Diz que é um “menino da aldeia”. Nascido e criado na aldeia de Cem Soldos, arredores de Tomar, Vasco Mourão passou a infância e a adolescência a desenhar cavalos sem nunca ter visto um ao vivo. Hoje, aos 38 anos, consegue fazer o mesmo com cidades que nunca visitou. Recorre a uma simples caneta preta, porque se afirma “estúpido” demais para ter que escolher cores ou outras ferramentas. E desenha cidades como quem as olha do céu.
Foi assim que traçou as linhas dos edifícios de Nova Iorque para a revista The New Yorker, para onde colaborou durante dois anos. Construiu a cidade que nunca dorme sem nunca a ter pisado. Só mais tarde encontrou ao vivo os edifícios que tinha desenhado, numa visita que culminou numa exposição em Brooklyn. Fruto da sua imaginação, fez também uma ilustração para um outro cliente internacional: a Apple. Um desenho que correu todas as lojas da marca no mundo para o lançamento do iPad Pro.
Perfecionista e até obsessivo, como se assume Mister Mourão (assim conhecido na comunidade artística), Vasco passa metade do ano no seu apartamento em Barcelona e outra metade a viajar. Diz, aliás, que chegou a fazer trabalhos na selva do Vietname. O seu trabalho já foi elogiado por artistas como o ilustrador e autor de banda desenhada François Schuiten. E o genro do ex-Beatle Paul McCartney disse-lhe uma vez que o cantor era fã do traço dele.
Depois de já ter exposto o seu trabalho por alguns países e de ter clientes americanos, asiáticos e europeus, o ilustrador — que desistiu de ser arquiteto — tem agora, pela primeira vez, uma exposição em Portugal, a “Ouroborus – Drawings on Brass” . Foi aqui, na Underdogs Art Store, no Cais do Sodré em Lisboa, que o Observador se encontrou com ele para uma entrevista sobre o seu percurso de vida. Vasco respondeu a tudo e até forneceu imagens. Só resistiu a mostrar fotografias suas em criança. Este seu trabalho, desenhado em anéis de liga de zinco e cobre, pode ser visto em Portugal até ao dia 28 de setembro.
Passou a infância a desenhar cavalos e a ler livros de banda desenhada. Porquê cavalos?
Não sei porquê. O cavalo foi uma obsessão entre os 4 e os 18 anos. Acho que vi um cavalo pela primeira vez ao vivo aos 18 anos! Houve uma altura que os meus pais até ficaram um bocado preocupados, porque eu só desenhava cavalos. Uma vez fui fazer uma conferência para o Japão, comecei a preparar as coisas e perguntei aos meus pais se havia lá em casa desenhos dos cavalos. E aquilo é doentio… São caixas e caixas de cavalos. Tudo o que sejam folhas brancas têm cavalos. Páginas e páginas. É surreal. O meu pai é muito simpático, mas olhava para os meus desenhos e dizia que aquilo não se parecia um cavalo. Mostrava-me fotografias de cavalos, então eu fazia mais e mais para tentar aperfeiçoar.
Assume-se como perfecionista e obsessivo até…
Sim, e era o desafio. Estava a fazer uma coisa que gostava tanto e diziam que não estava bem e tentava fazer de início. Até tenho crochet de cavalos, aproveitava qualquer motivo para desenhar cavalos. Quando fui estudar arquitetura troquei os cavalos por edifícios. Porque, basicamente, quando fui estudar não fazia ideia sequer do que ia fazer…
Não desenha caras…
…Não… Melhor, ainda não encontrei uma maneira de desenhar caras que goste. Para mim desenhar é como escrever. Desenhar caras implica um foco e um processo que eu ainda não consegui decifrar. Tenho umas ideias para umas esculturas, mas é outra coisa…
Foi estudar arquitetura porque uma amiga lhe disse que o curso era “engraçado”… Até aos 18 anos não sonhava, portanto, com uma profissão específica? Só queria desenhar, cantar e tocar guitarra?
(risos) Gostava de ter uma banda com os amigos. Cantar e tocar guitarra era um extra. Mas em casa estava sempre a desenhar e comecei a andar com uma caneta e um caderno atrás, depois de entrar em arquitetura na Universidade do Minho. Como não percebia nada do que andava a fazer, houve um professor que me disse: “Tu desenha, que isso resolve-se”. E isso eu sabia fazer. No primeiro ano do curso há um foco no desenho, então eu aprendi a desenvolver ideias a desenhar. A imagem é o meu alfabeto. O estar sempre a desenhar é uma coisa que me dá imenso prazer.
