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“Tinha um olhar…” – O meu interlocutor é um homem do mundo dos touros. Tem a arrogância melancólica daqueles que sabem que as suas referências, os seus heróis e a sua gente, pouco ou nada têm a ver com o presente. Manifesta uma enorme admiração por Manuel dos Santos e um indisfarçável incómodo quando lhe pergunto se se lembra do tempo em que Manuel dos Santos se fazia acompanhar pela mulher de Stanley Ho, Clementina Ângela Ho. Ou, melhor dizendo, a Tininha, como era tratada por muitos dos portugueses que a conheceram.
Como todos as pessoas do universo do toureio, onde a capacidade de avaliar o outro dita o triunfo ou o fim, é cauteloso nas palavras. Procura confirmar que não me dá nenhuma informação que eu não possua já. Afinal o mundo dos touros é pequeno – toda a gente se conhece – e Manuel dos Santos continua um símbolo desse tempo em que os toureiros eram ídolos das praças, do cinema e dos corações.
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Um jovem pobre que deseja ser toureiro. Um tio que lhe tenta arranjar trabalho. Um proprietário local que o apoia no seu sonho. Qualquer semelhança entre Manuel da Cruz, o herói de Sol e Toiros, e Manuel dos Santos, o jovem aprendiz de barbeiro na Golegã protegido por Patrício Cecílio, não é coincidência. Em Sol e Toiros há até quem faça de si mesmo como é o caso de Amália
https://www.youtube.com/watch?v=GtmapVW3Gjs
Lembro-lhe que Manuel dos Santos, ao comparecer em alguns actos com Clementina Ângela, não escondeu propriamente essa relação, da qual se pode dizer que era discreta mas não secreta. Aliás, como perceberei ao longo da nossa conversa, entre aqueles de quem não a escondeu contava-se precisamente o meu interlocutor, que os recebeu na sua herdade. Quando estamos quase a despedir-nos dir-me-á: “Guardo ainda uma fotografia em que ela está.”
Ouvirei esta frase de mais de uma pessoa ao longo do tempo em que fui escrevendo esta história. Também ouvirei algumas vezes “Se disser que lhe disse isto eu nego.” E sobretudo ouvirei recorrentemente aquele “Ah!… A Tininha?!” acompanhado por um semicerrar dos olhos como se aqueles que a conheceram quisessem guardar para sempre esse momento em que todos eram jovens e a viram numa tenta com Manuel dos Santos ou em Macau ao lado de Stanley.
A primeira vez que ouvi uma referência à relação entre Manuel dos Santos e a mulher de Stanley Ho foi em Macau, no ano de 1990. A memória dos incidentes de Tiananmen era muito recente, o caso do fax de Macau estava no auge. Eu tinha ido ao então território sob administração portuguesa por acaso: na redacção onde trabalhava por essa época a pessoa convidada para ir ao Festival de Música de Macau não pôde fazer a viagem e eu fui em seu lugar.
Na verdade não havia cantora lírica nem orquestra com centenas de violinos – uma particular e para mim intrigante paixão chinesa – susceptível de me prender a atenção no meio de tanta coisa que por ali acontecia. E foi no meio de tudo o que se dizia e ouvia e das recorrentes conversas sobre o jogo e as superstições que lhe estão associadas por todo o lado naquele território, que um dos meus interlocutores me perguntou: “Sabe que a mulher do Stanley foi amante do Manuel dos Santos?” Não, não sabia. E na verdade também não era isso que eu queria saber naquele momento. Estava muito mais interessada em perceber quem eram, onde se alojavam e que vida levavam as jovens vestidas de branco que, num estabelecimento que parecia construído com as sobras dos cenários do Apocalypse Now, se arrumavam atrás de uma parede de plástico transparente – o aquário – e esperavam que das mesas alguém chamasse pelo número que cada uma delas ostentava na lapela.
