Pressão nas famílias, pobreza, falta de inclusão, barreiras físicas e sociais por resolver. Fernando Fontes diz que somos mais condescendentes com quem “fica deficiente” do que com quem “nasce deficiente”; sublinha que vemos a deficiência como uma sentença de morte e refere que só quando temos de andar com um carrinho de bebé num pavimento desnivelado é que percebemos as dificuldades de uma pessoa em cadeira de rodas.
O sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, especialista em políticas de deficiência e crimes de ódio contra pessoas com deficiência, é o autor do ensaio “Pessoas com deficiência em Portugal”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em entrevista ao Observador, conta tudo o que viu e aprendeu sobre a deficiência.
No livro fala numa tríade de fenómenos ligados à deficiência: opressão, pobreza e exclusão social. A deficiência nunca vem sozinha?
Muito dificilmente. Os recentes estudos dizem que existe uma forte ligação entre a deficiência e estes fenómenos. A opressão e a falta de inclusão têm a ver a forma como as pessoas com deficiência são vistas na sociedade portuguesa. São vistas como sendo inativas e como não tendo capacidade de trabalho. O seu corpo é perspetivado como um objeto estranho.
E a parte da pobreza? São pessoas que têm muitos gastos e, ao mesmo tempo, têm poucas possibilidades de arranjar emprego?
Exatamente. Têm custos acrescidos porque vivem em sociedades que não estão abertas à diferença, com constantes barreiras à participação e à mobilidade. Os subsídios são mínimos. O subsídio mensal vitalício, para pessoas com mais de 24 anos, é de 176,76€. Alguém consegue viver neste país com este valor? Há despesas médicas acrescidas, há despesas de deslocação que é preciso ter em conta, uma vez que os transportes públicos muitas vezes não são acessíveis a estas pessoas. E mais: há que ter em conta o custo de ter um elemento da família a despender imenso tempo com aquela pessoa.
26.300€
Estima-se que um agregado familiar que tenha uma pessoa com deficiência tenha um custo adicional por ano de 5100 a 26.300 euros.
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
A família pode sofrer tanto ou mais que a pessoa com deficiência?
Sim, até porque muitas das consequências abatem-se sobre a família. O que eu verifiquei na minha investigação é que, no caso das crianças, a grande maioria das mães acaba por deixar o posto de trabalho ou por perdê-lo. Ter uma criança com deficiência significa levá-la muitas vezes à terapia e ter consultas médicas que podem durar uma manhã inteira ou um dia inteiro. Aquela mãe perde uma manhã inteira de trabalho para estar ali. Isto tem um impacto direto na sua vida profissional e depois, quando é altura da renovação do contrato, isso não acontece. Ou então acaba por deixar o seu local de trabalho, uma vez que não confia nos serviços de saúde para tomar conta do filho, ou sente-se responsável e acaba por ficar em casa a tomar conta dele.
Os pais têm medo do que vai acontecer aos filhos depois de morrerem?
Sim, sem dúvida. Têm pânico de morrer. Pensam muito no que vai acontecer aos filhos. Por isso é preciso dar ferramentas às pessoas com deficiência para que elas se autonomizem e para retirar alguma pressão das famílias.
E como é que isso se faz?
Estamos a dar passos importantíssimos em Lisboa com o projeto “Vida Independente”, financiado pela Câmara Municipal de Lisboa. Foi constituído um Centro de Vida Independente (CVI) que tem funcionários que são assistentes pessoais das pessoas com deficiência e que as ajudam nas tarefas do dia-a-dia, como a higiene pessoal, o vestir, acompanhar ao trabalho, acompanhar à universidade, preparar refeições, e tudo o que aquela pessoa não consiga fazer sozinha. É preciso fazer uma avaliação às competências das pessoas com deficiência, para determinar o número de horas de assistência que necessitam. E depois são essas pessoas que pagam ao assistente pessoal, com o dinheiro do projeto. E podem recrutar, treinar e gerir o seu assistente, sem a mediação de terceiros.
O que é que isto vai fazer? Vai autonomizá-las das suas famílias. Vai dar-lhes as rédeas da sua vida e das suas decisões. Isto não significa que estas pessoas venham a ser independentes, até porque nenhum de nós é totalmente independente. Todos nós somos dependentes de um conjunto de coisas: de tecnologias, de eletricidade, de água… Isto significa, sim, que estas pessoas têm um apoio para poderem funcionar na sociedade. A ideia é que depois o projeto seja implementado em outros municípios.
