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1917 foi o ano mais importante da vida de Rachmaninov: a Revolução de Outubro levou-o a deixar a Rússia para trás – fazia parte da aristocracia que os bolcheviques pretendiam erradicar – mas embora tenha gozado de fama e desafogo financeiro nos países por onde andou, a sua criatividade foi definhando, como se as suas ideias só frutificassem plenamente no país natal.
Aprendizagem
Sergei Rachmaninov nasceu a 1 de Abril de 1873 numa das propriedades que a família possuía na província de Novgorod. Os Rachmaninov eram aristocratas cuja ascendência remontava a Estêvão III, um príncipe moldavo do século XV – o tipo de “gente do passado” que não tinha lugar na sociedade bolchevista que Lenin se propôs construir a partir de 1917. Havia antecedentes musicais na família e o avô paterno fora aluno de piano de John Field, um precursor do Romantismo que, a partir de 1802, passou vários anos na Rússia.
Sergei começou a estudar piano aos quatro anos e entrou para o Conservatório de São Petersburgo aos dez, em 1883. Porém, por esta altura, a incompetência financeira, o estilo de vida e a propensão para o jogo do pai já tinham feito evaporar a fortuna familiar, obrigando à venda de quatro das cinco herdades e à mudança da família para um pequeno apartamento em São Petersburgo. apesar do talento inato, Rachmaninov não se aplicava nos estudos e, a conselho do primo Aleksandr Siloti, acabou por ser enviado, em 1885, para Moscovo, para ser aluno de Nikolai Zverev.
Aqui encontrou como colega Aleksandr Scriabin (ver “O pai do psicadelismo morreu há 100 anos”), que tinha doze anos (menos um que Rachmaninov), uma temperamento extrovertido (contrastando com o reservado Rachmaninov) e um talento pianístico não menos invulgar. Sob a disciplina estrita de Zverev, o desempenho de Rachmaninov melhorou apreciavelmente: em 1887 entrou no Conservatório, onde teve aulas com Siloti e recebeu o encorajamento de Tchaikovsky.
Em 1892, aos 18-19 anos, concluiu o curso com distinção, arrebatou a Grande Medalha de Ouro do Conservatório, deu o primeiro concerto como cabeça de cartaz (onde estreou o seu Trio elegíaco n.º 1 para piano violino e violoncelo), estreou o seu Concerto para piano n.º 1 e viu a sua ópera Aleko, com libreto de Pushkin, ser levada à cena no Teatro Bolshoi, em Moscovo.
O Concerto para piano n.º 1 é uma obra de admirável maturidade e a sua estreia dá testemunho da determinação do jovem compositor: Vasily Safonov, então director do Conservatório, era quem costumava dirigir as obras dos alunos e impunha-lhes a sua vontade com brutalidade, alterando as partituras e fazendo cortes como entendia conveniente. Porém, com o Concerto n.º 1 de Rachmaninov foi diferente: o compositor rejeitou as alterações de Safonov e ainda apontou falhas à sua direcção.
[Início do I andamento (Vivace), do Concerto para piano n.º 1, pelo próprio compositor, com a Philadelphia Orchestra dirigida por Eugene Ormandy, 1939-41. Em 1920 Rachmaninov assinou contrato com a editora RCA Victor e gravou numerosos discos até 1942, com obras suas e de outros compositores]
Foi também em 1892 que estreou, num concerto na Exposição Eléctrica de Moscovo, o Prelúdio em dó sustenido menor op.3 n.º 2, que viria a tornar-se numa das suas peças mais famosas.
[Prelúdio em dó sustenido menor op.3 n.º 2, pelo próprio compositor, num registo feito num piano de rolos e reproduzido em tempos mais recentes]
1893 manteve o ímpeto do ano anterior: compôs para piano, publicou uma colecção de canções, supervisionou a apresentação de Aleko em Kiev, lançou-se na composição do Trio elegíaco n.º 2 ao saber da morte de Tchaikovsky, ocorrida a 6 de Novembro. Rachmaninov tinha Tchaikovsky em grande apreço: “Ele escutou-me a mim, um jovem principiante, como se eu fosse um seu igual”. Além disso, Tchaikovsky usara a sua influência para que Aleko estreasse no Bolshoi e propôs a Rachmaninov que Aleko partilhasse o programa com uma das suas óperas. O Trio elegíaco n.º 2 reflecte bem o pesar que a morte de Tchaikovsky causou em Rachmaninov.
