Era novo e ainda não saíra de Jena, ali no centro da Alemanha, a cerca de 70 quilómetros de Leipzig. Já jogava à bola. Preferia as mãos aos pés. Pensar nas luvas em vez das chuteiras. Parar remates a disparar pontapés. Num qualquer fim de semana, era dia de mais um jogo para se fazer com o FC Carl-Zeiss, na segunda divisão germânica. Começou na baliza. A bola rolou, subiu, ele saltou, abriu os braços, mas não a agarrou. Cometeu um erro, o jogo acabou e foi para casa. “Trancou-se no quarto e não foi à escola durante uma semana. Ficou preso em pensamentos sombrios”, contou Ronald Reng, sem encravar, como se extraísse um episódio da enciclopédia que tem gravada na cabeça, compilada a partir da vida de Robert Enke. Este aconteceu quando tinha 17 anos.
A vida seguiu. Mas Robert não deixou as balizas. Nem o futebol. Era aquilo e mais nada. Chegou ao ponto de ser “um problema”, pois “quando estava deprimido até se culpava” e “dizia que não se interessava por mais nada além do futebol”, diz Reng, conformado. Ronald está do outro lado de uma chamada por Skype, a recordar o antigo guarda-redes alemão. O amigo que, a 10 de novembro de 2009, disse à mulher que ia treinar, entrou no carro, conduziu durante umas oito horas, estacionou à beira de uma linha de comboio e atirou-se para a frente de uma locomotiva, perto de Hannover. Foi há cinco anos.
Robert sofria de depressão. Poucos o sabiam. Ronald, jornalista, era um deles. Conheceu-o em Barcelona, quando o guardião lá chegou, após decidir “seguir em frente” e sair do Benfica, onde viu que “não chegaria a lado nenhum”. A amizade apareceu. A decisão surgiria uns tempos depois: um dia, lá para 2015, quando Robert deixasse as luvas no armário e dissesse auf wiedersehen (adeus) às balizas, escreveriam, em conjunto, a biografia do guarda-redes. Anos depois, apenas um deles cumpriria a tarefa quando, em 2011, foi publicado o livro “A Life Too Short” (“Uma Vida Curta Demais”, título português), que viria a ser traduzido em oito idiomas.
Antes, bem antes, Robert parou por Lisboa. Chegou em 1999. Fê-lo em tempo de mudanças forçadas na Luz. Michel Preud’homme, o fiável belga, acabara de dizer basta. Aos 40 anos, o guarda-redes, que arrastara o por do sol da carreira até à capital portuguesa, abandonava a baliza do Benfica. Restavam Carlos Bossio, Nuno Santos e Sergei Ovchinnikov. Os dois primeiros ficaram. O último, o russo, saiu para entrar um alemão. “Quando foi para o Benfica teve um ataque de pânico. Cinco minutos depois de assinar o contrato queria fugir para longe. Voltou para a Alemanha e durante semanas não queria ir para Lisboa”, revelou Ronald ao Observador, ao falar de um de muitos sintomas da versão depressiva de Robert Enke. A tal que, durante época e meia, António José da Conceição Oliveira nunca viu.
Toni, o treinador, diz que “é fácil falar do futebolista”. Lembra-se de algumas coisas, mas nenhuma tem depressão à mistura. Fala de um guarda-redes de “grandes aptidões”, com um “grande potencial”, que foi arrastado para as areias movediças de um Benfica que, na altura, estava “a meio de uma travessia do deserto”. Só elogios para quem, em miúdo, só foi apresentado às balizas quando, em Jena, a família do guardião titular emigrou para a Rússia e Robert, então um ponta de lança, foi o que melhor se desenvencilhou entre os postes. Toni recorda como ficou de olho arregalado quando pela primeira vez viu Enke a defender uma baliza. “Até só vi o resumo de um jogo em que o Borussia de Mönchengladbach perdeu 7-0 e ele foi o melhor em campo. Além dos golos que sofreu, fez defesas do outro mundo”, garante, ao falar de paradas que até o fizeram dar corda à memória: “Fez lembrar o Vítor Damas, de um Benfica-Sporting em que ganhámos 5-0 e só não foram mais por causa dele.”
