Quando morreu o seu irmão Thoby, Virginia Woolf escreveu num dos diários: “e agora refugio-me na escrita consolatória de Lucrécio”. Em Portugal, não é fácil encontrar escritores e poetas que reclamem para si ou para as suas obras a herança dos textos clássicos, especialmente entre as novas gerações. Em parte porque as modas passam hoje por evocar os escritores anglo-saxónicos, em parte porque no nosso país faltam boas traduções destes textos fundadores da cultura ocidental. Mais uma vez, é pela mão da editora Relógio d’Água que podemos rejubilar: temos novamente disponível o poema filosófico Da Natureza das Coisas, de Tito Lucrécio Caro (94 a.C.- 50 ou 51 a.C.), traduzido directamente do latim por Luís Manuel Gaspar Cerqueira.

Da Natureza das Coisas ou De Rerum Natura, que tanto influenciou escritores como Virginia Woolf, Michel Houellebecq ou Italo Calvino, foi escrito há mais de dois mil anos e permaneceu desconhecido durante cerca de um milénio e meio — uma história feita de acasos e acidentes que o próprio Lucrécio haveria de usar para reforçar as suas teorias. Contra a ditadura da morte e do esquecimento, o texto está ainda aqui, ao alcance das nossas mãos, dos nossos sentidos e do nosso deslumbramento. Num tempo em que escritores e poetas trabalham mais para a fama do que para a grandeza das suas obras, a chegada deste poema de novo às livrarias devia fazê-los e fazer-nos reflectir: só o que é verdadeiramente grande passa o crivo do tempo. E não há programa de televisão, fotografias no jornal ou elogios no Facebook que mudem isso.

“Aqui, uma biblioteca, onde eu hei-de explorar a exactidão da língua latina, caminhar com firmeza por entre frases solidamente construídas e pronunciar os hexâmetros sonoros e explícitos de Virgílio e Lucrécio…” Este desejo é expresso por Louis, uma das personagens de As Ondas, obra-prima de Virginia Woolf, toda ela construída a partir de uma das ideias fundamentais de Lucrécio: homens e oceanos, estrelas e pedras são compostos da mesma matéria num universo sem deuses, onde cada um é parte de um todo em perpétuo movimento, e onde a grande coragem do humano é a busca de uma sabedoria profunda na sua breve passagem pelas praias da vida.

O livro teve a sua última tradução em Portugal ainda no século XIX, embora, nos anos 80 do século XX, o filósofo Agostinho da Silva tenha feito uma tradução em prosa que foi editada apenas no Brasil.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Lucrécio, de poeta louco a fundador da modernidade

“Portanto nenhuma coisa regressa ao nada,/
mas todas regressam por desagregação aos átomos da matéria.
(…) Portanto não perece completamente tudo aquilo que parece morrer,/
porque a natureza forma de novo uma coisa a partir de outra,/
e não permite que nada seja gerado senão com a ajuda da morte de outra coisa.” (Livro I)

Este poema filosófico procurava fazer entrar em Roma o sistema desenvolvido pelo grego Epicuro (341-271a.C), em especial os princípios da física e ética hoje conhecida como epicurismo e cujas proposições basilares repousam sobre a doutrina atomística de Demócrito. O universo, segundo estes filósofos antigos, é totalmente composto por átomos e vazio, a vida humana deve orientar-se na busca dos prazeres e da liberdade que levem à sabedoria, o único bem terreno.

Composto por seis livros, De Rerum Natura procura mostrar que a natureza do corpo, da alma e do espírito fazem parte de um cosmos, que a morte não é um reino de terror, que os deuses não existem senão como imagens ilusórias inventadas por homens temerosos, e sobretudo que o homem não é o centro do universo.

“Esta obra pretende situar o homem no todo do Cosmos, colocando em evidência o seu carácter contingente, as suas relações de interdependência com tudo o que o rodeia. Lucrécio volta a colocar o problema crucial: qual o lugar do Humano no mundo?”, explica Paulo Lima, investigador do Centro de Estudos de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa e professor na Universidade Lusófona no Porto. Este estudioso do poeta latino lembra ainda que a ética enunciada por Lucrécio “é uma pedra basilar para pensar o presente, nomeadamente a nossa relação com a morte”, que volta a ser uma questão profundamente inquietante e polémica numa modernidade obcecada pelo prolongamento da vida, da beleza e da juventude.