[I andamento do Trio elegíaco n.º 2, por Nikolay Lugansky (piano), Julian Rachlin (violino) e Misha Maisky (violoncelo)]
A produção manteve-se em bom ritmo: em 1894 estreou o poema sinfónico “O rochedo” e foram publicadas uma colecção de canções e duas colecções de peças para piano (“Sept Morceaux de Salon” e “Six Morceaux”).
Bloqueio
A 15 de Março de 1897, a promissora carreira do jovem compositor (tinha então 24 anos, é bom lembrá-lo) teve um sério contratempo: a Sinfonia n.º 1, em que Rachmaninov trabalhara arduamente ao longo de boa parte do ano de 1895, teve uma recepção demolidora. Cesar Cui, membro do Grupo dos Cinco, o baluarte da defesa da música nacional russa, escreveu num jornal de São Petersburgo que “se houvesse um conservatório no Inferno e se um dos seus alunos empreendesse a composição de uma sinfonia baseada na história das Sete Pragas do Egipto, se tivesse produzido algo semelhante [à Sinfonia n.º 1] de Rachmaninov, teria levado a cabo brilhantemente o seu desígnio e teria deleitado os habitantes do Inferno”.
Hoje, a crítica de música clássica é uma faceta insignificante do turbilhão mediático (suscita menos interesse público do que a crítica de cevicherias ou de cervejas artesanais blonde ale fabricadas na Noruega), mas em 1897 tinha peso e Rachmaninov entrou em depressão e ficou incapaz de compor durante três anos, durante os quais subsistiu dando aulas de piano e aceitando um cargo de maestro-assistente na companhia de ópera privada montada pelo capitão de indústria Savva Mamontov. A Sinfonia n.º 1 não voltou a ser tocada enquanto foi vivo, pois a partitura perdeu-se e a segunda apresentação, possível graças a uma remontagem das partes instrumentais individuais, só ocorreu a 17 de Outubro de 1945, em Moscovo.
O mais absurdo é que o fiasco da estreia talvez pouco tivesse a ver com o compositor: a sinfonia fora ensaiada de forma atabalhoada e ineptamente dirigida por Aleksandr Glazunov.
[I andamento (Grave – Allegro ma non troppo) da Sinfonia n.º 1, pela Concertgebouw Orchestra, dirigida por Vladimir Ashkenazy]
Florescimento
O bloqueio criativo de Rachmaninov só se desfez quando, em Janeiro de 1900, foi consultar o médico Nikolai Dahl, músico amador (tocava viola) e antigo discípulo de Charcot em Paris, cujas técnicas hipnoterapêuticas pôs em prática na Rússia.
Dahl, que tinha curado uma tia de Rachmaninov de uma maleita psicossomática, restaurou a confiança do compositor em si mesmo e, pouco depois, este começou a trabalhar no seu Concerto para piano n.º 2, que dedicou ao seu terapeuta. A obra estreou a 27 de Outubro de 1901 em Moscovo e foi bem recebida, tornando-se numa das mais populares obras do compositor. O concerto foi requisitado para a banda sonora de numerosos filmes, dos quais os mais famosos são “Brief encounter” (1945), de David Lean, e “O pecado mora ao lado” (“The seven year itch”, 1945), de Billy Wilder, embora neste último caso a música seja usada de forma irónica, como símbolo do ideal pequeno-burguês de sublime e de arrebatamento romântico. A inserção do Concerto para piano n.º 2 no filme de Wilder é um magistral momento de cinema, mas acaba por reflectir a imagem de Rachmaninov que se foi impondo ao longo do século XX junto de um público mais sintonizado com as vanguardas musicais: a de um romântico serôdio, cultivando uma música sentimental, afectada e kitsch.
