É talvez o último livro de Henry Kissinger. Afinal, o mais conhecido e mais controverso secretário de Estado das últimas décadas já tem 91 anos. Depois de “Da China”, chega-nos “A Ordem Mundial”, e as primeiras reacções são de que se trata de uma obra de referência, reveladora de um saber enciclopédico, um texto fiel à imagem de um autor conhecido pelo seu realismo no que respeita às relações internacionais.
De forma muito reveladora, o New York Times inicia a crítica desta obra com um desafio: imaginarmos como teria evoluído a política dos Estados Unidos se, depois do 11 de Setembro de 2001, ao leme da política externa estivesse Kissinger e não aqueles que o tinham duramente criticado nos 25 anos anteriores, isto é, primeiro os neoconservadores, depois a ala esquerda dos democratas. É um desafio que diz muito.
Neste “A Ordem Mundial”, que chega às livrarias portuguesas esta terça-feira, traça-se um panorama de como o conceito evoluiu antes de abordar os desafios da actualidade. Neste extracto que agora editamos, em pré-publicação, passa-se rapidamente por três continentes ao longo de três séculos, tendo como referência de partida a Paz de Vestefália.
Diversidade das ordens mundiais
Uma «ordem mundial» verdadeiramente global é coisa que nunca existiu. O que hoje passa por ordem foi concebido na Europa Ocidental, há cerca de quatro séculos, na região alemã de Vestefália, numa conferência de paz que não contou com a participação nem o conhecimento da maior parte dos outros continentes ou civilizações. Um século de conflitos sectários e convulsões políticas em toda a Europa Central culminara na Guerra dos Trinta Anos de 1618-1648, uma conflagração em que se combinaram disputas políticas e religiosas, em que as partes em conflito recorreram à «guerra total» contra centros populacionais, e em que cerca de um quarto da população da Europa Central caiu vítima do combate, da doença ou da fome. Exauridos, os participantes encontraram-se para acordar um conjunto de compromissos que pusesse fim ao banho de sangue. A unidade religiosa ficara fraturada com a afirmação e a expansão do protestantismo; a diversidade política refletia o nú- mero de unidades políticas autónomas que haviam combatido até ao impasse. E foi assim que a Europa assumiu uma configuração muito próxima do mundo contemporâneo: uma multiplicidade de unidades políticas, nenhuma suficientemente poderosa para derrotar todas as outras, muitas delas perfilhando filosofias e práticas internas contraditórias, e todas buscando regras neutrais capazes de regular as condutas e mitigar o conflito.
A paz vestefaliana traduzia um compromisso prático e realista, e não uma visão moral unívoca. Assentava num sistema de Esta- dos independentes que se abstinham de interferir nos assuntos internos uns dos outros, e que limitavam as ambições uns dos outros mediante um equilíbrio geral de poder. Dos conflitos europeus não resultara a prevalência de nenhuma verdade ou princípio universal. Em vez disso, a cada Estado foi atribuído o poder soberano sobre o seu território. Cada um reconheceria como realidades as estruturas internas e as vocações religiosas dos outros Estados seus pares e abster-se-ia de contestar a sua existência. Num equilíbrio de poder já entendido como coisa natural e desejável, as ambições dos governantes equilibrar-se-iam entre si, reduzindo, pelo menos em teoria, o âmbito dos conflitos. A divisão e a multiplicidade, acidentes da história europeia, acabaram por cunhar um novo sistema de ordem internacional dotado de uma perspetiva filosófica própria. Neste sentido, a concertação europeia para pôr termo ao conflito acabou por moldar e prefigurar as tendências modernas: reservou o juízo sobre o absoluto em favor do prático e do ecuménico e procurou destilar a ordem a partir da multiplicidade e da contenção.
A ideia de ordem mundial respeitava à área geográfica conhecida dos estadistas da época – um padrão que se repetiu em outras regiões. Isso aconteceu, em grande parte, porque a tecnologia da época não encorajava nem sequer permitia a gestão de um sistema global único.
Os negociadores seiscentistas que redigiram a Paz de Vestefália não julgavam estar a assentar as fundações de um sistema aplicável a todo o mundo. Não fizeram qualquer esforço para incluir a vizinha Rússia, que na época, findo o pesadelo de um «tempo de dificuldades», reconstruía a sua própria ordem consagrando princípios em clara contradição com o equilíbrio vestefaliano: um único soberano absoluto, uma ortodoxia religiosa unificada, e um programa de expansão territorial em todas as direções. Do mesmo modo, nem as outras grandes potências consideraram que o acordo de Vestefália fosse relevante para as suas regiões (se dele chegaram a tomar conhecimento).