Mas enquanto estava a estudar chegou a pensar abrir outros negócios que em nada tinham a ver com essa área. Um ATL, uma lavandaria com livraria…
(risos) Eu estou a desenhar qualquer uma das peças e tenho metade do cérebro a desenhar e a outra metade está livre, a correr de um lado para o outro. E às vezes vai encontrando coisas que acho piada. Podem ser ideias divertidas… Mas isto é uma coisa muito de Cem Soldos. Se pensamos numa coisa, fazemos e ela existe. O caso da lavandaria foi por muito pouco. Era para abrir no Porto, porque achava ridículo ter que comprar uma máquina de lavar para uma situação provisória. Também cheguei a ter uma empresa de t’shirts e vendi umas quantas com os meus desenhos. Eram horríveis! Mas não tivemos um sucesso muito grande.
Foi para o Porto depois de acabar o curso?
Sim, porque estava a acabar o curso e ainda a tratar do currículo quando uma professora me convidou para ir trabalhar com ela. E achei bestial, já não tinha que fazer um currículo…
… Nem abrir uma lavandaria, ou ser cozinheiro como também lhe passou pela cabeça…
Essa ideia eu sabia que era difícil. Como a minha mãe é cozinheira, sabia o que custa ter um restaurante. Aquilo é super intenso. Gosto muito de cozinhar, de fazer jantares para os amigos, mas ter um restaurante requer um nível de sacrifício que não tenho. Sou muito preguiçoso para ter um restaurante.
E quando é que decide ir para Barcelona?
Ao fim de quatro anos a trabalhar no Porto já estava cansado, a cidade não era tão divertida como agora. Naquele centro só havia o “Piolho” e pouco mais. E há etapas para tudo. Falei com eles, acabei no verão e passado algum tempo um amigo meu que estava em Barcelona enviou-me um e-mail a perguntar se queria lá ir por um mês, porque precisavam de alguém. Fui e um mês tornou-se um ano. Ele veio embora para Portugal e eu fiquei. Adoro o quotidiano de Barcelona. Um dia especial talvez seja melhor em Londres ou Berlim, mas um dia normal é Barcelona. Uma qualidade de vida surreal. Encontrei uma casa que gosto, numa rua que gosto, num bairro que gosto.
Estava em Barcelona no dia do atentado?
Não, estava em Portugal a trabalhar. Telefonei para os meus amigos de lá, estava tudo bem, reagiram bastante bem. As pessoas sentiram-se de facto protegidas, porque apesar de ter acontecido algo tão horrível, as instituições estavam atentas às pessoas. Foram todos adultos e fizeram o que tinham que fazer. Ainda não voltei a Barcelona desde então, embora esteja cheio de saudades.
Foi lá que começou a desenhar cidades?
Foi há cerca de dez anos quando cheguei. No Porto andava a pé até ao escritório, não tinha carro, nem vida de transportes públicos. Cheguei a Barcelona e disseram-me que tinha 20 minutos de metro. Eu, puto da aldeia, achei muito tempo. Um horror. Como tinha sempre um caderninho, comecei a encher cadernos nos percursos. Sempre uma retrospetiva das peças que estava a fazer no trabalho. Depois comecei a adicionar coisas ao desenho e ele foi crescendo. Ao fim de uma semana tinha três desenhos grandes com muito trabalho. Mostrei a uma amiga e ela sugeriu criar um blogue e uma loja online. Não sabia o que era isso, ela lá me explicou. Achei que não iria dar nada, mas preparei um par de originais, umas reproduções, pus online e fui almoçar. Quando regressei tinha a minha primeira compra. Foi muito estranho, porque nem sequer tinha página web.
E de onde era o cliente?
Do Reino Unido. Aliás, a maior parte dos meus clientes são do Reino Unido ou dos Estados Unidos da América. Agora já há da Ásia. Entre os clientes há arquitetos ou revistas e, nos últimos quatro anos, há também marcas.
O que é que ele comprou?
O clássico do balão.
E quanto custou? Não deve ter sido fácil fazer essa avaliação…
Acho que foram 70 euros. Sim, foi muito complicado fazer um preço. Tentei procurar referências, mas isso depende muito do público e do nome que se tem. Depois os trabalhos de ilustração que fiz foram definidos pelas revistas, por exemplo, uma página 1000 dólares. Comecei a trabalhar para a “Established and Sons”, empresa de mobiliário em Londres, que me contactou e que queria uns desenhos meus para o catálogo de 2015. Foi surreal. Perguntei se queriam que fosse a Londres, disseram-me que sim, que me pagariam a viagem e explicariam o que queriam que fizesse. Um dos responsáveis desta empresa era o marido da Stella McCartney e às tantas na reunião diz-me: “O Paul gosta imenso do teu trabalho”. Eu agradeci, sem saber quem era o Paul, embora tenha notado um certo silêncio na sala. Só quando regressei a casa é que a Madalena (namorada) me disse que ele era casado com a Stella McCartney, filha do Paul McCartney. Foi o meu primeiro grande trabalho com grande exposição. O catálogo foi para a exposição de Milão, foi porreiro. Mas houve umas aventuras.
