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Ana Catarina Mendes, deputada e secretária-geral-adjunta do PS, deu esta quinta-feira uma conferência de imprensa no Parlamento a defender a posição do partido relativamente às alterações à lei de financiamento partidário. Já depois de os vários grupos parlamentares que aprovaram a lei — à exceção do Bloco de Esquerda — terem emitido um comunicado a esclarecer as alterações introduzidas, foi a vez da socialista fazer a defesa do diploma.
A número dois do PS deixou quatro garantias: que não há alterações às regras de isenção do IVA para os partidos, que a nova lei não terá efeitos retroativos, que não está em causa uma maior transferência de dinheiro público para os cofres dos partidos e que o fim do limite para angariação de fundos foi uma recomendação do Tribunal Constitucional. Tem razão?
Não há alterações à isenção do IVA para os partidos?
A frase
“Não há nenhuma alteração à norma que isenta os partidos políticos do pagamento do IVA.”
O que está em causa?
É uma das alterações que mais controvérsia tem causado: as alterações à lei do financiamento partidário significam que os partidos estão agora totalmente isentos de pagar IVA? Os partidos que aprovaram a nova lei consideram que não, que o que se procurou foi apenas clarificar as regras atualmente em vigor. Fiscalistas e especialistas em matéria de financiamento partidário discordam. Quem tem razão?
Quais são os factos
De acordo com a lei anterior, os partidos já podiam pedir junto da Autoridade Tributária a devolução do IVA sempre que estivesse em causa a “aquisição e transmissão de bens e serviços” que visassem “difundir a sua mensagem política ou identidade própria, através de quaisquer suportes, impressos, audiovisuais ou multimédia, incluindo os usados como material de propaganda e meios de comunicação e transporte”. Mas também quando estivessem em causa ações de angariação de fundos.
A nova lei tem uma formulação diferente. Agora, os partidos vão poder pedir ao fisco a devolução do IVA para a “totalidade de aquisições de bens e serviços para a sua [dos partidos] atividade”.
Para Ana Catarina Mendes, o que os partidos fizeram foi apenas “clarificar a norma no sentido de a isenção ser relativa à atividade dos partidos – a qual, como resulta também da lei dos partidos, é de natureza estritamente política” – e “superar apreciações discricionárias da administração [tributária] sem alterar a regra da isenção já existente”. Ou seja, continuou a socialista, procurou-se “evitar o recurso aos tribunais por dúvidas de interpretação, uma vez que se torna a norma mais explícita e mais transparente”.
Em causa estão os diferendos existentes entre os partidos e a Autoridade Tributária sobre o que era, afinal, a difusão da “mensagem política ou identidade própria” e em que casos se justificava ou não a devolução do IVA. Na nova lei, essa definição desaparece, pelo que os partidos podem agora pedir a devolução desse imposto para tudo o que considerem fazer parte da sua gestão corrente. Por outras palavras: os partidos estão agora totalmente isentos de pagar IVA.
Foi esse o entendimento de Rui Rio, mas também de Santana Lopes, que disse ser “incompreensível” o facto de o PSD aprovar esta lei. E de Jorge Coelho, por exemplo, que na SIC Notícias foi claro: “O que está em causa nesta lei é alargar a área do não pagamento [do IVA]”, explicou o ex-ministro e antigo homem do aparelho socialista. Mas não foram os únicos a denunciar este aspeto da nova lei.
Em declarações à TVI, Margarida Salema, ex-presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, colocou as coisas assim: com estas novas regras, a “Autoridade Tributária deixa de poder fazer o crivo” sobre o que são despesas inerentes à atividade política e o “Estado tem de restituir a totalidade do IVA”.
Ou, como escreve esta quinta-feira o Jornal de Negócios, citando vários fiscalistas, os partidos poderão agora reclamar a devolução do IVA junto do fisco para gastos que tiveram com mobiliário, computadores, pareceres jurídicos ou decoração, passando a ter um regime mais favorável do que as IPSS, por exemplo.