Ao contrário do que se podia pensar perante a omnipresença do seu dinheiro em tudo o que era casino, hotel ou simples evento em Macau, Stanley longe de se comportar como o despeitado marido traído, jamais se divorciara ou usara o seu poder para manifestar desagrado com essa história que certamente não ignorava. Antes pelo contrário
Desengane-se quem pensar que fora apenas um ímpeto de bisbilhotice que trouxera aquela história à conversa. É certo que em Macau, como em todos os territórios onde faltam quilómetros e sobra História, multiplicam-se os pequenos segredos de todos conhecidos. Mas o que levara a que a ligação entre a mulher de Stanley e o toureiro Manuel dos Santos fosse referida daquela forma, para mim inesperada, fora sobretudo a vontade por parte dos meus parceiros de conversa de ilustrar como em Macau muitas das nossas ocidentais certezas de nada valem. Assim, reiteravam os meus interlocutores, e ao contrário do que se podia pensar perante a omnipresença do seu dinheiro em tudo o que era casino, hotel ou simples evento em Macau, Stanley longe de se comportar como o despeitado marido traído, jamais se divorciara ou usara o seu poder para manifestar desagrado com essa história que certamente não ignorava. Antes pelo contrário, acrescentavam, zelara pela saúde da mulher que nunca se recompusera do grave de acidente de automóvel que sofrera em Portugal. O mesmo acidente em que, garantiam, Manuel dos Santos perdera a vida.
O cuidado que Stanley sempre demonstrara por Clementina Ângela e o facto de nunca se ter deixado influenciar pelo que, com fundamento ou sem ele, se dizia da relação que a sua mulher estabelecera com o toureiro português assentaria em algo que pouco sentido faz aos olhos de um ocidental mas que em Macau explica muita coisa: a superstição. Naquela que catolicamente foi chamada Cidade Do Santo Nome De Deus De Macau a comunidade chinesa ia com igual empenho baptizar os filhos na Igreja de São Lázaro e consultar o astrólogo para saber da sorte e do azar. Clementina, casada catolicamente com Stanley, seria a mulher que um astrólogo garantira ao empresário que lhe dava sorte nos negócios.
Rapidamente esqueci a história e nem sequer fiz a mais elementar das perguntas: como fora possível criar-se uma tal proximidade entre uma mulher cujo nome nem sequer fixei, e cuja vida se dividia (pensava eu!) entre Macau e Hong Kong, e um toureiro cujo mundo se repartia pelas praças de Espanha, Portugal e México?
A resposta comecei a procurá-la quando a história veio novamente ter comigo. Desta vez na sala de leitura de microfilmes da Biblioteca Nacional de Lisboa: passava-me diante dos olhos o Diário de Notícias de Abril de 1968 quando, na edição do dia 7, uma pequena fotografia quase sem nitidez me fez parar a máquina. Nela via-se um homem a tourear com uma mulher. O toureiro era Manuel dos Santos. A mulher era definida como “uma jovem aficionada chinesa”. Lendo a notícia constatei que “a jovem aficionada chinesa” se chamava miss Ho. E constatei também que ia escrever esta história. Só não sabia que ia fazê-la e refazê-la várias vezes até conseguir montar o puzzle a que, apesar de tudo, ainda faltam várias peças.
A 6 de Abril de 1968 Manuel dos Santos apresentou na praça de Alcochete a temporada taurina desse ano que iria começar, como era habitual, no domingo de Páscoa, na Praça do Campo Pequeno de que Manuel dos Santos era empresário. Na tenta de vacas oferecida nesse dia aos convidados Manuel dos Santos desce à arena e aos repórteres presentes não escapa o momento em que toureia com uma mulher. Os jornais identificam-na como “jovem aficionada chinesa, “universitária macaísta” ou “jovem chinesa miss Ho”. Sendo notória a dificuldade dos ocidentais em determinar a idade dos asiáticos será que esta “jovem chinesa miss Ho” poderia ser a mulher de Stanley?
