O desaparecimento, no passado sábado, do humorista e desenhador José Vilhena (1927-2015) veio pôr a claro a indiferença crítica que lhe foi votada ao longo de décadas, ou, para ser mais exacto, a irrelevância das poucas aproximações feitas, a mais notória das quais é a de Rui Zink, que em O Humor de Bolso de José Vilhena (1989) não foi capaz de ir muito além da mera exibição — como se de um troféu se tratasse — de um objecto de estudo de novo tipo, sacudindo, na linha de certos trabalhos de Arnaldo Saraiva, a marginalização da literatura dita popular pela nomenclatura académica.
Sim, a escolha foi certeira mas também demasiado óbvia. Vilhena fixara-se já na memória colectiva e sobretudo estava na berra, mercê do estrondoso êxito das suas revistas Gaiola Aberta, Paródia, O Fala Barato/O Cavaco e O Moralista (lançadas desde as primeiríssimas semanas do pós 25 de Abril de 1974, e com tiragens que alcançaram 150 mil exemplares). Ainda assim, desperdiçando esse tema fresco (e politicamente incómodo para ele), o estudante da Universidade Nova de Lisboa preferiu focar-se no longínquo 1960-74 e nas dezenas de livros que Vilhena então escreveu, publicou e distribuiu, a solo. E de forma superficial, como veremos adiante.
Dir-se-ia até que, por surpreendente que pareça, esse terá sido um interesse fugaz de Rui Zink, que num ápice investiu numa carreira de romancista, contista e “estrela de televisão”, a ponto de a publicação em livro de um trabalho que parecia querer ser determinante ter ocorrido apenas doze anos depois (Celta, Oeiras, 2001, 112 pp.) e sem qualquer adenda ou actualização crítica. De facto, Zink pouco mais voltaria a Vilhena, senão para fazer um álbum displicente, alarve e decadente (Editorial Notícias, Outubro de 2002), que só pôde prejudicar o artista-escritor, e orientar Carlos Sousa Gomes numa tese sobre Gaiola Aberta, de 2008 — após duas décadas de magistério universitário… E na longa entrevista a Vilhena na revista Kapa, em Abril de 1992, aparece como segundo autor, após Carlos Quevedo. José Vilhena: a gargalhada do resistente, de Luís Guimarães (Âncora, Lisboa, 2006, 151 pp.) também não é lá grande coisa…
Os primeiros anos de actividade humorística de José Vilhena recuam mais de uma década sobre o início do período de estudo universitário de Rui Zink, com centenas de cartoons espalhados por jornais e revistas (reunidos em três livros, de 1956 a 1958), que nos dão provas de um traço inconfundível — que vai perdendo qualidades de pormenor a partir da década de 1970 — e que se destacava em publicações como O Mundo Ri, que ele dirige de 1955 a 1966.
Zink também deixou de fora da sua abordagem o intenso empenho de Vilhena, nessa fase primordial, na divulgação de cartoonistas e humoristas estrangeiros, dedicando, por exemplo, páginas de elogio ao cartoonista anticlerical contemporâneo Jean Effel (1908-82), no livrinho A Criação do Mundo, que traduziu. E a mínima mas indispensável moldura histórica do humorismo na imprensa portuguesa da época, não tão falho quanto isso (Mosca, Sempre Fixe, Santos Fernando [1925-75], João Abel Manta [1928-], Augusto Cid [1941-], e outros); para já não falar de um panorama internacional, onde era facílimo identificar o genial brasileiro Millôr Fernandes, desenhador e escritor «dextro e esquerdino», como José Vilhena.
Num país ensimesmado, a batalha pela liberdade passava inevitavelmente pelo apelo a uma tradição de humor, de que Stuart Carvalhais e Bordallo Pinheiro eram ainda expoentes pátrios. Vilhena preparou anonimamente uma selecção de cartoons tardios de Stuart, que será prefaciada por Aquilino Ribeiro e impressa pelo Jornal do Fundão, e depois, após o colapso do PREC, adopta em efémera revista sua o título de uma publicação de Rafael, A Paródia, e ressuscita Zé Povinho em 1980. Um falso pendor historicista permitiu-lhe dissipar nos tempos idos o comentário da actualidade vigiado pela censura, como em História Universal da Pulhice Humana, Dicionário Cómico e Enciclopédia Vilhena. Aos militares do lápis azul escapou a palavra pideteucos.
A sua agilidade para criar títulos era de mestre: Tenha Maneiras (1966), A Menina do Capuchinho Vermelho e o Lobo Relativamente Mau (1967), Dói-me Aqui (1968), O Atraso de Vida (1968), Julieta das Minhocas (1970), O Trivial (1971), Educação de Adúlteros (1972), Compêndio de Indecências Naturais e A Grande Gaita (1973), A Boa Viúva e Animais Falantes. Fabulinhas Mansas. Obra de fantasia e zoologia para adultos, com sérias reservas (1974)… E também para escapar às visitas da PIDE e às apreensões de livros: a cada volume saído — e eram 4, 5 ou 7 por ano! — transferia-se por uma semana para «um motel na linha de Cascais» e expedia os exemplares desde pequenas estações de correio da periferia lisboeta, menos controladas pela polícia política. A Branca de Neve e os 700 Anões, relato de uma prostituta de Lisboa, apreendido pela censura, foi publicado em 2014 numa colecção de livros proibidos celebrativa dos 40 anos do 25 de Abril. Curiosidade: Francisco Sousa Tavares defendeu-o na barra dos tribunais.