Sobre Tito Lucrécio Caro pouco se sabe, excepto que era romano, viveu um século antes de Cristo e que se suicidou antes de completar a sua única obra, que terá sido escrita nos intervalos de loucura do poeta. É uma tese muito discutida e atribuída mais à Igreja do que à realidade, uma vez que este pensador ateu em nada lhe agradava.

O livro, esquecido durante o declínio do império romano e a ascensão do cristianismo, foi encontrado em 1417 num mosteiro da Alemanha, vindo a tornar-se uma influência decisiva no Renascimento, presente em obras de autores tão diversos como Leonardo Da Vinci, Francis Bacon, Galileu ou Maquiavel. No século XX, as descobertas feitas no campo da Física, da Psicologia, da Ética, da Comunicação, da História e da Biologia mostram que, mais do que um visionário, Lucrécio foi, segundo Paulo Lima, “um dos fundadores da modernidade”.

A descoberta de “Da Natureza das Coisas”

Recentemente, um ensaio sobre Poggio Bracciolini, secretário do papa que procurava por toda a Europa livros antigos e que encontrou, em 1417, um exemplar de De Rerum Natura, foi um êxito de vendas nos Estados Unidos. A obra, intitulada The Swerve: How the World Became Modern (prémio Pulitzer em 2012), da autoria de Stephen Greenblatt, mostra como a reintrodução do texto de Lucrécio e do pensamento de Epicuro na literatura ocidental foi o momento charneira para início da chamada idade Moderna.

A principal originalidade introduzida por Lucrécio relativamente aos seus mestres é a ideia de que os átomos não têm trajectos fixos mas sim desvios aleatórios, e que o cosmos é portanto feito de caos, abrindo a porta ao pensamento sobre a vida individual e a forma como ela é constituída por conexões imponderáveis, pelo acaso. Daí que só o controlo das paixões da alma e do corpo, a paz de espírito e a busca do conhecimento possam levar o Humano a uma compreensão de si e dos outros.

Tal como é contrário à religião, o pensamento de Lucrécio também é contrário às ideologias políticas. Rejeita uma imago mundi redentora e, portanto, mais de dois mil anos depois de ter vivido e escrito esta obra, este poeta “permanece um escritor maldito”. É assim que o classifica Luís Manuel Gaspar Cerqueira, latinista, professor na Faculdade de letras de Lisboa e o tradutor desta obra que a Relógio d’Água apresenta em versão bilingue: “Desde a altura em que chegou este foi sempre um texto contracorrente, devido ao carácter chocante da sua posição anti-religiosa, devido à sua dificuldade linguística, onde cada ideia expressa visa sempre uma outra ideia mais elevada. Lucrécio é Lavoisier antes de Lavoisier, Einstein antes de Einstein, Voltaire antes de Voltaire.”

Mas Lucrécio é também Freud antes de Freud, Baudrillard antes de Baudrillard, acrescentamos nós. Ora leia-se :

“Da superfície das coisas desprendem-se/
simulacros semelhantes a finas partículas muito móveis.”

Ora, esta ideia do simulacro, ou das imagens que se libertam das coisas e alimentam as nossas fantasmagorias internas, nunca foi tão omnipresente como na nossa modernidade tecnológica, onde estamos progressivamente a abandonar a nossa relação com o Real e a viver dentro de múltiplos simulacros incessantemente produzidos pela publicidade, pela televisão, pela política, pela internet.

Mas De Rerum Natura é também um portentoso monumento linguístico, onde cada ensinamento amargo e difícil é apresentado através da construção de imagens belas, onde átomos se movem num maravilhamento poético, que liga homens e estrelas num devir que não é regido pelo fatalismo da morte mas pelo arbítrio, pela espontaneidade da alma, a autonomia da vontade, a liberdade livre.

