891kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Explicação da ordem mundial em cinco séculos e três continentes

Henry Kissinger reincidiu. O velho político, conselheiro, académico, voltou a escrever uma obra de referência. Agora sobre "A Ordem Mundial". O Observador pré-publica um extrato desse livro.

É talvez o último livro de Henry Kissinger. Afinal, o mais conhecido e mais controverso secretário de Estado das últimas décadas já tem 91 anos. Depois de “Da China”, chega-nos “A Ordem Mundial”, e as primeiras reacções são de que se trata de uma obra de referência, reveladora de um saber enciclopédico, um texto fiel à imagem de um autor conhecido pelo seu realismo no que respeita às relações internacionais.

De forma muito reveladora, o New York Times inicia a crítica desta obra com um desafio: imaginarmos como teria evoluído a política dos Estados Unidos se, depois do 11 de Setembro de 2001, ao leme da política externa estivesse Kissinger e não aqueles que o tinham duramente criticado nos 25 anos anteriores, isto é, primeiro os neoconservadores, depois a ala esquerda dos democratas. É um desafio que diz muito.

_opt_VOLUME1_CAPAS-UPLOAD_CAPAS_GRUPO_LEYA_DQUIXOTE_EGM_9789722056236_a_ordem_mundial

Neste “A Ordem Mundial”, que chega às livrarias portuguesas esta terça-feira, traça-se um panorama de como o conceito evoluiu antes de abordar os desafios da actualidade. Neste extracto que agora editamos, em pré-publicação, passa-se rapidamente por três continentes ao longo de três séculos, tendo como referência de partida a Paz de Vestefália.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Diversidade das ordens mundiais

Uma «ordem mundial» verdadeiramente global é coisa que nunca existiu. O que hoje passa por ordem foi concebido na Europa Ocidental, há cerca de quatro séculos, na região alemã de Vestefália, numa conferência de paz que não contou com a participação nem o conhecimento da maior parte dos outros continentes ou civilizações. Um século de conflitos sectários e convulsões políticas em toda a Europa Central culminara na Guerra dos Trinta Anos de 1618-1648, uma conflagração em que se combinaram disputas políticas e religiosas, em que as partes em conflito recorreram à «guerra total» contra centros populacionais, e em que cerca de um quarto da população da Europa Central caiu vítima do combate, da doença ou da fome. Exauridos, os participantes encontraram-se para acordar um conjunto de compromissos que pusesse fim ao banho de sangue. A unidade religiosa ficara fraturada com a afirmação e a expansão do protestantismo; a diversidade política refletia o nú- mero de unidades políticas autónomas que haviam combatido até ao impasse. E foi assim que a Europa assumiu uma configuração muito próxima do mundo contemporâneo: uma multiplicidade de unidades políticas, nenhuma suficientemente poderosa para derrotar todas as outras, muitas delas perfilhando filosofias e práticas internas contraditórias, e todas buscando regras neutrais capazes de regular as condutas e mitigar o conflito.

Os negociadores seiscentistas que redigiram a Paz de Vestefália não julgavam estar a assentar as fundações de um sistema aplicável a todo o mundo. Nem as outras grandes potências consideraram que o acordo de Vestefália fosse relevante para as suas regiões (se dele chegaram a tomar conhecimento).

A paz vestefaliana traduzia um compromisso prático e realista, e não uma visão moral unívoca. Assentava num sistema de Esta- dos independentes que se abstinham de interferir nos assuntos internos uns dos outros, e que limitavam as ambições uns dos outros mediante um equilíbrio geral de poder. Dos conflitos europeus não resultara a prevalência de nenhuma verdade ou princípio universal. Em vez disso, a cada Estado foi atribuído o poder soberano sobre o seu território. Cada um reconheceria como realidades as estruturas internas e as vocações religiosas dos outros Estados seus pares e abster-se-ia de contestar a sua existência. Num equilíbrio de poder já entendido como coisa natural e desejável, as ambições dos governantes equilibrar-se-iam entre si, reduzindo, pelo menos em teoria, o âmbito dos conflitos. A divisão e a multiplicidade, acidentes da história europeia, acabaram por cunhar um novo sistema de ordem internacional dotado de uma perspetiva filosófica própria. Neste sentido, a concertação europeia para pôr termo ao conflito acabou por moldar e prefigurar as tendências modernas: reservou o juízo sobre o absoluto em favor do prático e do ecuménico e procurou destilar a ordem a partir da multiplicidade e da contenção.