Ainda sobre a família. Também há algumas que se separam por causa da deficiência, certo?
Sim, sobretudo em casos de deficiência adquirida. Por exemplo, eu estive envolvido num projeto de pessoas com lesão medular, que é uma lesão que pode acontecer por causa de um acidente ou por infeção na espinal medula. É uma coisa repentina — uma pessoa tem uma vida sem qualquer incapacidade e, de um momento para o outro, fica paraplégica ou tetraplégica. Isto depois tem um impacto muito grande nas relações dos casais. Muitas vezes as pessoas acabam por se divorciar, porque há uma “deserotização” da relação. Um dos elementos do casal transforma-se num prestador de cuidados ao outro. E tem sempre o peso todo sobre si. É uma pressão enorme.
No livro diz que somos mais condescendentes com a deficiência adquirida do que com a deficiência de nascença. Porquê?
É uma postura que já dura há séculos. Há visões diferentes. No caso da diferença congénita, basta falarmos com pessoas de mais idade. Trabalhei com crianças dos 0 aos 6 anos com deficiência visual, que nasceram assim, e fiz a minha tese de mestrado em políticas de apoio a famílias de crianças com deficiência visual. Nas entrevistas era recorrente ouvir pessoas a dizer: “Ai, valia mais que Deus o levasse!”. Ou seja, valia mais que tivesse morrido, que não tivesse nascido. Isto é uma coisa que magoa muito os pais e que muita gente diz. A ideia de vida humana que está aqui, sobre o que é ou não viável, é absolutamente terrível.
Por outro lado, quando a deficiência é adquirida num momento da vida, há mais condescendência. Em termos históricos, as crianças com deficiência eram abandonadas para morrerem, mas se fosse uma deficiência adquirida em resultado da guerra já havia médicos para tratar — na altura das Cruzadas, foram criados abrigos para homens que cegaram. A grande maioria dos direitos que as pessoas com deficiência hoje têm em Portugal, ao nível da Segurança Social, foram estabelecidos após o 25 de abril. Estes direitos foram para os deficientes das Forças Armadas — os militares que lutaram na Guerra Colonial e que regressam a Portugal. Isto ajudou a criar alguma consciência política da sua situação.
No livro fala em “crimes de ódio” contra deficientes. Não é um pouco estranho usar esta expressão aqui? Porque é que associamos mais um “crime de ódio” ao racismo, por exemplo?
Bom, historicamente os crimes de ódio surgem ligados aos crimes de racismo, de xenofobia ou até da homofobia. Mas percebo a questão. Para nós, no caso das pessoas com deficiência, é um pouco inconcebível: “Como é que as pessoas podem odiar as pessoas com deficiência?”. Mas é assim. Um crime de ódio contra uma pessoa com deficiência é um crime cometido com base no preconceito. Os agressores têm um conjunto de ideias sobre estas pessoas que as leva a atacá-las, a assaltá-las e a violá-las.
O abuso sexual e a violação são os principais crimes cometidos contra estas pessoas em Portugal, certo?
Sim, são sobretudo crimes de abuso sexual e violação. As vítimas são mulheres entre 20 e 30 anos com dificuldades de aprendizagem e deficiência mental. Porque é que estes homens abusam destas mulheres? Porque existe a noção de que estas mulheres não são testemunhas credíveis e de que elas não vão dizer a ninguém o que está a acontecer, porque ninguém vai acreditar nelas. As vítimas até podem contar, mas ninguém acredita no que elas dizem. Depois, por cá, também há casos de escravização. Lembro-me de um caso de uma família no Norte que escravizou um afilhado durante 20 anos. Utilizavam-no para trabalhar na agricultura, ele vivia numa barraca ao lado da casa da família, comia os restos que sobravam da própria família.
Noutros países, como por exemplo em Inglaterra, os crimes têm outra natureza. Lembro-me do caso de uma senhora que tinha uma filha com deficiência intelectual e que foi atacada durante anos pelos jovens da comunidade. Anos a fio. Partiam-lhe os vidros, atiravam lixo para o jardim, pegavam fogo às árvores, destruíam-lhe as janelas. Ela ligava para a polícia e nada foi feito. Um dia, ela acaba por se suicidar. Vai para um beco, leva a filha dela, pega fogo ao carro e mata-se a ela e à filha.
Vamos às barreiras que ainda existem em Portugal. Ainda estamos na questão das rampas?