A recordação de Toni é limitada. Como era a relação que tinha com Enke — de treinador para jogador. No relvado e nada mais. “Almoços, saídas e encontros tinha-os com jogadores, não connosco”, salienta, ao desenhar com a voz a fronteira do contacto que tinha com o alemão. Mas que, ainda assim, lhe chegou para lembrar “uma faceta que depois veio a ser muito badalada” durante a sua estadia de três anos em Lisboa. Ou não. “Era a relação que tinha com os animais. Se via um cão abandonado recolhia-o e tratava-o como mais um elemento da família dele”, lembrou o treinador. E não é o único.
As combinações e programa além futebol, como disse Toni, eram feitas entre jogadores. As amizades, como tudo, estreitam-se mais entre uns, do que outros. No futebol é igual. E Paulo Madeira é prova disso. Foi ele, o ex-internacional português, que por aqueles tempos andava de rabo-de-cavalo a proteger a baliza encarnada, que “se calhar até [foi] dos poucos a conhecer a realidade pessoal” de Robert Enke. Palavras do próprio, de quem via nos “animais abandonados” uma “das razões de viver” do alemão. E o antigo defesa central não se esquece da pessoa “amiga” e do “exemplo de jogador muito profissional” que Robert deixava quando pisava um pedaço de relvado.
Fora dele, na “vida particular”, Paulo Madeira lembra-se de “uma pessoa um bocado especial”, a quem “o luxo não dizia nada”. Nos tempos em que ninguém do Benfica tinha que pegar num carro para atravessar o Rio Tejo — o centro de treinos do Seixal ainda só existia no papel –, a grande parte dos jogadores encarnados viviam em Telheiras, “uma zona nobre” e próxima ao Estádio da Luz. Mas Robert não. “Ele e a esposa viviam no Parque Natural de Monsanto”, recorda o português, reminiscente de um jantar, por altura do inverno, numa “casa modesta”, à beira da lareira. “Parecia que estávamos numa aldeia, com cães abandonados ao nosso jantar”, descreve. À mesa, na rua ou no café, porém, Robert não mudava: “Não tinha as conversas da maior parte dos jogadores, não falava só de carros, mulheres ou futebol.”
No campo, com as luvas vestidas e uns postes ao lado, a conversa era outra. “Não havia cá brincadeiras”, garante Paulo Madeira. Com Enke, tudo tinha “de ser muito a sério” e o guardião “não admitia entrar numa pelada a brincar”. Robert aterrou com 21 anos no Benfica e Paulo, na altura, via na baliza alguém “com um futuro muito promissor”. Quando “as coisas não corriam bem”, contudo, Robert “sentia-se frustrado”. E o alemão começava cedo a lidar mal com as coisas que descarrilavam das linhas que idealizara na cabeça. “O aquecimento dava para ver se ia fazer um bom jogo ou não. Tinha de ser muito profissional. Estava planeado e não podia alterar nada. Se corresse mal, o jogo poderia não correr bem e ele acreditava nisso”, explica. Tal e qual Michel Preud’homme, belga cuja sombra Enke veio ocupar na Luz. Em três épocas de Benfica, o germânico fez 93 jogos e rara foi a partida que não começou a titular.
Ficaria até 2001. Até começar a sentir as areias demasiado instáveis. Na última época, aliás, Robert “já estava bastante ansioso”. Pensou uma, duas, três e dezenas de vezes antes de tomar uma decisão. Enke gostava de Lisboa, do país e do Benfica. Ronald Reng garante-o. Só não gostava dos treinos. “Não estava contente com o treinador de guarda-redes. Achava o treino horrível”, revelou o jornalista e amigo. E quem era ele? Chama-se Samir Shakir, é iraquiano, está hoje nos Emirados Árabes Unidos e encarregou-se de Robert Enke durante 2000/01. Ao Observador, o técnico recordou que o alemão “gostava de treinar no duro”, embora o considerasse “fraco a determinar a distância para a bola”, sobretudo as que dele se aproximavam pelo ar. Foi uma época, dezenas de treinos e centenas de horas a treinar, a praticar e a limar arestas no alemão que, mais tarde, abriram a porta da baliza da seleção alemã. Na altura, contudo, o iraquiano, quando conheceu Enke, revelou que ficou “surpreendido” com a “falta de flexibilidade e movimentos” do guarda-redes.