A ideia de ordem mundial respeitava à área geográfica conhecida dos estadistas da época – um padrão que se repetiu em outras regiões. Isso aconteceu, em grande parte, porque a tecnologia da época não encorajava nem sequer permitia a gestão de um sistema global único.

Os negociadores seiscentistas que redigiram a Paz de Vestefália não julgavam estar a assentar as fundações de um sistema aplicável a todo o mundo. Não fizeram qualquer esforço para incluir a vizinha Rússia, que na época, findo o pesadelo de um «tempo de dificuldades», reconstruía a sua própria ordem consagrando princípios em clara contradição com o equilíbrio vestefaliano: um único soberano absoluto, uma ortodoxia religiosa unificada, e um programa de expansão territorial em todas as direções. Do mesmo modo, nem as outras grandes potências consideraram que o acordo de Vestefália fosse relevante para as suas regiões (se dele chegaram a tomar conhecimento).

A ideia de ordem mundial respeitava à área geográfica conhecida dos estadistas da época – um padrão que se repetiu em outras regiões. Isso aconteceu, em grande parte, porque a tecnologia da época não encorajava nem sequer permitia a gestão de um sistema global único. Sem meios para interagirem de forma consistente e sem uma moldura que permitisse avaliar o poder de determinada região em relação a outra, cada uma considerava a sua própria ordem como única e caracterizava as restantes como «bárbaras» – ou seja, governadas de forma incompreesível aos olhos do sistema institucionalizado, e irrelevante para si mesmo, exceto como ameaça. Cada região definia-se como padrão para a legítima organização de toda a humanidade, imaginando que ao governar o que tinha perante si estava a pôr ordem no mundo.

O imperador chinês era visto como o pináculo de uma hierarquia política e cultural, ilustre e universal, que irradiava do centro do mundo

Situada em relação à Europa no extremo oposto da massa continental, a China era o centro de um conceito hierárquico e teoricamente universal de ordem. Era um sistema velho de milénios – vigorava já quando o Império Romano governou toda a Europa como unidade – e baseado não na igualdade soberana dos Estados, mas na presumível ausência de limite à soberania do imperador. Segundo este conceito, a soberania como era entendida na Europa não existia, já que o domínio do imperador se estendia a «tudo à face da Terra». Era o pináculo de uma hierarquia política e cultural, ilustre e universal, que irradiava do centro do mundo, da capital chinesa, para o resto da humanidade, dividida em graus diversos de barbárie, determinados sobretudo pela sua familiaridade com a escrita e as instituições culturais chinesas (uma cosmografia que subsistiu até bem tarde na era moderna). Segundo este ponto de vista, a China instilaria tanta mais ordem no mundo quanto deslumbrasse as outras sociedades com a sua magnificência cultural e a sua magnanimidade económica, atraindo-as para relações que pudessem conduzir ao objetivo de «harmonia sob os céus».

A visão de ordem do Império Otomano baseava-se na ideia de que devia haver "tão-só um império, uma fé, e uma soberania no mundo"

Na maior parte da área geográfica situada entre a Europa e a China, o conceito de ordem mundial predominante era o islâmico, com a sua visão de governação sancionada divinamente, que haveria de unificar e pacificar o mundo. Durante o século VII, o islão lançara-se em três continentes numa vaga sem precedentes de exaltação religiosa e expansão imperial. Depois de unificar o mundo árabe, juntar os restos do Império Romano e anexar o Império Persa, o islão passou a governar todo o Médio Oriente, o norte de África, grandes regiões da Ásia e porções da Europa. Na sua versão de ordem universal, o islão estava destinado a expandir-se pelo «reino da guerra», como apelidava as regiões habitadas por infiéis, até que o mundo inteiro fosse um sistema unitário conduzido à harmonia pela mensagem do profeta Maomé.