[Tom Ewell e Marilyn Monroe em “O pecado mora ao lado”]
Em 1902, Rachmaninov conseguiu finalmente casar-se com a pianista Natalia Satina, uma aspiração que alimentava já há alguns anos, mas que se defrontava com a oposição dos pais da nova e da Igreja Ortodoxa, uma vez que Satina era sua prima-direita. Com a atmosfera desanuviada no plano sentimental e criativo, recuperou o ritmo usual de composição: em 1906 estreou um programa duplo no Bolshoi, com as óperas “O cavaleiro avarento e Francesca da Rimini, e em 1908 superou de vez o trauma da Sinfonia n.º 1, ao estrear com sucesso a n.º2, que lhe valeu o aplauso geral e o Prémio Glinka.
Em 1909 compôs o poema sinfónico “A ilha dos mortos”, inspirado no quadro homónimo de Arnold Böcklin – Rachmaninov conhecia o quadro a partir de uma reprodução a preto e branco e confessar-se-ia desiludido quando, mais tarde, viu a sua versão colorida
É possível que a versão a preto e branco fosse mais de encontro à natureza depressiva do compositor, mas o seu poema sinfónico, embora seja de tonalidade sombria do primeiro ao derradeiro compasso, não deixa de exibir uma paleta cromática admirável. A combinação de atmosfera inquietante, ondulação lenta e hipnótica e dramatismo atormentado fazem dela uma das mais inspiradas criações de Rachmaninov, digna de ombrear com os monumentos do Romantismo tardio.
[A ilha dos mortos, pela Orquestra Nacional Russa, dirigida por Mikhail Pletnev, ao vivo na Salle Pleyel, Paris, 2012]
Em 1909-10, Rachmaninov andou em tournée pelos EUA, tendo estreado em Nova Iorque, a 28 de Novembro de 1909, o Concerto para piano n.º 3. A segunda apresentação, algumas semanas depois, foi realizada sob a batuta de Gustav Mahler, que Rachmaninov considerava ser o maior maestro do seu tempo, juntamente com Arthur Nikisch. O concerto, de extraordinária dificuldade técnica para o solista, conquistou popularidade apenas ligeiramente inferior à do seu antecessor.
[III andamento (Finale: Alla breve) do Concerto para piano n.º 3, por Yuja Wang e Orquestra do Festival de Verbier, com direcção de Yuri Temirkanov]
Rachmaninov viu ser-lhe oferecido o posto de maestro da Orquestra Sinfónica de Boston, mas recusou porque as saudades da Rússia não lho permitiam – porém, nem tudo corria bem na sua amada Rússia, onde a agitação social era crescente, pelo que, mesmo quando não estava em tournée, Rachmaninov fazia longas viagens de férias, com a família, pela Europa ou fixava-se mesmo no estrangeiro durante semanas ou meses para compor.
Em 1910 estreou a Liturgia de S. João Crisóstomo, enraizada na tradição coral ortodoxa russa, seguindo-se em 1915, as Vésperas (conhecidas como All-night vigil no mundo anglófono), outra das suas grandes obras sacras.
[III antífona da Liturgia de S. João Crisóstomo, pelo Coro de Câmara de São Petersburgo, com direcção de Nikolay Korniev]
Entretanto, em 1913, já tinha estreado outra notável obra coral, “Os sinos”, uma sinfonia sobre texto de Edgar Allan Poe (livremente vertido para russo), cujas quatro partes correspondem a quatro fases da vida, assinalados por diferentes toques de sinos: baptismo, casamento, desventuras (simbolizadas pelo sino que toca a rebate alertando para uma calamidade) e morte. O compositor considerava “Os sinos” uma das suas melhores obras e o apreço é justificado: é uma obra de tremendo dramatismo, quer na variante tumultuosa (III andamento), quer na modalidade crepuscular e soturna (IV andamento).
