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Assinala-se este domingo, 13 de março, o terceiro aniversário da eleição do Papa Francisco. Para marcar a data, o economista João César das Neves escreveu um livro onde reflete sobre o pensamento económico do Papa. Na obra “A Economia de Francisco — Diagnóstico de um Equívoco” o autor clarifica que o “propósito do livro não é fazer uma análise económica das posições do Papa Francisco, discutir a sua validade ou medir o seu impacto na realidade empresarial. O objetivo é unicamente ouvir o Papa Francisco como ele quer ser ouvido”. O livro já chegou às livrarias e, na segunda parte do capítulo 2, que o Observador pré-publica, o autor analisa a relação do Papa com os cânones da Igreja e clarifica a relação entre o marxismo e a doutrina da Igreja.
Trata-se de uma visão socialista?
“O primeiro erro, como vimos, é desqualificar à partida a análise espiritual de Francisco confundindo-a com uma reação emotiva e sentimental. Mas aqueles que a tomam a sério caem depois com frequência num segundo erro: o de confundir a doutrina da Igreja com uma visão ideológica de esquerda.
Já fomos vendo como o Santo Padre responde a isto: ele limita-se a apresentar a doutrina da Igreja. Antes de analisarmos até que ponto esta afirmação é justa, vale a pena inspecionar a resposta de Francisco à acusação.
Como já vimos, ele já enfrentou este tipo de comentários durante o seu período argentino. A reação costumava ser citar um dos seus trechos favoritos, Mateus 25:
«Acontece que – como já disse numa visita à rádio do Santuário de São Cayetano – é um dever compartilhar com os nossos irmãos a alimentação, o vestuário, a saúde, a educação. Alguns podem afirmar: “Mas que grande padre comunista!”. Não, o que digo é puro Evangelho. Porque, atenção, vamos ser julgados por isto. Quando Jesus vier julgar-nos, vai dizer a alguns: “Porque tive fome e deste-Me de comer, tive sede e deste-Me de beber, estava nu e vestiste-Me, estive doente e visitaste-Me”. E perguntar-se-á, então, ao Senhor: “Quando é que fiz isso, porque não me lembro?”. E Ele responderá: “De cada vez que o fizeste a um pobre, a Mim o fizeste. Mas também vai dizer a outros: “Fora daqui, porque tive fome e não Me deram de comer”. E também nos repreenderá pelo pecado de ter vivido deitando as culpas da pobreza aos governantes, quando a responsabilidade, na medida das nossas possibilidades, é de todos».
Assim que foi publicada a Evangelii Gaudium, a mesma acusação explodiu. Temos de dizer, mais uma vez, que o remoque não vem de comentadores sérios e, ainda menos, de cristãos minimamente informados. Esses sabem bem aquilo que as sucessivas encíclicas sociais têm ensinado e que, mesmo se de forma mais contundente, Francisco repete. Na verdade, temos de dizer que esta crítica é relativamente espúria. No entanto, os jornalistas nunca deixam passar uma oportunidade de a referir, embora deixando sempre vaga a origem da atribuição.
Ao princípio, o Papa ainda se dava ao trabalho de explicar demoradamente o erro. Mas faz sempre questão de não cair na jogada dos críticos, afirmando que conhece muitos marxistas bons:
«Alguns trechos da Evangelii Gaudium valeram-lhe acusações dos ultraconservadores americanos. Que efeito tem para um Papa sentir-se definido como “marxista”?
A ideologia marxista está errada. Mas na minha vida conheci muitos marxistas bons como pessoas, e por isso não me sinto ofendido. As palavras que feriram mais foram sobre a economia que “mata”… Na exortação não há nada que não se encontre na doutrina social da Igreja. Não falei de um ponto de vista técnico, procurei apresentar uma fotografia do que acontece».
Mais tarde, regressando a Mateus 5 e 25, inverte a crítica e «acusa» os comunistas de serem cristãos:
«Passa por ser um Papa comunista, pauperista, populista. The Economist, que lhe dedicou uma capa, afirma que fala como Lenine. Reconhece-se nestas vestes?
Eu digo só que os comunistas nos roubaram a bandeira. A bandeira dos pobres é cristã. A pobreza é o centro do Evangelho. Os pobres estão no centro do Evangelho. Tomemos Mateus 25, o protocolo segundo o qual nós seremos julgados: tive fome, tive sede, estive preso, estava doente, nu. Ou então vejamos as Bem-Aventuranças, outra bandeira. Os comunistas dizem que tudo isto é comunista. Sim, porque não, vinte séculos depois. Então, quando falam, poderia dizer-lhes: “Mas vós sois cristãos” (risos)».