Depois, há outro detalhe que promete criar alguma controvérsia: é que nem os partidos que aprovaram esta lei parecem entender-se em relação ao conceito de atividade política e em que é que isso têm reflexos na isenção do IVA. O PS, pela voz de Ana Catarina Mendes, veio esta quinta-feira dizer que a atividade dos partidos “é de natureza estritamente política”, ou seja, tudo o que adquirem em bens e serviços é feita no âmbito da sua atividade política e portanto deve estar isento de IVA.
Já PCP e PEV parecem ter um entendimento contrário. Na quarta-feira, os comunistas emitiram um comunicado onde diziam que as alterações às regras de isenção do IVA serviam “para pôr fim à discricionaridade de interpretações que tem existido por parte da Autoridade Tributária, ao mesmo tempo que se mantém o pagamento para tudo o que não tem a ver com atividade política“.
Esta quinta-feira, o PEV enviou uma nota às redações com o mesmo argumento: “Não se pode com isto dizer que os partidos políticos ficam agora isentos de IVA em tudo, porque o que não se reportar à sua atividade política continua a estar sujeito ao pagamento devido do imposto“.
Ou seja, a nova lei parece não ter clarificado nada. Nem os partidos que a aprovaram parecem concordar em relação ao conceito das despesas que podem ser consideradas como decorrentes da normal atividade política e portanto isentas de IVA. A lei fala em “totalidade”, o PS parece interpretar o mesmo, mas comunistas e ecologistas admitem exceções.
A discussão mantém-se, por isso: os partidos têm ou não isenção total do IVA? A compra de uma caneta deve estar isenta de imposto? E compra de um barril de cerveja para o bar do partido? Ou a aquisição de cadeiras para um congresso partidário?
O Observador tentou esclarecer estas questões junto de PS, PCP e PEV — os três partidos que manifestaram uma interpretação diferente da lei agora aprovada — mas não conseguiu obter qualquer resposta até à publicação deste artigo.
Conclusão
Ana Catarina Mendes não tem razão quando diz que não houve alteração às regras que isentam os partidos políticos do pagamento do IVA e que foi apenas uma clarificação. Houve mudanças e essas mudanças já estão a provocar diferentes interpretações do diploma — basta ver o que já disse Margarida Salema, ex-presidente da ECFP. E nem os partidos que aprovaram o articulado parecem concordar em relação a esta alteração fundamental da lei. Resta saber que entendimento terá a Autoridade Tributária, quando os partidos apresentarem pedidos de devolução do IVA.
[Veja aqui o fact-check em vídeo a este erro de Ana Catarina Martins]
As alterações às regras do IVA não vão interferir em processos em curso?
A frase:
“É falsa também a ideia da retroatividade da lei. A lei vale para o futuro”
O que está em causa?
A propósito da isenção ou não do pagamento do IVA, os partidos mantêm neste momento vários diferendos com a Autoridade Tributária, em que reclamam a devolução dos montantes que defendem estar em falta.
Quando foram aprovadas as alterações à lei, discutiu-se sobre se as novas regras teriam ou não implicações nos processos que estão em curso nos tribunais. Ou seja, se teriam ou não efeitos retroativos em relação a matéria já com processos a decorrer. Ana Catarina Mendes, no entanto, já garantiu que não, que a “lei vale para o futuro”. Terá razão?
Quais são factos
De acordo com as explicações da secretária-geral-adjunta do PS, “o que está em causa neste ponto é a norma transitória do artigo 7.º. Ora, esta norma transitória de aplicação aos processos pendentes, inteiramente em concordância com a sugestão do Tribunal Constitucional, aplica-se sem prejuízo da validade dos atos praticados na vigência da lei anterior. Apenas é relativa aos processos que se encontram no Tribunal Constitucional e que agora passam a ser da competência da Autoridade das Contas”.
“Ou seja”, continuou a socialista, “só haveria retroatividade se a norma transitória mandasse aplicar a lei nova aos processos pendentes e não salvaguardasse a validade dos atos anteriormente praticados”. Assim, defendeu Ana Catarina Mendes, não está em causa “qualquer tipo de amnistia fiscal”.
A número dois do PS ainda acrescentou outro detalhe para sustentar as suas afirmações: “Os processos que o PS tem, em Tribunal Administrativo e Fiscal, por discordância de decisões anteriores da Autoridade Tributária, seguem o seu curso até decisão final”.