Manuel dos Santos, “Que a vida te dê encantos/ Que Deus te dê muita sorte”
Como em qualquer puzzle peguei em primeiro lugar na peça que me era mais familiar: Manuel dos Santos. E de que me lembrava eu de Manuel dos Santos? De ouvir dizer que matara um touro no Campo Pequeno, de escutar o pasodoble Manuel dos Santos e das notícias sobre o seu funeral. Foi por essas notícias, as do funeral, que resolvi começar. Afinal o funeral de um homem é uma espécie de filme sobre a sua vida.
A consternação pela morte de Manuel dos Santos é ainda maior porque nas horas seguintes ao acidente muitos se terão convencido que o toureiro ia sobreviver, chegando a dizer-se que estava livre de perigo. À medida que o cortejo fúnebre deixa Lisboa e chega ao Ribatejo a presença do povo torna-se marcante. Há quem grite “Ele era povo. Ele era nós” recordando o tempo em que Manuel dos Santos fora marçano, aprendiz de barbeiro e estudante de contabilidade. No cemitério da Golegã Manuel dos Santos foi enterrado ao lado do avô, também ele Manuel dos Santos, um modesto toureiro que ficara conhecido como Passarito.
É difícil explicar hoje a comoção que se abateu sobre parte do país quando, a 18 de Fevereiro de 1973, se soube que Manuel dos Santos morrera na sequência de um acidente de automóvel sofrido na véspera. Essa estranheza ainda se acentua mais quando se constata que se retirara oficialmente das arenas vinte anos antes. Manuel dos Santos teve uma carreira breve e fulgurante que o levou de bandarilheiro em 1944 ao estatuto de matador de touros mais solicitado em todo o mundo em 1950, ano em que lhe é atribuída a Rosa Guadalupana, um dos mais importantes troféus para qualquer toureiro independentemente da sua nacionalidade.
Toureou 1500 touros. 315 vezes teve o triunfo da volta ao redondel e foram mais de 60 as saídas em ombros. Criou um passe que realçava a sua elegância a tourear: a dossantinas. Manuel dos Santos não foi apenas um bom toureiro em Portugal. No México torna-se imensamente popular: a 29 de Janeiro de 1950 conquista a Rosa de Ouro de Guadalupe e em Espanha é o primeiro português a dar uma alternativa. Aliás a Espanha, ao contrário de Portugal que só o condecorou a título póstumo, atribuiu-lhe em vida o título de Cavaleiro da Ordem de Isabel, a Católica.
Algumas colhidas graves e problemas com os joelhos obrigam-no a várias operações e forçam a sua retirada precoce das arenas. A 18 de Outubro de 1953, Patrício Cecílio, o proprietário de terras e homem do mundo dos touros que fora determinante no início da sua carreira corta-lhe a coleta (uma espécie de trança que os toureiros a pé colocam quando se vestem de “traje de luces”).
Nas histórias que à época corriam sobre Manuel dos Santos repetia-se com aquela certeza que rodeia tudo o que não pode ser confirmado ser Patrício Cecílio seu pai. Mesmo que os factos nunca tivessem confirmado tal versão, no instante em que Patrício Cecílio faz o gesto do corte da coleta a Manuel dos Santos – corte que simboliza o fim da carreira de um matador de touros – a emoção toma conta do Campo Pequeno. O que então sucedeu nessa praça só tem paralelo com aquela tarde de Junho de 1951 em que, depois de uma faena excepcional, Manuel dos Santos matou o touro. Nesse momento, perante o entusiasmo do público, a PSP opta por deixar seguir a corrida e só no fim leva Manuel dos Santos para o Governo Civil, onde passa a noite preso para no dia seguinte ser posto em liberdade mediante a pesada caução de 30 mil escudos.