A repetição contínua torna difícil uma resposta original. Mas num encontro com os jornalistas, à saída de um país comunista, Francisco admitiu que possa haver algum motivo para a confusão, para logo a seguir eliminar esse erro:
«As coisas podem ser explicadas. É possível que alguma explicação tenha dado a impressão de ser um pouquinho mais “esquerdista”, mas seria um erro de explicação. Não. A minha doutrina na Laudato Si’, sobre tudo isso, sobre o imperialismo económico e tudo o mais, é da doutrina social da Igreja».
Padres da Igreja e comunistas
Esta acusação é, portanto, inválida. Aliás, para se defender dela, Bergoglio cita com frequência os Padres dos primeiros séculos. Este argumento aparece já no período argentino:
«Alguns, quando leem coisas da opção preferencial pelos pobres dizem: “Que comunistas, que revolucionários!”. Leiam os Santos Padres. Leiam São Jerónimo, dos séculos II, III, IV, V. Nós nas expressões somos menos selvagens do que eles. Eram duríssimos neste ponto, na opção pelos pobres».
Mais marcante é a explicação que o cardeal dá durante o seu interrogatório diante do tribunal sobre os crimes da ditadura argentina, no qual Bergoglio compareceu como testemunha. Nas perguntas feitas pelo advogado da parte civil, o arcebispo fez questão de explicar demoradamente o sentido da opção preferencial pelos pobres, desde o Evangelho até Medellín, passando pelos Padres, São Lourenço e o Concílio Vaticano II. A pequena história de São Lourenço é mais uma das suas favoritas, citando-a com frequência.
«Rito: Recorda-se de ter ouvido a expressão “padres dos bairros de lata” [curas villeros]?
Bergoglio: Sim.
Rito: O que significa? Em que contexto se dizia?
Bergoglio: Eram os sacerdotes que trabalhavam nos bairros pobres. […]
Rito: Segundo o senhor, isso tem alguma coisa a ver ou inspira-se nalgumas declarações que saíram no Concílio Vaticano II?
Bergoglio: Sim, embora a opção pelos pobres remonte aos primeiros séculos do Cristianismo. Está no próprio Evangelho. Se eu lesse como homilia alguns dos sermões dos primeiros Padres da Igreja, diríeis que a minha homilia era maoísta ou trotskista. A Igreja sempre tem honrado a opção de preferir os pobres. Considerava que os pobres são um tesouro da Igreja. Durante a perseguição do diácono Lourenço, que era o administrador da diocese, quando lhe pediram que levasse todos os tesouros da Igreja […], ele apresentou-se com uma maré de pobres e disse: “São estes os tesouros da Igreja”. Estou a falar dos séculos II e III. A opção pelos pobres vem do Evangelho. Durante o Concílio Vaticano II, reformulou-se a definição de Igreja como povo de Deus, e é a partir daí que este conceito se fortalece; e, na segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Medellín, transformou-se na forte identidade da América Latina».
O Papa tem indiscutivelmente razão. Nos primeiros tempos da Igreja, os tempos de fome e carestia suscitavam textos muito violentos contra os ricos insensíveis e exploradores. Não admira pois que Jorge Bergoglio use expressões fortes que, no entanto, sabe serem «menos selvagens» do que as de São Basílio Magno (329 – 379), Santo Ambrósio de Milão (340 – 397) ou São João Crisóstomo (349 – 340), entre outros.
Acusação de pauperismo
Para além da ligação aos Padres da Antiguidade, que Francisco assume, existe uma outra referência implícita à história da Igreja nas acusações, mas essa é rejeitada. Na época medieval, sobretudo à volta das ordens mendicantes dos Franciscanos e Dominicanos, surgiram algumas perspetivas qualificadas de «pauperistas» que defendiam a pobreza em si mesma como um valor. Essas teses extremistas, que geraram tanta confusão, foram condenadas pela Igreja.
Numa das entrevistas em que foi confrontado com essa identificação, o Papa referiu o erro, mas, como se pode ver, em vez de se dar ao trabalho de o desmontar, limitou-se a descartá-lo e a referir a doutrina cristã sobre a pobreza:
«O Evangelho condena o culto à riqueza. O pauperismo é uma das interpretações críticas. Na Idade Média havia muitas correntes pauperistas. São Francisco teve a genialidade de colocar o tema da pobreza no caminho evangélico. Jesus disse que não se pode servir a dois senhores, Deus e o dinheiro. E, quando formos julgados no final dos tempos (Mateus, 25), perguntar-nos-ão pela nossa proximidade com a pobreza. A pobreza afasta-nos da idolatria e abre as portas à Providência. Zaqueu entrega a metade das suas riquezas aos pobres. E a quem tem os seus celeiros cheios do seu próprio egoísmo o Senhor, no final, lhe pedirá contas. Creio ter expressado bem o meu pensamento sobre a pobreza na Evangelii Gaudium».