Enquanto a Europa erigia a sua ordem pluriestatal, o Império Otomano, centrado na Turquia, recuperava a reivindicação de um governo único e exclusivo, e estendia o seu domínio ao coração do mundo árabe, ao Mediterrâneo, aos Balcãs e à Europa Oriental. Tinha consciência da ordem interestatal nascente na Europa, mas considerava-a não um modelo, mas uma fonte de divisão a explorar em prol da expansão otomana para ocidente. Foi nos seguintes termos que o sultão Maomé II, o Conquistador, admoestou as cidades-estados italianas do século XV que praticavam uma versão precoce da multipolaridade: «Sois 20 Estados… entregais-vos a divergências entre vós… Deve haver tão-só um império, uma fé, e uma soberania no mundo.»

Na América nascia uma «cidade sobre a colina», com a ambição de inspirar o mundo através da justeza dos seus princípios e da força do seu exemplo

Entretanto, do outro lado do Atlântico estavam a ser lançados os alicerces de uma visão diferente da ordem mundial, no «Novo Mundo». Enquanto na Europa do século XVII grassavam os conflitos políticos e sectários, os colonizadores puritanos entregavam-se a uma «missão de desbravamento», que os libertaria da obediência às estruturas de autoridade estabelecidas (a seu ver, corruptas). Aí edificariam, segundo a prédica do governador John Winthrop feita em 1630 a bordo de um navio que rumava à colónia de Massachusetts, uma «cidade sobre a colina», inspirando o mundo através da justeza dos seus princípios e da força do seu exemplo.

Na visão americana da ordem mundial, a paz e o equilíbrio ocorreriam naturalmente e as velhas inimizades seriam postas de lado logo que as outras nações acedessem à mesma participação organizada na governação que os americanos tinham. A seu tempo, os Estados Unidos tornar-se-iam campeões indispensáveis da ordem que a Europa concebera. Todavia, mesmo enquanto os Estados Unidos punham todo o seu empenho nesse esforço, sobrevivia uma certa ambivalência. É que a visão americana assentava não na adoção do sistema europeu de equilíbrio de poder, mas na expansão dos princípios democráticos, de que resultaria o triunfo da paz.

O sistema vestefaliano contemporâneo, que hoje é global – e a que chamamos comunidade internacional –, tem-se empenhado em conter a natureza anárquica do mundo. Fá-lo mediante uma ampla rede de estruturas jurídicas e institucionais internacionais, concebidas para promover o comércio livre e um sistema financeiro internacional estável

De todos estes conceitos de ordem, quando escrevo, os princípios de Vestefália são os únicos que gozam de aceitação geral como base da ordem mundial vigente. O sistema vestefaliano foi sendo adotado como moldura da ordem internacional assente em Estados, e alastrou a múltiplas civilizações e regiões geográficas porque, durante o processo de expansão, as nações europeias levaram consigo o seu modelo de ordem internacional. Embora a aplicação dos conceitos de soberania às colónias e aos povos colonizados fosse muitas vezes negligenciada, esses mesmos povos, quando começaram a exigir a independência nacional, fizeram-no em nome de conceitos vestefalianos. Os princípios de independência nacional, de soberania do Estado, de interesse nacional e de não interferência acabaram por revelar-se bons argumentos contra os próprios colonizadores durante as lutas de independência e afirmação dos novos Estados a que deram origem.

O sistema vestefaliano contemporâneo, que hoje é global – e a que coloquialmente chamamos comunidade internacional –, tem-se empenhado em conter a natureza anárquica do mundo. Fá-lo mediante uma ampla rede de estruturas jurídicas e institucionais internacionais, concebidas para promover o comércio livre e um sistema financeiro internacional estável, promulgar princípios geralmente aceites de solução de conflitos internacionais, e estabelecer limites à condução da guerra, quando sobrevém. Este sistema de Estados engloba hoje todas as culturas e regiões. As suas instituições proporcionaram uma moldura neutral para a interação das diversas sociedades – em grande medida, independentemente dos valores que perfilham.