Agora, neste dia 18 de Outubro de 1953, Manuel dos Santos não tem a polícia à sua espera, mas as centenas de admiradores, esses, continuavam lá. No fim quase o despem para cada um deles ficar com uma recordação do seu traje de luces dessa noite. Levam-no em ombros até Santa Justa, onde Manuel dos Santos estava instalado, no “Hotel Francforte”, e donde partiram depois todos para uma noite abrilhantada pelas bailarinas do Maxime e pelos fadistas da Adega Mesquita. Acrescentar que nessa noite se cantaram os versos do Fado Manuel dos Santos é certamente desnecessário:
Manuel dos Santos,
Espada cravada de loiros
Tu és o maior dentre tantos
bravos matadores de toiros
Manuel dos Santos
matador de pulso forte
Que a vida te dê encantos
Que Deus te dê muita sorte
É com Manuel dos Santos enquanto empresário taurino que as corridas começam a ser transmitidas pela televisão, uma novidade que chocou alguma afición
O facto de Manuel dos Santos se ter retirado não quer dizer que deixasse de tourear. Fazia-o com frequência, nomeadamente em eventos de beneficência, como então se dizia: das vítimas das cheias de 1967 aos bombeiros todos contavam com a sua presença. Simultaneamente torna-se empresário taurino – cria a sua própria ganadaria e ganha a concessão da praça de touros do Campo Pequeno – e nesse papel acentua a sua relação privilegiada com a imprensa. Faz apresentações especiais de cada época tauromáquica e chama os jornalistas ao Campo Pequeno para verem as obras que ali têm lugar.
Não menos importante, é com Manuel dos Santos enquanto empresário taurino que as corridas começam a ser transmitidas pela televisão. Esta foi uma novidade que chocou alguma afición porque dados os horários televisivos as corridas tinham lugar à noite e não às cinco da tarde. Mas apesar destas resistências, a transformação das touradas em espectáculo também de televisão contribuiu muito para o aumento da popularidade da tauromaquia e da notoriedade de Manuel dos Santos.
Aliás, a 20 de Fevereiro, dia do seu funeral, a RTP altera a sua programação, o que na época só acontecia em situações muito excepcionais, para transmitir uma entrevista ainda inédita com Manuel dos Santos realizada horas antes de este ter sofrido o acidente em que perdeu a vida.
Manuel dos Santos é um dos grandes nomes do toureio a cair perante o que alguns designam como touro da estrada e que em muitos casos foi bem mais traiçoeiro que o das arenas: o mexicano Carlos Arruza em 1966 (e com quem Manuel dos Santos toureara mano-a-mano no México em 1951) e o venezuelano César Girón em 1971 são outros dos matadores que perderam a vida em acidentes de automóvel.
Percebe-se assim que pela Igreja de São João de Deus, em Lisboa, onde o seu corpo foi velado, passassem jornalistas, membros do Governos, gente dos touros e milhares de cidadãos anónimos, muitos dos quais provavelmente nunca tinham entrado numa praça de touros mas que conheciam o nome e o rosto de Manuel dos Santos. As ruas limítrofes da igreja enchem-se com uma multidão que pretende participar na missa de corpo presente e vê-lo pela última vez. O cortejo demora horas a fazer a viagem entre a Igreja de São João de Deus, em Lisboa, e a Golegã.
Ao longo da estrada há quem espere horas para dizer adeus pela última vez ao homem que se habituaram a ver sair em ombros das praças de touros e que agora é levado dentro de um carro funerário. Dentro deste seguem Patrício Cecílio e a sua mulher, Leonarda Núncio Cecílio. Irmã do cavaleiro João Núncio, Leonarda perdera há menos de dois anos o seu único filho, o que mais acentuara o carinho que votava a Manuel dos Santos. Outras duas pessoas fazem essa viagem ao lado da urna. São elas Manuel Jorge, filho de Manuel dos Santos e a mulher Glória Elena Diez dos Santos.