O Papa Francisco está consciente de que a pobreza não é um fim em si mesma. Aliás, em si, a pobreza é um mal. Mas ela torna-se um instrumento útil quando, esvaziando-nos dos bens deste mundo, abre espaço para nos abrirmos a Deus:
«O Senhor ensina-nos qual é o caminho: não é o caminho da pobreza pela pobreza em si. Não! É o caminho da pobreza como instrumento, para que Deus seja Deus, para que Ele seja o único Senhor! Não o ídolo do ouro! Além disso, todos os bens que temos, o Senhor no-los dá para fazer o mundo seguir em frente, para que a humanidade siga em frente, para ajudar, para ajudar os outros».
Assim regressamos ao problema da idolatria, a questão central de que devemos cuidar: amar a Deus «com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento, e com todas as forças» (cf. Mc 12, 30). Isso implica amar a Deus com todo o nosso dinheiro também. Se o dinheiro ocupa algo do nosso coração, da nossa alma, do nosso entendimento ou das nossas forças, violamos o mandamento e existe idolatria.
É pois evidente que aqueles que acusam o Papa de pauperismo ignoram a verdadeira posição da Igreja. Esses, aliás, ficam sempre anónimos, por falta de substância da sua posição.
Marxismo e doutrina da Igreja
Para terminar o tratamento desta crítica, é conveniente considerar brevemente as relações entre a doutrina da Igreja e o marxismo. De facto, uma das manifestações mais claras do mal-entendido que este livro pretende combater está precisamente nesta identificação das posições papais com ideologias de esquerda. Já sabemos que o Papa considera que a identificação resulta da ignorância, aliás dos dois lados: «Certamente quem fez esse comentário não conhece a doutrina social da Igreja e, no fundo, não conhece assim tão bem sequer o marxismo».
Os discípulos do carpinteiro de Nazaré têm afirmado desde sempre as duas ideias que hoje a doutrina formula como «destino universal dos bens» e «opção preferencial pelos pobres». Isso já acontecia séculos antes de Robespierre e Marx. Como também afirmou Francisco, foram eles que roubaram essa bandeira. Mas, além de muito anteriores ao socialismo de qualquer espécie, estes conceitos da doutrina cristã são em certa medida alheios a essas ideologias. Vale a pena elucidar rapidamente este ponto.
Existe uma diferença enorme entre o conceito de destino universal dos bens e a forma como o marxismo considera a questão da propriedade. No sistema comunista não existe nenhum destino universal, mas apenas a anulação da propriedade individual em nome da propriedade coletiva. Esta distinção não exige grande elaboração, porque foi um dos aspetos mais centrais da condenação do socialismo que a Rerum Novarum e, depois dela, todas as encíclicas sociais fizeram.
Depois de estabelecer que «a propriedade particular e pessoal é, para o Homem, de direito natural» (RN 5), o Papa Leão XIII não só explica claramente porque é que o intervencionismo estatal não é adequado para lidar com este problema, mas também relaciona cuidadosamente este conceito com o destino universal dos bens:
«E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao Homem e, antes que ele pudesse formar-se, já o Homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto de que Deus concedeu a Terra a todo o género humano para a gozar, porque Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não atribuiu uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos» (RN 5).
Quanto à preferência pelos pobres, é importante dizer que o sistema comunista não a conhece. Aliás, Karl Marx desprezava os mendigos como lumpen proletariat. A sua preferência ia para os trabalhadores, que, através da sua exploração, se tornam veículos da revolução libertadora. Esta confusão é ainda hoje muito comum, quando as pessoas se surpreendem por verem marxistas ricos sem praticar esmola. Estão a confundir a caridade cristã com o desejo da revolução libertadora. Aliás, para um comunista, dar esmola significa perpetuar a exploração, adiando a revolta purificadora.
Mais uma vez fica clara a importância do esclarecimento que São João Paulo II fez em 1987 acerca da relação entre a doutrina da Igreja e as ideologias:
«A doutrina social da Igreja não é uma “terceira via” entre capitalismo liberal e coletivismo marxista, nem sequer uma possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria. Não é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do Homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. […] Ela pertence, por conseguinte, não ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral» (SRS 41).
Só quem entende esta explicação pode ler com proveito as afirmações do Papa Francisco sobre economia.”
Por facilidade de leitura, este texto é publicado sem as notas de rodapé do original.