A ideia de ordem mundial respeitava à área geográfica conhecida dos estadistas da época – um padrão que se repetiu em outras regiões. Isso aconteceu, em grande parte, porque a tecnologia da época não encorajava nem sequer permitia a gestão de um sistema global único. Sem meios para interagirem de forma consistente e sem uma moldura que permitisse avaliar o poder de determinada região em relação a outra, cada uma considerava a sua própria ordem como única e caracterizava as restantes como «bárbaras» – ou seja, governadas de forma incompreesível aos olhos do sistema institucionalizado, e irrelevante para si mesmo, exceto como ameaça. Cada região definia-se como padrão para a legítima organização de toda a humanidade, imaginando que ao governar o que tinha perante si estava a pôr ordem no mundo.
Situada em relação à Europa no extremo oposto da massa continental, a China era o centro de um conceito hierárquico e teoricamente universal de ordem. Era um sistema velho de milénios – vigorava já quando o Império Romano governou toda a Europa como unidade – e baseado não na igualdade soberana dos Estados, mas na presumível ausência de limite à soberania do imperador. Segundo este conceito, a soberania como era entendida na Europa não existia, já que o domínio do imperador se estendia a «tudo à face da Terra». Era o pináculo de uma hierarquia política e cultural, ilustre e universal, que irradiava do centro do mundo, da capital chinesa, para o resto da humanidade, dividida em graus diversos de barbárie, determinados sobretudo pela sua familiaridade com a escrita e as instituições culturais chinesas (uma cosmografia que subsistiu até bem tarde na era moderna). Segundo este ponto de vista, a China instilaria tanta mais ordem no mundo quanto deslumbrasse as outras sociedades com a sua magnificência cultural e a sua magnanimidade económica, atraindo-as para relações que pudessem conduzir ao objetivo de «harmonia sob os céus».
Na maior parte da área geográfica situada entre a Europa e a China, o conceito de ordem mundial predominante era o islâmico, com a sua visão de governação sancionada divinamente, que haveria de unificar e pacificar o mundo. Durante o século VII, o islão lançara-se em três continentes numa vaga sem precedentes de exaltação religiosa e expansão imperial. Depois de unificar o mundo árabe, juntar os restos do Império Romano e anexar o Império Persa, o islão passou a governar todo o Médio Oriente, o norte de África, grandes regiões da Ásia e porções da Europa. Na sua versão de ordem universal, o islão estava destinado a expandir-se pelo «reino da guerra», como apelidava as regiões habitadas por infiéis, até que o mundo inteiro fosse um sistema unitário conduzido à harmonia pela mensagem do profeta Maomé.
Enquanto a Europa erigia a sua ordem pluriestatal, o Império Otomano, centrado na Turquia, recuperava a reivindicação de um governo único e exclusivo, e estendia o seu domínio ao coração do mundo árabe, ao Mediterrâneo, aos Balcãs e à Europa Oriental. Tinha consciência da ordem interestatal nascente na Europa, mas considerava-a não um modelo, mas uma fonte de divisão a explorar em prol da expansão otomana para ocidente. Foi nos seguintes termos que o sultão Maomé II, o Conquistador, admoestou as cidades-estados italianas do século XV que praticavam uma versão precoce da multipolaridade: «Sois 20 Estados… entregais-vos a divergências entre vós… Deve haver tão-só um império, uma fé, e uma soberania no mundo.»
Entretanto, do outro lado do Atlântico estavam a ser lançados os alicerces de uma visão diferente da ordem mundial, no «Novo Mundo». Enquanto na Europa do século XVII grassavam os conflitos políticos e sectários, os colonizadores puritanos entregavam-se a uma «missão de desbravamento», que os libertaria da obediência às estruturas de autoridade estabelecidas (a seu ver, corruptas). Aí edificariam, segundo a prédica do governador John Winthrop feita em 1630 a bordo de um navio que rumava à colónia de Massachusetts, uma «cidade sobre a colina», inspirando o mundo através da justeza dos seus princípios e da força do seu exemplo.
Na visão americana da ordem mundial, a paz e o equilíbrio ocorreriam naturalmente e as velhas inimizades seriam postas de lado logo que as outras nações acedessem à mesma participação organizada na governação que os americanos tinham. A seu tempo, os Estados Unidos tornar-se-iam campeões indispensáveis da ordem que a Europa concebera. Todavia, mesmo enquanto os Estados Unidos punham todo o seu empenho nesse esforço, sobrevivia uma certa ambivalência. É que a visão americana assentava não na adoção do sistema europeu de equilíbrio de poder, mas na expansão dos princípios democráticos, de que resultaria o triunfo da paz.