Gloria Elena casou-se com Manuel dos Santos em 1954. Conheceram-se numa feira de Sevilha. O seu pai, um emigrante espanhol que enriquecera no México, fazia questão que os filhos viajassem não só no continente americano, onde já tinham estado no grande vizinho do norte, os EUA, mas também para a Europa. Conhecer o país donde provinha a família levou Gloria Elena a Sevilha em tempo de feira que é o mesmo que dizer de touradas e de toureiros. Por Manuel dos Santos, Gloria Elena deixou para trás o México e veio viver para a Golegã, uma terra onde nesse distante ano de 1954 se esperava das mulheres uma atitude bem mais reservada que aquela que conhecera enquanto filha de uma abastada família do estado de Morélia no seu México natal. Gloria Elena e Manuel dos Santos tiveram um único filho, Manuel Jorge Diez dos Santos. Entre 17 e 20 de Fevereiro de 1973, Manuel Jorge até então um aluno igual a tantos outros do Colégio de S. João de Brito sobrevive ao acidente em que o pai perde a vida.
A jovem mexicana com quem Manuel dos Santos casara em 1954 é agora uma viúva que por pouco não chora também nesse dia a perda do filho: Manuel Jorge, então com 16 anos, seguia no carro com o pai quando, próximo de Vendas Novas, para evitar bater noutro veículo parado na berma, o condutor sai da faixa e colide com um camião que vinha em sentido contrário. Dos cinco ocupantes do carro, Manuel Jorge foi de facto o que sofreu menos sequelas: Manolo Escudero, tem morte quase imediata; Manuel dos Santos ainda sobrevive algumas horas ao acidente. O condutor e um campino que os acompanhava (o motivo da viagem estaria relacionado com algum gado que estava numa herdade na zona de Vendas Novas) são internados. Francisco Ribeiro Dias, assim se chamava o jovem de 23 anos que os jornais definem como campino maioral acabará também por morrer.
E é aqui que a primeira das minhas peças não encaixa no puzzle: não há qualquer referência à presença de uma mulher no carro sinistrado. Contra tudo aquilo que me tinham dito em Macau, Clementina Ângela não estava ao lado de Manuel dos Santos naquele fatídico dia 17 de Fevereiro de 1973.
“Ela não estava no carro. Garanto.” Perante esta espécie de enigma só me restava pegar na outra peça do puzzle: Clementina Ângela.
Mesmo com censura, e não menosprezando que a simpatia de que Manuel dos Santos gozava nos meios jornalísticos poderia levar a que não se desse publicidade à presença de Clementina Ângela no carro, a verdade é que havia vários factores a ter em conta: no meio de tanta notícia sobre o acidente alguma haveria de referir a presença de uma mulher que, fazendo fé no que me diziam, teria ficado gravemente ferida. Ora essa referência nunca aparecia em nenhum dos jornais e revistas que consultei. E foram muitos! Depois, pelo retrato que pouco a pouco me iam fazendo de Clementina Ângela, eu não a via ali sentada, apertada entre os cinco ocupantes do carro.
Por fim havia que ter em conta que no mundo dos touros, habitualmente cauteloso na hora de falar, as informações que colhia eram neste ponto absolutamente peremptórias: “Ela não estava no carro. Garanto.” Perante esta espécie de enigma só me restava pegar na outra peça do puzzle: Clementina Ângela.
A filha do dr. Leitão
Se Manuel dos Santos, apesar de ter nascido em Lisboa, é claramente um filho do Ribatejo daquela primeira metade do século XX onde as praças de touros, à semelhança do que acontece hoje com os estádios de futebol, representavam no imaginário dos rapazes a mesma possibilidade de se libertar do destino, Clementina não tem uma história menos marcada pela geografia.
Clementina nasceu no ano de 1923, em Macau, numa família cuja estrutura quase só se entende no contexto daquele território. Clementina, ou mais precisamente Clementina Ângela de Melo Leitão, é filha do advogado Carlos Ernesto de Melo Leitão, um bacharel de Direito, natural de Viseu, que chegara a Macau em 1906, e da macaense Maria Teresa Yoeng Pat.