Aventuras?
Tive que inserir o mobiliário deles num teatro antigo onde tinham feito a sessão fotográfica das peças. Fiz o original numa semana e meia e enviei aquilo num tubo, com seguro. Mas a empresa de transporte perdeu o trabalho! Durante uma semana procurámos, de um lado e do outro, mas o trabalho não aparecia. Até que me pediram para fazer outro. Fi-lo em dois dias. Foi super tenso e horrível. Enviei aquilo por outra empresa, chegou lá na tarde seguinte. Quando chegou, telefonaram-me a dizer que, entretanto, tinha chegado o outro trabalho. Tinha passado um camião por cima e estava dobrado e um pouco rasgado. Acabei por dar esse desenho à diretora criativa da empresa que o expôs em casa dela. E a partir desse desenho, houve um amigo dela que já me deu imensos trabalhos. O que perdes de um lado, ganhas do outro. Aos poucos fui começando a trabalhar menos dias no escritório até que decidi viajar para a Ásia e me despedi.
Mas antes de partir casou numa quinta abandonada em Cem Soldos…
Nós somos namorados há muito tempo e ainda nos apresentamos como tal. Tivemos uma sorte incrível de crescermos e de sempre gostarmos das pessoas em que nos tornámos. É ótimo estar com uma pessoa que sabe as tuas referências, sabe de onde vens e, de vez em quando, te lembra disso e te faz descer à terra. Nós queríamos ter uma festa para reunir os amigos todos. E quando dizes “casamento” todos vão. Durante duas semanas limpámos uma quinta que estava muito descuidada em Cem Soldos, pendurámos as luzes, utilizámos material da festa da aldeia. A nossa família fez almofadas para espalhar pela quinta. Trouxemos matraquilhos e pingue-pongue… O meu padrinho veio de calções e t’shirt. Não queríamos fingir que somos mais do que aquilo que somos durante um dia. A minha avó até perguntou se estávamos realmente casados, apesar de lá ter estado a senhora do registo civil.
Como correu na Ásia?
Tínhamos muita vontade de viajar, de ter histórias, mas ao início fomos muito mariquinhas. Decidimos ir dois meses para Bali (Indonésia) e um amigo ficou na nossa casa em Barcelona. Esses dois meses passaram para cinco e dois países passaram para seis: Indonésia, Tailândia, Vietname, Hong Kong, Macau, Japão. Nós não gostamos muito de viajar, de andar de um lado para o outro. Gostamos de viajar e ficar lá durante algum tempo. Em Bali ficámos durante dois meses, na mesma ilha, no mesmo sítio e é muito fácil ter uma rotina agradável. O importante é estar perto da água, dar uns mergulhos, fazer surf, comer umas frutinhas … E todos os dias parecem iguais, não parece haver fim-de-semana. E isso é muito agradável. Este ano estivemos um mês na Malásia e depois no Sri Lanka. A Malásia é um país bastante formal, para alugarmos casa tínhamos que ter uma série de papéis, uns seguros, então um amigo meu falou-me do Sri Lanka e ficámos encantados.
Ganhou uma bolsa e foi para o Japão. Que bolsa foi essa?
Depois de termos passado 20 dias no Japão como turistas, em locais onde nem sequer se falava inglês, tinha que encontrar uma forma de passar lá mais tempo, porque precisávamos de visto. Então encontrei online uma residência artística numa cidade chamada Matsudo, que está a 20 quilómetros de Tóquio de comboio (o que nos permitia ir lá almoçar quase todos os dias). Tóquio é uma cidade com 12 milhões de habitantes, mas que parece uma aldeia… É muito estranho. A residência artística chamava-se “Long Stay” e significava ficar num antigo hotel, onde havia uma comunidade muito parecida com Cem Soldos. Pretendia-se que os artistas fizessem algo a partir da cidade com alguma relação com a comunidade. Eu queria desenhar a cidade, mas não a conhecia. Então fiz um pequeno formulário em inglês e japonês para perguntar às pessoas porque gostavam de Matsudo. Pensei fazer 20 entrevistas e acabei a fazer 94. Entrevistei todas as pessoas que encontrei, desde o presidente da câmara ao barbeiro. No final tinha uma lista de edifícios e de sítios para visitar. Fiz um desenho de 2,5 metros por 1,5 metros sobre a cidade, com uma interpretação muito clássica e muito clara da cidade — que é cortada pelo rio e pela linha de comboio.