Essa audácia de editor solitário e criador frenético que era ao mesmo tempo um boémio que ainda escrevia comédias bem sucedidas de bilheteira — como “Calcinhas Amarelas” (uma adaptação) e “Dentadinhas na Maçã” — , que quis fazer cinema, que vivia debaixo d’olho de polícias e censores e que se desdobrava em pseudónimos que eram topónimos do bairro em que habitava e onde teve restaurantes e casas de divertimento nocturno, envolveram-no numa fama que, em alguns aspectos, o aproximam ao intrépito editor da Afrodite Fernando Ribeiro de Melo (1941-92), que, aliás, sendo seu vizinho, teve escritório num mesmo edifício da Rua Conde Redondo.
O leve rumor de saída de um novo livro bastava para fazer precipitar automaticamente os seus leitores fiéis sobre discretos pontos de venda habituais, todo um caso original — e de estudo — sobre o mercado paralelo criado pela verve de um único autor, um autor «popular», que pôde dispensar o José, assinando muitas vezes apenas Vilhena.
Numa charge célebre e ácida, haveria de dizer que as prostitutas eram os únicos portugueses que efectivamente trabalhavam no país…
O golpe militar de 25 de Abril de 1974 abriu-lhe uma cornucópia de possibilidades, a maior das quais a de poder criar e dirigir uma revista, assumindo-se como director, e de aproveitar na máxima potência a liberdade finalmente concedida. Pode dizer-se que Gaiola Aberta — de resto, um título certeiro, pleno de humor e alegria — foi das primeiríssimas publicações a surgir nas bancas, vinte dias depois. A sua enorme capacidade de trabalhar sozinho afinara-o para os desafios vindouros, e para a crítica política e social cujos dessous ele conhecia bem.
O seu não-compromisso ideológico-partidário dava-lhe total liberdade de movimentos para ser um observador mordaz da nova ordem política, rapidamente tornada um caos nacional: numa charge célebre e ácida, haveria de dizer que as prostitutas eram os únicos portugueses que efectivamente trabalhavam no país… À sua galeria de patos-bravos, arrivistas, funcionários e padres — que não haviam desaparecido da noite ao dia — juntavam-se os líderes políticos de diferentes sectores envolvidos em disputas acesas, contradanças de coligação, corridas eleitorais de bicicleta e últimas ceias antes da bancarrota, um festim de sátira e paródia a céu aberto, nas bancas e nos escaparates das tabacarias.
À margem da revista, a propulsão livreira não estancou. O seu sentido de oportunidade fê-lo reagir a livros de figuras do antigo regime com O Depoimento de Américo Thomaz, 40 mil exemplares impressos em Julho de 1975 de um hilariante testemunho apócrifo do antigo presidente da República, “o cabeça de abóbora”, com um prefácio de Gonçalves Rapazote redigido no famoso cabaré Pasapoga, na Gran Vía de Madrid… Entre a bibliografia do almirante, constariam Mais Sete Anos de Jantaradas, Almoços e Coquetéis e Ensaios sobre o Gamanço Corporativo, e entre as suas condecorações a da Real Sociedade da Harmonia Conjugal, «por se ter deitado durante cinquenta anos com D. Gertrudes», sobre quem escreveu Gertrudes, essa Desconhecida…
Numa charla ao programa de Vitorino Nemésio na televisão Se Bem Me Lembro… (cuja capa mostra, como não podia deixar de ser, um velho recordando um generoso traseiro feminino), comenta a nova programação da RTP utilizando gravuras fim de século, como uma mulher barbuda para o programa “Feminino Singular”, ou uma cena a dois num divã para “Motores em Marcha”…
Depois de uma desajeitada e fraca tentativa da Dom Quixote, em 2005-6, de relançar alguns dos seus livros, eis que a E-Primatur, uma nova chancela que réune bons editors de nova geração que assim concretizam um interesse antigo pela obra de Vilhena, lançará nas próximas semanas o primeiro volume da História Universal da Pulhice Humana, estando outros títulos contratados para 2016. É uma boa notícia, que contradiz uma má… Pode ser que o desaparecimento de um génio, como tantas vezes acontece, acenda novas atenções e descobertas da sua obra.
De resto, folhear a produção de José Vilhena, em especial nesses anos de luz e chumbo, leva-nos a pensar que, tal como Rui Zink para a literatura popular de bolso, os historiadores contemporâneos não valorizaram suficientemente a contribuição aguda do humor e da sátira para novas leituras da vida nacional, e que algum trabalho precisa ainda de ser feito pela academia para que tal integração recolha crédito. O estudo de Álvaro Costa de Matos A Revolução no humor maldito: o caso da Gaiola Aberta de José Vilhena, publicado no boletim Jornalismo e Jornalistas, n.º 58, 2014, pp. 55-68, aponta nesse sentido.