Nem todos, porém, têm este entendimento. Em declarações ao jornal i, por exemplo, o constitucionalista Bacelar Gouveia afirmou que este diploma “tem encapotado um perdão fiscal porque permite que o IVA seja restituído em maior dimensão do que aquilo que estava legislado” e explicou porquê: “No artigo 7º diz que as alterações aprovadas aplicam-se para o futuro, mas também se aplicam aos processos em curso no tribunal”.
Também José Figueiredo Dias, o novo presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Partidários (ECFP), já veio defender que a “disposição transitória, que atribui competência à ECFP para julgar os processos pendentes, é um dos aspetos mais sensíveis da nova lei”. “À partida, serão de aplicar as novas disposições, mas ainda não podemos dar uma resposta definitiva à questão”, sublinhou o responsável. Ou seja, em teoria, a nova lei poderá ter efeitos retroativos.
O mesmo defendeu a sua antecessora Margarida Salema. Em entrevista ao Observador, a ex-presidente da ECFP disse ser “muito crítica da norma transitória”, porque “vai longe demais“. “Sou contra a aplicação retroativa pela insegurança jurídica e pela instabilidade que representa para os processos em curso”, insistiu.
Esta quinta-feira, na TVI, Margarida Salema ainda acrescentou outra pergunta: será que esta nova lei não vai ter efeitos retroativos nas “pendências que os partidos têm na Autoridade Tributária”? Ninguém sabe a resposta.
Conclusão
Subsistem muitas dúvidas em relação à forma como o diploma foi desenhado e, nas palavras de José Figueiredo Dias e de Margarida Salema, atual e ex-presidente da ECFP, a disposição transitória “é dos aspetos mais sensíveis da nova lei” e introduz “insegurança jurídica” sobre o efeito potencialmente retroativo da lei. Ana Catarina Mendes não pode, por isso, afirmar com certeza absoluta de que esta nova lei não vai ter efeitos retroativos.
A lei agora aprovada não representa mais dinheiro público para os partidos?
A frase
“A lei agora aprovada não resulta nenhum aumento de subvenção estatal, ou seja de aumento de dinheiros públicos para os partidos políticos.”
O que está em causa?
Tem sido o ponto de honra dos partidos que aprovaram o diploma: as alterações à lei de financiamento partidário não representam qualquer encargo extraordinário para o Estado, nem uma maior transferência de dinheiro público para os contribuintes. Esta quinta-feira, Ana Catarina Mendes voltou a frisá-lo: não há qualquer benesse para os partidos. O que se fez, explicou a socialista, foi apenas clarificar a lei. Terá razão?
Quais são os factos
De volta à questão da isenção do IVA. Se até aqui os partidos só tinham direito à devolução do IVA nas despesas com aquisição de bens e serviços que dissessem respeito à difusão da sua mensagem política, agora essa limitação desaparece — os partidos vão poder pedir ao fisco a devolução do IVA para a “totalidade de aquisições de bens e serviços para a sua atividade”.
Ou seja, com a nova lei, tudo será uma questão de interpretação: onde termina e onde começa o âmbito da atividade dos partidos e em que é que isso se reflete na isenção do imposto.
A questão é de difícil resposta, mas há um aspeto objetivo: neste momento, os partidos mantêm diferendos com a Autoridade Tributária porque exigem devoluções do IVA que o fisco considera não fazerem sentido.
Os partidos alteraram a lei para acabar, precisamente, com estes diferendos e para terminar com as tais “dúvidas de interpretação” do fisco. Ora, se os partidos legislaram nesse sentido, é porque acreditam que, com as novas regras, vão passar a ter direito à devolução dos montantes respeitante ao IVA que até agora não recebiam.
Tudo somado, há um dado evidente: acabam-se, em teoria, as “dúvidas de interpretação” e o Estado terá de devolver o IVA que os partidos dizem ter direito a receber. Isto significa uma diminuição efetiva da despesa dos partidos com o imposto e uma perda de receita para o Estado. Logo, há uma transferência indireta de dinheiro público para os partidos.
Por coincidência, em 2018, há um aumento da subvenção estatal dos partidos, como noticiou o Observador, mas esse acréscimo, convém esclarecer, não decorre das polémicas alterações legislativas que têm sido discutidas esta semana.