Robert não o apreciava. O guarda-redes até “tinha gostado bastante de Jupp Heynckess e José Mourinho”, mas começou a ter a sensação que “o clube não chegaria a lado nenhum”. E lá foi ele. Por isso, “quando apareceu a oferta do Barcelona”, o alemão sentiu que “tinha de seguir em frente”, resume Reng. E lá foi ele. Para um dos melhores e maiores clubes do mundo, para uma liga com maior visibilidade e para os holofotes da Liga dos Campeões. Foi para competir com Roberto Bonano, então titular na baliza da seleção argentina, e Victor Valdés, um niño, de 19 anos, que todos viam como terceiro na hierarquia catalã dos homens das luvas. Mas foi ele o escolhido por Louis Van Gaal, o treinador, para puxar uma cadeira e sentar-se à mesa com a titularidade. Robert não aguentou. “Em Barcelona, a sua depressão clínica foi claramente iniciada com o sentimento: ‘Eu falhei no Barça. Deveria ser o número um. Escolheram o Victor Valdés. Portanto a culpa é minha.’”, lamentou Ronald.
Se não jogava era por não ser o melhor. Portanto, era o pior. Do oito ao oitenta, assim funcionava a cabeça de Enke, quando a depressão o estrangulava. Reng sabia-o. Mas ali, em 2002, nunca considerou que fosse tão grave como viria a ser. “O futebol é uma profissão onde se tem de lidar com muitas experiências negativas, sobretudo num guarda-redes, em que és medido pelos erros que cometes. O Robert culpava-se muito a si mesmo, não era muito bom a lidar com os erros”, descreveu. Tudo pioraria no dia em que a oportunidade bateu à porta do alemão — ia jogar na primeira eliminatória da Copa del Rey, frente ao Novelda, do terceiro escalão do futebol espanhol. Correu mal. O Barça perdeu, sofreu três golos, dois deles com a culpa no guarda-redes. Fica destroçado. Em depressão. Começa a ser tratado por um psiquiatra, em segredo, e só apareceria em mais três jogos na época 2002/2003. “Já me sentia morto no Barça”, chegou a confessar a Ronald, segundo o próprio. A pressão, a auto culpa, os pensamentos dos quais não se livrava. Tudo o aprisionava. Tinha de sair de Barcelona.
E fugiu para Istambul. Mas nada melhorou. Aliás, tudo piorou no Fenerbahce. “Nas fotografias que foram captadas no dia da apresentação, conseguíamos ver que o Robert estava com medo. Quando estava saudável tinha um sorriso rasgado na cara. Mas quando era um ator sorria apenas com os lábios”, lembrou Jörg Leblung, então empresário de Enke, a um documentário feito pelo Canal Plus. Um dia antes de aparecer na baliza no primeiro jogo oficial pelo clube, Robert começa a escrever um diário. E também dali já queria fugir. “Contou um momento em que, quando estava a olhar para algumas fotografias que tinha, encontrou uma em que ele, a mulher e o empresário estavam a sorrir e a celebrar quando o Robert assinou pelo Benfica. E escreveu: ‘Quando olho para a fotografia, apetece-me bater na minha cara e dizer: Porque é que me fui embora se estava feliz?’”, conta Ronald ao Observador, dias depois de Teresa, mulher de Enke, lhe recordar “como Robert era feliz e tinha um brilho nos olhos quando estavam em Lisboa.” O tal jogo, o primeiro, seria também o último pelo Fenerbahce: três semanas depois de aterrar em Istambul, o guarda-redes não podia mais.
“Ele adorava estar no futebol. A sensação de fazer uma grande defesa ou de estar no balneário, com os companheiros, por exemplo. Quando o Robert estava no Tenerife, lembro-me de ir visitá-lo durante uma semana e de me dizer que estava feliz de ir todos os dias aos treinos e falar com os cinco reformados que ficavam atrás da baliza, a assistir, e que batiam palmas às defesas que fazia”, recordou Ronald Reng.
Terminou o contrato e parou. Voltou a Barcelona e nada fez até ao Natal. Foi viajando para Colónia e regressando, para ser visto e tratado por um psiquiatra germânico. Em janeiro de 2004, Robert decide viajar. Vai para as Canárias. Junta-se ao Tenerife, da segunda divisão espanhola. E renasce. Na ilha, rodeado por mar e com pressão diminuta, a baliza volta a ser amiga de Robert. Joga, defende, detém bolas, a vida é pacata e os adeptos gostam do que veem. “Quando o Robert estava no Tenerife, lembro-me de ir visitá-lo durante uma semana e de me dizer que estava feliz de ir todos os dias aos treinos e falar com os cinco reformados que ficavam atrás da baliza a assistir, e que batiam palmas às defesas que fazia”, lembra, com saudade, o jornalista que tem em Tenerife o lugar onde guardou a melhor memória da amizade com Enke: “Foi uma altura em que estava cheio de vida outra vez, cheio de energia. Disse-me: ‘Vamos até ao porto, gosto de estar lá sentado no muro, só a olhar para as pessoas e os barcos passarem.’ E sentámo-nos aí durante uns 15 minutos. Sentei-me ao seu lado e dava para sentir a felicidade”.