Porém, o poema é também atravessado por um sopro de melancolia e de amarga desilusão, que passa nos seus juízos desdenhosos contra o desejo de gozar a existência desenfreadamente. Lucrécio deve ter permanecido muito longe do círculo dos principais poetas da época. Isolado na sua grandeza, um destino trágico não lhe permitiu alcançar a coroa que ambicionava. Terá acabado por duvidar ele próprio da verdade do seu evangelho? Suicidou-se porque considerava perdida a tarefa da sua vida ou porque desesperara de a levar a cabo? São questões impossíveis de responder, mas uma coisa é certa: “As suas palavras atravessaram silenciosamente os séculos, os tempos e iluminaram aqueles que as souberam encontrar”, diz ainda Paulo Lima.

Estes livros que nos salvam

Luís Gaspar Cerqueira lembra que nos últimos 20 anos muito tem sido feito em Portugal para traduzir e editar estes textos clássicos. Ele próprio também traduziu a Eneida de Virgílio para a editora Cotovia, a chancela que mais textos gregos e latinos nos tem dado.

O escritor e psicólogo Vasco Luís Curado foi um dos escritores que encontrámos que conhece e aceitou falar ao Observador sobre Da Natureza das Coisas. Ele destaca neste livro sobretudo duas coisas: “a sobriedade que nos salva de tanto lixo literário e da ditadura dos bestsellers” e, depois, a “contenção da linguagem” do poeta: “Lucrécio lamenta que a língua latina não tenha a maleabilidade e capacidade de abstracção da língua grega que era a de Epicuro, mas afirmou-se ele próprio como um exemplo daquela sobriedade elegante, despojada de excessos emocionais, quase impassível, que torna os autores latinos tão legíveis hoje em dia, tão frescos hoje como o foram há milhares de anos.”

Especifica o escritor: “Impressiona o facto de Lucrécio ter a coragem de abdicar dos deuses e das religiões e guiar o leitor numa penetração científica dos fenómenos naturais: a vida, a morte, a matéria, o vazio, a terra, os astros, os átomos, os elementos, a consciência, os sentidos, o amor, a linguagem. Se a religião oficial escraviza, o conhecimento liberta. É o triunfo de um espírito que tem a coragem de investigar o Universo só armado das suas próprias forças intelectuais e racionais.”

“Impressiona também”, continua Vasco Luís Curado, “a descrição da peste de Atenas, que faz lembrar o Diário da Peste de Londres, de Daniel Defoe, que por sua vez inspirou A Peste, de Camus. A posteridade reagiu de modo ambivalente diante de Lucrécio: por um lado, reconheceu a importância deste poema filosófico que explicava aos romanos a visão materialista de Epicuro; por outro lado, atordoada com o ateísmo e o materialismo do poema, procurou uma forma de punir o poeta e divulgou a lenda segundo a qual ele enlouqueceu e se suicidou. Gosto de pensar que, se tivesse tido tempo de terminar o poema, talvez Lucrécio previsse isto e fornecesse uma explicação não supersticiosa da loucura e do suicídio.”

Outro escritor actualíssimo que explora as ideias de Lucrécio nos seus romances é o francês Michel Houellebecq, nomeadamente no livro Partículas Elementares. Mas é ainda a Virginia Woolf é às ondas que regressamos para ver como Lucrécio pode ser uma grandiosa fonte de inspiração:

“Sou mais forte e mais feroz do que vocês e, no entanto, esta minha breve aparição sobre a terra, após milénios de não ser, será consumida no terror de que se riam de mim, a mudar com o vento conforme sopram as tempestades de fuligem, esforçando-me por forjar o mel de aço da clara poesia que reúna as gaivotas e as mulheres de dentes apodrecidos, os campanários das igrejas e os chapéus de coco que desfilam pelas ruas quando estou a almoçar e apoio um dos meus poetas preferidos, Lucrécio, no galheteiro e no cardápio sujo com molho de carne.”

Título: Da Natureza das Coisas
Autor: Lucrécio
Tradução: Luís Manuel Gaspar Cerqueira
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 416
Preço: 18€

1507-1