Em 1916, foram publicados os “9 Études-Tableaux op.39”, coroando uma notável série de obras para piano solo, quase sempre de natureza virtuosística e feitas por medida para a sua técnica prodigiosa e para as suas mãos invulgarmente grandes – entre elas destacam-se os “13 Prelúdios op.32” (1910) e os “8 Études-Tableaux op.33”.
A ensombrar este período profícuo há a assinalar, em 1915, os falecimentos do pai e de dois amigos: Sergei Taneyev, seu antigo professor no Conservatório de Moscovo (não confundir com o primo Aleksandr Taneyev) e o seu ex-colega de estudos Aleksandr Scriabin. Embora este último tivesse divergido para um universo estético completamente alheio ao seu (e ao de qualquer outro compositor), Rachmaninov fez uma tournée com a sua música para angariar fundo para a viúva.
E depois veio a Revolução de 1917.
Emigração
Uma das primeiras medidas dos bolcheviques foi o confisco ou a venda compulsiva das grandes propriedades dos aristocratas e as da família Rachmaninov não escaparam. Rachmaninov estava de férias na Crimeia quando se deu a Revolução de Outubro e aproveitou um convite para uma tournée pela Escandinávia para obter um visto para si e para a família e pôr-se ao fresco (literalmente, pois parte da viagem, através do norte da Rússia e da Finlândia, foi realizada num trenó aberto, em Dezembro). Não voltaria a pisar solo russo.
A 1 de Novembro de 1918, Rachmaninov zarpou de Oslo rumo a Nova Iorque, pois afigurava-se-lhe que a carreira mais generosamente remunerada que poderia seguir seria a de concertista – o que o levou a rejeitar nova oferta para direcção da Orquestra Sinfónica de Boston e também da Sinfónica de Cincinatti. Com efeito, as tournées como pianista permitiram-lhe assegurar uma vida desafogada à família e até recriar parcialmente uma “Little Russia” em Nova Iorque (e nos outros locais em que viveu nos anos como emigrado), com empregados russos, costumes russos e convidados russos.
Em 1930, exprimia-se assim numa entrevista: “Todo o mundo está aberto para mim e o sucesso aguarda-me onde quer que vá. Só um lugar me é vedado e é o meu próprio país”. Fechar-se-ia um pouco mais no ano seguinte, quando, numa carta ao New York Times, afirmou que “em nenhum outro tempo ou país existiu jamais um governo responsável por tantas crueldades, massacres e desmandos como os que têm sido perpetrados pelos bolcheviques”, o que fez com que o estudo e execução das suas obras fossem proibidos na URSS.
Mas algo mais se fechara, pois nos primeiros oito anos como emigrado, passados entre a Europa e os EUA, Rachmaninov só compôs meia dúzia de irrisórias e breves paráfrases para piano de trechos de Schubert, Kreisler e Mussorgsky (e do hino americano The star spangled banner…).
Só em 1926 surgiu o Concerto para piano n.º 4, que embora sendo escorreito não tem a vitalidade e exuberância dos n.º 3 e 4. A sua produção nos 26 anos de exílio poucas obras relevantes teria: as “Variações Sobre um Tema de Corelli” (1931), para piano solo, a “Rapsódia sobre um Tema de Paganini” (1934), para piano e orquestra, a Sinfonia n.º 3 (1936) e as “Danças Sinfónicas” (1940).
[I andamento (Allegro vivace), do Concerto para piano n.º 4, por Vladimir Ashkenazy e Orquestra Sinfónica de Londres, com direcção de André Previn]
O afastamento da terra natal não basta para explicar este definhar da criatividade de Rachmaninov. Apesar do sucesso junto do público, havia também um afastamento crescente entre Rachmaninov e a crítica e os seus colegas. O eminente crítico russo Vyacheslav Karatygin (1875-1925), um entusiasta das novas correntes do início do século XX, explicava: “o público idolatra Rachmaninov porque ele sabe acertar em cheio no gosto musical médio do filisteu”. Os críticos mais vanguardistas tinham de Rachmaninov uma opinião afim da que seria expressa no artigo sobre o compositor publicado na edição de 1954 do Grove’s dictionary of music and musicians: “Como pianista, Rachmaninov foi um dos grandes artistas do seu tempo; como compositor nem sequer se pode dizer que tenha feito parte do seu tempo e representou o seu país apenas no sentido em que compositores escorreitos mas convencionais, como Glazunov ou Arensky, o fizeram”.