Melhorou. Voltou a ser feliz. Mas só ficou por lá uma época. Em 2004 regressou à Alemanha. Escolheu o Hannover 96. E brilhou. Muito. Na primeira temporada de volta à Bundesliga, Robert é eleito o melhor guarda-redes do campeonato — à frente de Oliver Kahn, a muralha, a lenda viva que tapava a baliza do Bayern de Munique. Enke dá nas vistas numa equipa modesta. Fá-lo muitas vezes. Chega a ser capitão e não para de brilhar.
Tudo parecia estar bem. Tranquilo e estável, pelo menos. Mas só no campo. Em casa, no recanto, a família Enke preocupava-se com Lara. A filha de Robert nascera em 2004 com um problema cardíaco e as idas ao hospital eram um hábito necessário. A menina crescia na corda bamba e os pais sabiam-no. Durante os primeiros 12 meses de vida, Lara é submetida a três intervenções cirúrgicas. Complicadas, delicadas e, sobretudo, arriscadas. Sobrevive a todas enquanto o pai, no Hannover vai voando e multiplicando as mãos em paradas e defesas. Até que, em 2006, com dois anos de vida recém-cumpridos, Lara morre. Falece logo após a quarta operação que lhe é feita. A luz, a tal com que Robert tanto brilhara no Hannover, começa então a escurecer na sua cabeça. Nos relvados, contudo, ainda chegou para ser captada por Joachim Löw…
O selecionador germânico leva-o ao Europeu de 2008. Robert não joga. Mas é nas suas mãos que o treinador, a imprensa e os adeptos veem as luvas da Mannschaft em 2010, no Mundial da África do Sul. “Quando se tornou o titular da seleção mudou bastante. Passou a falar menos e a ser mais introvertido. Parecia que tinha sempre algo a ocupar-lhe o pensamento, que não o deixava relaxar”, repararam, na altura, Ronald e os amigos mais próximos de Robert.
Enke já não parecia feliz “como nos tempos do Benfica e do Tenerife, ou nos primeiros anos no Hannover”. A pressão e o medo de falhar, de desiludir, de não estar à altura, tinham entrado de rompante na mente do alemão, sem baterem à porta. A depressão voltava. A última, a que o mataria a 10 de novembro de 2009, três dias depois de aparecer, pela última vez, na baliza do Hannover 96. Em tempos, nos mais sombrios e difíceis, Robert chegou a dizer à mulher, Teresa, que “se pudesses viver na [minha] cabeça durante meia hora perceberias” porque Enke queria acabar com a própria vida, como lhe chegou a confessar. “Seria especular se disséssemos que isso [a titularidade na baliza alemã] foi a principal causa da segunda depressão clínica. Ele tentava mostrar que estava muito calmo, como que convencido e seguro de que o lugar era dele”, admite Ronald, cabisbaixo, ao lembrar a pessoa que, fintada a depressão, era “naturalmente calma, muito gentil e educada”.
Já foi há cinco anos que Enke não aguentou mais. A Alemanha, os adeptos e o futebol choraram. E uma porta abriu-se — a da aceitação. Robert, descobriu-se mais tarde, nunca fora capaz de revelar publicamente que sofria de depressão. “É justo dizer que talvez ninguém no futebol estivesse preparado para o ajudar, pois um jogador sofrer de depressão era algo novo e desconhecido na altura”, admite Ronald Reng. Enke, por isso, não teve a coragem para confessar. Mas outros o fizeram depois. Markus Miller, em 2011, também guardião do Hannover 96, por exemplo, admitiu-o, foi tratado durante semanas e hoje por lá continua. Em abril deste ano, um estudo da FIFPro, o sindicato internacional dos futebolistas, indicou que um em cada quatro jogadores sofre de depressão. A tragédia de Enke deu a primeira machadada no tabu. Abriu caminhos, trilhos e ruas. O estádio do Hannover está hoje numa delas. Na Robert Enke-Straße.