Mas faz sempre esse trabalho de campo antes de desenhar uma cidade? Só faz cidades que visitou ao vai, por exemplo, ao Google Maps?
Depende. Uso todas as ferramentas disponíveis. Gostei imenso deste projeto porque estava a viver na cidade que estava a desenhar. Ia com a Madalena comprar tofu e via um detalhe que gostava e passadas três horas estava a desenhá-lo. Este é o método de trabalho que eu quero fazer. Viver na cidade enquanto a estou a desenhar. Mas, por exemplo, Nova Iorque desenhei quatro ou cinco vezes, fiz trabalhos para a The New Yorker e para alguns clientes sem nunca ter ido à cidade. Então usava ferramentas como o Google Maps, as referências fotográficas… Como eu tenho muita folha para ocupar, mais do que o Rockefeller Center ou o Chrysler Building, fazia edifícios anónimos. Então foi muito engraçado, quando visitei a cidade, encontrar esses edifícios.
Como foi chegar a Nova Iorque depois de ter feito alguns desenhos sobre a cidade sem a conhecer?
Até a achei baixinha (risos). Achei Nova Iorque bastante baixinha. Hong Kong sim, é surreal, porque a distância entre os edifícios é menor e é uma densidade… Aí sim, pode ser opressivo, o ambiente urbano pode ser muito intenso. Nova Iorque até é tranquilinho e bastante soft. Pensava que os edifícios fossem maiores. A primeira vez foi quando fiz um trabalho para um festival da The New Yorker. Foi super divertido, porque havia táxis e autocarros pela cidade com o meu trabalho. E paredes enormes. Andava a passear e a ver o meu trabalho por todo o lado. Adorei. Depois voltei lá para uma exposição que fiz em Brooklyn.
E nessas exposições já apareceu alguém que não estava à espera?
Não… Às vezes tenho umas surpresas online. Cheguei a receber um elogio do François Schuiten, que desenhou “Cidades Obscuras” via Facebook. No trabalho que fiz para a Apple, quando cheguei ao hotel, disseram-me que iam apresentar-me aos restantes artistas. Eu não sabia quem era, porque era tudo muito top secret e apresentam-me ao James, Patrick e Jake (Weidmann). Eu conhecia o trabalho deles todos! O James Jean, um excelente profissional. Aliás, a pessoa mais talentosa que já vi na minha vida. O Patrick Vale que também desenha cidades, com um swing e uma linha lindíssima e adorei estar uma semana com eles. No final tornámo-nos amigos.
Passa seis meses do ano em Barcelona e seis meses a viajar. Passou algum tempo também nos Açores…
Sim, depois da viagem pela Ásia começaram a haver voos low cost para os Açores e achámos que devíamos ir lá. Primeiro achei que o destino não era exótico o suficiente, mas depois adorei. Gostámos tanto que até comprámos lá um terreno. (Risos.) É no Pico, tem vista para o Faial, Madalena ao fundo. Está perfeito! Comprámos aquilo quando estávamos no Japão através do OLX. Telefonei para a senhora: “Olhe, isto é mesmo a sério? Então a minha advogada já vai falar consigo”. Então tivemos que encontrar uma advogada no Pico e só este ano fomos lá ver o terreno. O preço era inacreditável. É um hectare, é gigante! Tem uma vista fenomenal, uma sorte incrível. Já temos uma família adotiva lá. Adoramos. Ter lá uma base extra além de Barcelona seria bestial.
Pode dizer-se que é mais reconhecido internacionalmente do que em Portugal?
… Sim, quer dizer, não diria. Perguntei na Apple como me tinham encontrado e disseram-me que há um departamento que está a ver o que as pessoas estão a fazer online e vão catalogando. Quando precisam para um trabalho, tiram da gaveta e escolhem as opções. Eu estava na gaveta. Outras vezes é um contacto de um contacto. Depois, nas revistas, as pessoas mudam e levam o nosso contacto. Basicamente é estar lá. A internet é mesmo uma aldeia. A The New Yorker foi ao Google e pesquisou “cidades+detalhe+preto e branco”. Foi esse o nível de pesquisa. Também acho que o mercado de ilustração no mundo anglo-saxónico é bastante potente e forte, os custos são completamente diferentes, são mais bem pagos e isso cria uma indústria.
Quais são os planos agora? Para onde vão?
Nós viajamos sempre com sete quilos, mesmo em voos intercontinentais, porque viajamos até encontrar o sítio que gostamos. Portanto sabemos que em fevereiro estaremos em Singapura, para um projeto novo. Quero desenhar em torres que se podem conjugar umas com as outras e formar uma cidade. Depois logo se vê.