Ironicamente a Europa propôs-se abandonar o sistema de Estados que concebeu com Vestefália e transcendê-lo mediante um conceito de soberania partilhada

E, no entanto, os princípios vestefalianos estão a ser contestados em todo o lado, por vezes em nome da própria ordem mundial. A Europa propôs-se abandonar o sistema de Estados que concebeu e transcendê-lo mediante um conceito de soberania partilhada. Ironicamente, e embora tenha sido ela a inventar o conceito de equilíbrio de poder, é a Europa que vem limitando, substancial e intencionalmente, o elemento de poder nas suas novas instituições. Tendo reduzido o seu poderio militar, a Europa tem pouca capacidade de resposta perante a violação de normas universais.

Todos os principais centros de poder adotam elementos da ordem vestefaliana, mas nenhum se considera o defensor natural do sistema. Todos estão a viver mudanças internas consideráveis. Regiões com tão diversas culturas, histórias e teorias tradicionais da ordem poderão convergir na legitimidade de um sistema comum?

No Médio Oriente, jihadistas de ambos os lados da fratura sunita-xiita desarticulam as sociedades e desmantelam Estados em nome de sonhos de uma revolução global assente na versão fundamentalista da sua religião. O próprio Estado, bem como o sistema regional nele baseado, está em risco perante o assalto de ideologias que rejeitam as suas restrições, tidas por ilegítimas, e de milícias terroristas que em alguns países são mais fortes do que as forças armadas nacionais.

A Ásia, que é a vários títulos e entre todas as regiões o mais impressionante caso de sucesso na adoção de conceitos de soberania estatal, ainda recorda com nostalgia conceitos alternativos de ordem, e debate-se com rivalidades e reivindicações históricas do mesmo tipo das que há um século abalaram a ordem europeia. Quase to- dos os países se consideram em «ascensão» e as disputas são levadas até ao limiar do confronto.

Os Estados Unidos têm alternado entre, por um lado, uma posição de defesa do sistema vestefaliano e, por outro, a crítica das suas premissas de equilíbrio de poder e de não interferência nos assuntos internos de outros Estados, apodadas de imorais e antiquadas (e, por vezes, as duas posições ao mesmo tempo). Continuam a afirmar a relevância universal daqueles valores para a construção de uma ordem mundial pacífica e a reservar-se o direito de os defender globalmente. Todavia, depois de se ter, no tempo de duas gerações, retirado de três guerras – todas desencadeadas com intenções idealistas e amplo apoio público e concluídas com trauma nacional –, a América não consegue definir uma relação segura entre o seu poderio (ainda imenso) e os seus valores.

A ordem sem liberdade, ainda que alicerçada numa exaltação momentânea, acaba por gerar os seus próprios anticorpos; mas a liberdade não pode ser garantida nem preservada sem uma moldura de ordem que preserve a paz.

Todos os principais centros de poder adotam elementos da ordem vestefaliana, mas nenhum se considera o defensor natural do sistema. Todos estão a viver mudanças internas consideráveis. Regiões com tão diversas culturas, histórias e teorias tradicionais da ordem poderão convergir na legitimidade de um sistema comum?

O sucesso de tal empreendimento exige uma abordagem que respeite tanto a multiplicidade da condição humana como a intrínseca aspiração de liberdade. Neste sentido, a ordem tem de ser cultivada, não pode ser imposta. E isto é especialmente verdade para uma época de comunicação instantânea e de fluxos políticos revolucionários.

Saberão os líderes da atualidade erguer-se acima das urgências quotidianas para alcançar o necessário equilíbrio?

Para ser sustentável, qualquer sistema de ordem mundial terá de ser considerado justo não só pelos governos, mas também pelos cidadãos. Terá de assentar em dois axiomas: a ordem sem liberdade, ainda que alicerçada numa exaltação momentânea, acaba por gerar os seus próprios anticorpos; mas a liberdade não pode ser garantida nem preservada sem uma moldura de ordem que preserve a paz. Por vezes referidas como polos opostos do espectro da experiência, ordem e liberdade devem, pelo contrário, ser entendidas como interdependentes. Saberão os líderes da atualidade erguer-se acima das urgências quotidianas para alcançar esse equilíbrio?

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.