De todos estes conceitos de ordem, quando escrevo, os princípios de Vestefália são os únicos que gozam de aceitação geral como base da ordem mundial vigente. O sistema vestefaliano foi sendo adotado como moldura da ordem internacional assente em Estados, e alastrou a múltiplas civilizações e regiões geográficas porque, durante o processo de expansão, as nações europeias levaram consigo o seu modelo de ordem internacional. Embora a aplicação dos conceitos de soberania às colónias e aos povos colonizados fosse muitas vezes negligenciada, esses mesmos povos, quando começaram a exigir a independência nacional, fizeram-no em nome de conceitos vestefalianos. Os princípios de independência nacional, de soberania do Estado, de interesse nacional e de não interferência acabaram por revelar-se bons argumentos contra os próprios colonizadores durante as lutas de independência e afirmação dos novos Estados a que deram origem.
O sistema vestefaliano contemporâneo, que hoje é global – e a que coloquialmente chamamos comunidade internacional –, tem-se empenhado em conter a natureza anárquica do mundo. Fá-lo mediante uma ampla rede de estruturas jurídicas e institucionais internacionais, concebidas para promover o comércio livre e um sistema financeiro internacional estável, promulgar princípios geralmente aceites de solução de conflitos internacionais, e estabelecer limites à condução da guerra, quando sobrevém. Este sistema de Estados engloba hoje todas as culturas e regiões. As suas instituições proporcionaram uma moldura neutral para a interação das diversas sociedades – em grande medida, independentemente dos valores que perfilham.
E, no entanto, os princípios vestefalianos estão a ser contestados em todo o lado, por vezes em nome da própria ordem mundial. A Europa propôs-se abandonar o sistema de Estados que concebeu e transcendê-lo mediante um conceito de soberania partilhada. Ironicamente, e embora tenha sido ela a inventar o conceito de equilíbrio de poder, é a Europa que vem limitando, substancial e intencionalmente, o elemento de poder nas suas novas instituições. Tendo reduzido o seu poderio militar, a Europa tem pouca capacidade de resposta perante a violação de normas universais.
No Médio Oriente, jihadistas de ambos os lados da fratura sunita-xiita desarticulam as sociedades e desmantelam Estados em nome de sonhos de uma revolução global assente na versão fundamentalista da sua religião. O próprio Estado, bem como o sistema regional nele baseado, está em risco perante o assalto de ideologias que rejeitam as suas restrições, tidas por ilegítimas, e de milícias terroristas que em alguns países são mais fortes do que as forças armadas nacionais.
A Ásia, que é a vários títulos e entre todas as regiões o mais impressionante caso de sucesso na adoção de conceitos de soberania estatal, ainda recorda com nostalgia conceitos alternativos de ordem, e debate-se com rivalidades e reivindicações históricas do mesmo tipo das que há um século abalaram a ordem europeia. Quase to- dos os países se consideram em «ascensão» e as disputas são levadas até ao limiar do confronto.
Os Estados Unidos têm alternado entre, por um lado, uma posição de defesa do sistema vestefaliano e, por outro, a crítica das suas premissas de equilíbrio de poder e de não interferência nos assuntos internos de outros Estados, apodadas de imorais e antiquadas (e, por vezes, as duas posições ao mesmo tempo). Continuam a afirmar a relevância universal daqueles valores para a construção de uma ordem mundial pacífica e a reservar-se o direito de os defender globalmente. Todavia, depois de se ter, no tempo de duas gerações, retirado de três guerras – todas desencadeadas com intenções idealistas e amplo apoio público e concluídas com trauma nacional –, a América não consegue definir uma relação segura entre o seu poderio (ainda imenso) e os seus valores.
A ordem sem liberdade, ainda que alicerçada numa exaltação momentânea, acaba por gerar os seus próprios anticorpos; mas a liberdade não pode ser garantida nem preservada sem uma moldura de ordem que preserve a paz.
Todos os principais centros de poder adotam elementos da ordem vestefaliana, mas nenhum se considera o defensor natural do sistema. Todos estão a viver mudanças internas consideráveis. Regiões com tão diversas culturas, histórias e teorias tradicionais da ordem poderão convergir na legitimidade de um sistema comum?
O sucesso de tal empreendimento exige uma abordagem que respeite tanto a multiplicidade da condição humana como a intrínseca aspiração de liberdade. Neste sentido, a ordem tem de ser cultivada, não pode ser imposta. E isto é especialmente verdade para uma época de comunicação instantânea e de fluxos políticos revolucionários.
Para ser sustentável, qualquer sistema de ordem mundial terá de ser considerado justo não só pelos governos, mas também pelos cidadãos. Terá de assentar em dois axiomas: a ordem sem liberdade, ainda que alicerçada numa exaltação momentânea, acaba por gerar os seus próprios anticorpos; mas a liberdade não pode ser garantida nem preservada sem uma moldura de ordem que preserve a paz. Por vezes referidas como polos opostos do espectro da experiência, ordem e liberdade devem, pelo contrário, ser entendidas como interdependentes. Saberão os líderes da atualidade erguer-se acima das urgências quotidianas para alcançar esse equilíbrio?