Conclusão
Os partidos vão passar a ter menos despesa com o IVA. Assim, haverá mais dinheiro nos seus cofres. E como o Estado cobra menos IVA aos partidos, tem menos receita. Logo, vai transferir (indiretamente) mais dinheiro para os partidos. Ana Catarina Mendes não tem razão quando diz que não há aumento de dinheiros públicos para os partidos.
Fim do limite para as angariações foi recomendado pelo Constitucional?
A frase
“A Alteração ao Art.º 6.º, no sentido da supressão do limite aos quantitativos de angariação, foi suscitado pelo próprio Tribunal Constitucional.”
O que está em causa?
No Parlamento, Ana Catarina Mendes justificou o fim dos limites para angariação de fundos dos partidos como uma medida que veio corresponder às recomendações do presidente do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade. Para a socialista, o objetivo foi tornar mais transparente o que antes era incerto e mais rigoroso o que antes era arbitrário. Mas foi isto que recomendou o Palácio Ratton?
Quais são os factos
Antes desta lei ser aprovada, o teto máximo para angariação de fundos era cerca de 630 mil euros (1500 vezes o valor do indexante de apoios sociais, que é 421,32 euros). Na exposição que fez na Assembleia da República, Ana Catarina Mendes sublinhou que o fim dos limites para angariações “foi suscitado pelo próprio Tribunal Constitucional no seguinte sentido: ‘Sugere-se a discussão de uma alteração legislativa no sentido de modificar o artigo 6º da lei 19/2003, de forma a poder integrar de maneira adequada iniciativas do género da Festa do Avante e da Festa do Chão da Lagoa, tendo em consideração, designadamente, as particularidades inerentes à obtenção de receitas em eventos com tal amplitude”.
“Ora”, continuou Ana Catarina Mendes, “esta alteração decorre da incerteza que resulta do montante angariado nos grandes eventos dos partidos políticos. A angariação de fundos continua a ser obrigatória, transparente e a constar da contabilidade anual dos partidos”.
Tribunal Constitucional nunca pediu fim do limite para angariação de fundos
A própria resposta da deputada socialista encerra em si mesma uma contradição: o Tribunal Constitucional pediu uma alteração legislativa para integrar “de maneira adequada iniciativas como a Festa do Avante e da Festa do Chão da Lagoa”. E integrar de maneira adequada este tipo de eventos não significa acabar com os limites para angariação de fundos.
Mais: na quarta-feira, o Observador apurou junto de fonte do Tribunal Constitucional que Manuel da Costa Andrade nunca sugeriu aos partidos que acabassem com os limites para a angariação de fundos pelos partidos. Bem pelo contrário: no encontro que manteve à porta fechada com os deputados dos diferentes grupos parlamentares, em março de 2017, Costa Andrade pediu aos partidos que encontrassem uma forma de melhorar a fiscalização destas atividades e de tornar os processos contabilísticos mais adequados.
Esta informação foi também confirmada junto de uma fonte do grupo de trabalho que preparou estas alterações legislativas. À pergunta “Manuel da Costa Andrade alguma vez pediu o fim do limite para angariação de fundos?”, a resposta foi taxativa: “Nunca“.
Esta quinta-feira, a agência Lusa apurou exatamente o mesmo junto do Tribunal Constitucional: em nenhum momento do processo o presidente do Tribunal Constitucional abordou a questão da devolução do IVA ou qualquer tema fiscal relativo aos partidos.
Ou seja, perante as recomendações do Palácio Ratton, que iam no sentido de adequar “os processos contabilísticos” neste tipo de eventos para que fosse possível fazer “um controlo realístico”, os deputados que integravam aquele grupo de trabalho — menos o do CDS — decidiram acabar de vez com o teto imposto à angariação de fundos.
Conclusão
A afirmação de Ana Catarina Mendes é errada. Segundo conseguiu apurar o Observador e depois a agência Lusa junto do próprio Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade nunca pediu o fim do limite para a angariação de fundos. Pedir mais rigor, transparência e tratamento adequado daquele tipo de fenómenos, não significa acabar com os limites existentes para angariação de fundos. Pedir para modificar um artigo não significa revogá-lo ou apagá-lo do texto da lei.