Ainda há imensas barreiras físicas, que se veem no dia a dia: as escadas que não têm rampas (ou que as têm mas que não respeitam as normas de inclinação), os elevadores que não têm a largura suficiente para uma pessoa em cadeira de rodas… Mas depois temos as barreiras psicológicas, que são as que têm a ver com o preconceito: as ideias preconcebidas sobre a pessoa com deficiência e sobre o seu corpo.
É como se se ficasse inútil?
Sim. Para já, olhamos para a deficiência como uma tragédia que acontece na vida daquela pessoa. E isso torna-a incapaz de trabalhar, incapaz de tomar conta da sua vida, incapaz de constituir família, incapaz de ter sexualidade. Incapaz de ter uma vida igual a qualquer outra pessoa. E isso não é verdade. Nós nem reparamos neste tipo de barreiras até passarmos por uma situação dessas. E isto verifica-se sobretudo na questão das barreiras físicas.
Por exemplo?
Olhe, você só repara que o piso não está em condições para uma pessoa em cadeira de rodas se tiver de circular numa cidade com um carrinho de bebé. É a primeira vez que se depara com isto. Agora imagine alguém que vive isto todos os dias. Naquele projeto que tivemos aqui no Centro de Estudos Sociais, que se chamava “Da lesão medular à inclusão social”, analisámos todo o processo de reabilitação médica, de estabilização e depois a reintegração na comunidade daquelas pessoas. Um entrevistado, que tinha estado no centro de Alcoitão, disse-nos: “Aquilo lá era um paraíso, era a terra prometida. Não há barreiras ali. Eu até me esquecia que sou uma pessoa com deficiência. Quando chego cá fora a um sítio e tenho umas escadas, há imediatamente um sininho a tocar a dizer: ‘Eu sou uma pessoa com deficiência'”.
Mas o que é que impede a integração plena das pessoas com deficiência?
As nossas sociedades são herdeiras de uma cultura que nunca foi simpática para as pessoas com deficiência. As nossas bases estão na Grécia e na Roma antiga, que eram sociedades muito centradas na perfeição do corpo e do culto da beleza. A deficiência era absolutamente excluída. As crianças com deficiência nas sociedades gregas e romanas eram expostas e colocadas ao abandono em grutas, prestes a morrerem. Martinho Lutero dizia que as crianças com deficiência eram uma massa de carne quase sem alma e que valia mais deixá-las morrer. A própria Bíblia tem algumas noções da deficiência como forma de pecado e de impureza.
Mas a Igreja também está ligada à caridade e à ajuda aos deficientes.
Sim, a questão da caridade ainda prevalece na nossa sociedade. A moral judaico-cristã ainda nos molda muito. A Bíblia tem essas duas visões: a visão penalizadora da deficiência e a visão da caridade com os deficientes. Ao longo do tempo, a Igreja foi tendo um apoio importantíssimo a estas pessoas. Os primeiros abrigos, os primeiros hospitais, faziam parte da Igreja Católica.
Os Jogos Paralímpicos 2016 estão a terminar. Que efeito tem um evento destes na valorização das pessoas com deficiência?
Dão visibilidade. Dão voz e imagem às pessoas com deficiência. Se não tivéssemos os Paralímpicos, se calhar grande parte dos artigos da comunicação social sobre as histórias destas pessoas não saíam. Depois, integra estas pessoas no desporto. Existem desportos específicos para pessoas com deficiência e são pessoas que não iriam competir em pé de igualdade com pessoas sem deficiência.
Mas a questão do “herói” também pode ser complicada. Uma vez, uma senhora de uma direção de uma instituição perguntou-me: “Porque é que será que, para que a sociedade nos valorize, temos de ser os melhores em tudo aquilo que fazemos?” Na altura, eu percebi que aquele pensamento era uma forma de opressão social. Têm de ser os melhores porquê? A pessoa com deficiência tem de ser muito boa naquilo que faz para parecer que nem tem deficiência. Para mostrar que não é igual às outras pessoas com deficiência. Só aí é que ela é valorizada. É uma questão que merece cuidado.
No livro tem esta frase: “O aumento da esperança média de vida, os avanços da medicina e o envelhecimento da população transformaram cada ser humano numa potencial pessoa com deficiência”. Isto é um pouco assustador, não?
É, mas é a mais pura realidade. É um despertar para todos os nós. Tudo aquilo que nós fizermos para o bem-estar e para a qualidade de vida das pessoas com deficiência, pode influenciar-nos a nós também. Um acidente de carro, uma infeção, uma doença súbita. Todos nós podemos vir a ser pessoas com deficiência.