[Excerto da Sinfonia n.º 3, pela Filarmónica de Berlim, com direcção de Riccardo Chailly, ao vivo na Berlin Philharmonie, 2014]
A linguagem musical sofrera uma profunda renovação na viragem dos séculos XIX-XX, pela mão do seu amigo Scriabin e de Mahler, Debussy e Ravel; depois vieram as mudanças ainda mais radicais com a rejeição da tonalidade e a introdução da dodecafonia e do serialismo, pela Segunda Escola de Viena (Schoenberg e os seus discípulos Berg e Webern), a que se somaram influências do dadaísmo (Satie), do jazz e do expressionismo. Porém, Rachmaninov continuava a compor num estilo não muito distante do que fora usado por Tchaikovsky. O compositor tinha consciência do desfasamento: “Sinto-me como um fantasma que vagueia por um mundo que se me tornou estranho. Não posso continuar a compor nos velhos moldes, mas não sou capaz de dominar os novos. A música nova soa-me como se saísse da cabeça, não do coração. Os seus compositores pensam, em vez de sentir”.
Em 1939, com uma nova guerra a ameaçar a Europa, o compositor instalou-se definitivamente nos EUA e em 1943 tornou-se cidadão americano; um ano antes, a conselho do médico, que lhe recomendara um clima mais seco e quente, tinha trocado Nova Iorque por Beverly Hills. Foi aqui que faleceu a 28 de Março de 1943, com 70 anos.
[Excerto das Danças Sinfónicas, a última obra de Rachmaninov, pela Filarmónica de Berlim, com direcção de Simon Rattle, ao vivo na Berlin Philharmonie, 2010]
Rachmaninov por Lugansky e Previn
O verbete sobre Rachmaninov na edição de 1954 do Grove’s dictionary of music and musicians além de exprimir um duro e injusto julgamento (que seria corrigido nas edições seguintes) fazia também um vaticínio: “Não parece provável que o enorme sucesso popular de que algumas das obras de Rachmaninov gozaram quando ele estava vivo vá durar e os músicos nunca as tiveram em grande apreço”.
63 anos depois, não só Rachmaninov continua a gozar do favor do público, como sucessivas gerações de grandes intérpretes têm vindo a demonstrar o seu apreço pela música do compositor russo. Disso nos dá testemunho esta caixa editada pela Warner Classics que faz, em oito CDs, uma perspectiva da sua obra, por um preço equivalente ao de um único CD.
Os Concertos para piano e a “Rapsódia Sobre um Tema de Paganini” têm como solista o russo Nikolay Lugansky, acompanhado pela City of Birmingham Symphony Orchestra e pelo maestro finlandês Sakari Oramo, em gravações de 2002-2005. Apesar da ferocíssima concorrência, é uma das melhores versões destas obras, com Lugansky a mostrar-se detentor de toda a técnica e verve necessárias a partituras tão exuberantemente virtuosísticas, mas sem nunca incorrer no espalhafato ou no sentimentalismo que maculam algumas leituras de Rachmaninov. A City of Birmingham Symphony Orchestra corresponde com todo o brilho, colorido e vitalidade necessários e o registo é sonicamente perfeito: nítido, espaçoso, pujante e com um justo equilíbrio entre solista e a orquestra.
