partidos mainstream?
Completamente. Por duas razões. Primeiro, porque lhes falta uma narrativa convincente e liberal-democrática. Segundo, porque muitos deles estão a alimentar o nativismo, o autoritarismo e o populismo da direita radical ao adaptarem o discurso em vez das suas políticas. E assim eles enfraquecem a democracia liberal. O que o primeiro-ministro Rutte está a fazer neste momento é muito divisivo e problemático para um país inclusivo como a Holanda.