[Nikolay Lugansky apresenta e comenta o Concerto para piano n.º 3]
Nikolay Lugansky está também de serviço às obras para piano solo – “Variações Sobre um Tema de Corelli” (1931), “Variações Sobre um Tema de Chopin” (1903), “Prelúdios op. 23” (1903), “Momentos musicais op. 16” (1896) e o famoso “Prelúdio em dó sustenido menor op.3 n.º 2” (1892) – e confirma as qualidades exibidas nos concertos (Lugansky é um persuasivo advogado do seu compatriota e gravou também os Études-Tableaux, para a Challenge, e as Sonatas, para a Ambroisie). A qualidade de som dos registos de 2000-2004 é irrepreensível.
[Prelúdio op.23 n.º 5, uma das mais populares peças para piano solo de Rachmaninov, por Nikolay Lugansky, ao vivo em La Roque d’Anthéron, França, 2002]
As peças para piano desmentem a ideia de Rachmaninov como um sentimentalão açucarado ou como um tecnicista frio e ruidoso – nem a ondulação serena e elegíaca do Prelúdio op. 23 n.º 4 revela sinais de sentimentalismo nem a ondulação via e impetuosa do Momento Musical op. 16 n.º 4 é mera exibição de virtuosismo.
[Momento Musical op. 16 n.º 4, por Nikolay Lugansky, ao vivo em La Roque d’Anthéron, França, 2002]
É ainda Nikolay Lugansky que toca, em parceria com Aleksandr Kniazev, num registo de 2006, a Sonata para violoncelo e piano op. 19 (1901), cujo Andante flutua fora do tempo e do espaço e vai ganhando densidade e arrebatamento lentamente.
[III andamento (Andante) da Sonata para violoncelo e piano, por Yo-Yo Ma (violoncelo) e Emanuel Ax (piano), ao vivo no Suntory Hall, Tóquio, 1989]
As sinfonias n.º 1 a 3, a sinfonia coral Os sinos, o poema sinfónico “A ilha dos mortos” e as “Danças sinfónicas” estão a cargo da Orquestra Sinfónica de Londres e do maestro André Previn, em gravações de 1973-75. A interpretação de Previn costuma ser colocada ano topo das preferências, a par da de Vladimir Ashkenazy para a Decca, e o som é de um riqueza e detalhe impressionantes (mesmo para os padrões de hoje, quanto mais para uma gravação com mais de 40 anos).
O célebre Adagio da Sinfonia n.º 2 costuma ser usado como exemplo do sentimentalismo açucarado de Rachmaninov, mas tal acusação seria mais bem dirigida aos compositores de segunda linha que o tomaram como modelo para confeccionar bandas sonoras para centenas de filmes românticos. Há porém que reconhecer que a produção orquestral de Rachmaninov nem sempre tem a vitalidade dos concertos e exibe, pontualmente, adiposidades que estão ausentes da música de câmara e da música para piano solo.
[III andamento (Adagio) da Sinfonia n.º 2, pela Orquestra Sinfónica de Londres e André Previn]
A sinfonia coral Os sinos, é tocada pelo Coro & Orquestra Sinfónica de Londres e André Previn, num registo de 1975 com Sheila Armstrong, Robert Tear e John Shirley-Quirk como solistas.
[Excerto de Os sinos, por André Previn e a mesma equipa que gravou o disco em 1975, num concerto ao vivo no Royal Albert Hall, alguns meses antes]
A caixa da Warner, estando limitada a oito CDs, deixa de fora dois aspectos relevantes da produção musical de Rachmaninov: as obras para piano a quatro mãos e as canções para voz e piano – embora a segunda lacuna tenha remédio fácil e barato, pois a Brilliant Classics reeditou a preço super-económico os 3 CDs gravados nos anos 90 para a Chandos por Joan Rodgers, Maria Popescu, Aleksandr Naoumenko e Sergei Leiferkus, acompanhados ao piano por Howard Shelley (um especialista em Rachmaninov).
De resto, a caixa oferece uma selecção de obras essenciais de Rachmaninov, em interpretações de primeira escolha, por um preço irrisório, e permite confirmar que, ao contrário do que em tempos se tentou fazer crer, o compositor não era nem um fabricante de amenidades de salão nem um mero atleta do teclado.