Com Vong Kuai Leng e Chan Son Iau, Maria Teresa Yoeng Pat vai constituir as famílias ou a família macaense de Carlos Ernesto de Melo Leitão, pois não se pode esquecer que Macau deu ao advogado viseense prestígio, consideração e também uma vida pessoal incompatível com a cultura ocidental da esposa Adelaide de quem, em Portugal, tivera dois filhos. Em Macau, serão registadas como filhos daquele que ficara conhecido como “dr. Leitão” mais de vinte crianças nascidas de Vong Kuai Leng, Chan Son Iau e Maria Teresa Yoeng Pat. Às vezes, no mesmo ano, Melo Leitão é pai de crianças nascidas de mães diferentes.
O baptismo de Clementina, a 10 de Janeiro de 1932, é uma cerimónia representativa do mundo que o dr. Leitão construíra em Macau: na Igreja de São Lázaro, o templo mais importante para a comunidade chinesa católica de Macau, o dr. Leitão fazia baptizar conjuntamente os vários filhos que entretanto tivera das suas diferentes mulheres macaenses.
MariaTeresa Yoeng Pat, mãe de Clementina, é a mulher com a qual, a fazermos fé na data de nascimento dos sucessivos filhos de Melo Leitão, se pode dizer que o advogado e notário manteve a mais longa e estável das suas várias relações: em 1914, Maria Teresa Yoeng Pat, então com 18 anos, teve o primeiro filho de Carlos Melo Leitão. A este rapaz, que é oficialmente o primeiro dos seus filhos naturais, Carlos Melo Leitão dá o nome do seu próprio pai: Agostinho. Dezassete anos depois, a 1 de Julho de 1931, Maria Teresa Yoeng Pat dá à luz uma menina que se chamará Maria de Lourdes de Melo Leitão e que seria a última criança a ser registada como filha de Carlos Melo Leitão (Maria Teresa ainda engravidaria mais duas vezes mas as crianças, que não chegaram a ter nome, ou morreram após o parto ou nem sequer nasceram vivas).
Clementina é a décima segunda dessas crianças a quem Melo Leitão dá o seu apelido e a sétima nascida da relação que mantém com Maria Teresa Yoeng Pat. O baptismo de Clementina, a 10 de Janeiro de 1932, é uma cerimónia representativa do mundo que o dr. Leitão construíra em Macau: na Igreja de São Lázaro, o templo mais importante para a comunidade chinesa católica de Macau, o dr. Leitão fazia baptizar conjuntamente os vários filhos que entretanto tivera das suas diferentes mulheres macaenses. Foi assim a 30 de Novembro de 1924 e foi assim a 10 de Janeiro de 1932, data em que Clementina foi baptizada e também registada, pois como o Registo Civil, tornado obrigatório pela I República, só seria implementado em Macau muitos anos mais tarde, o assento de baptismo funcionava também como registo de nascimento.
A 8 de Junho de 1946 Clementina casa em Macau com Stanley Ho. A cerimónia tem carácter civil. Clementina está quase a completar os 23 anos, Stanley ainda não tem 25. Dois anos depois, a 21 de Dezembro de 1948, fazem-no religiosamente na catedral de Hong Kong. Nesse início da década de 40 Clementina é considerada uma das mulheres mais belas de Macau – “the Nº 1 beauty in Macau”, como é descrita pela imprensa de Hong Kong. Stanley ainda não integrava a lista dos homens mais ricos do mundo mas já tinha ganho algo mais que o seu primeiro milhão de dólares. Nada mau para o jovem a quem a invasão japonesa de Hong Kong transformara num refugiado e que na infância se confrontara com uma dramática história de ruína económica de parte da sua família.
Estas imagens retratam Clementina Ângela e Stanley Ho quando jovem casal, segundo a imprensa de Hong Kong. Embora a vida e os investimentos os levem a repartir-se por ambos os territórios – dos quatro filhos que têm em conjunto apenas a mais velha, Jane, nasceu em Macau enquanto os outros vão nascer a Hong Kong – Stanley e Clementina casaram civilmente em Macau e pelo regime geral como consta nas escrituras dos imóveis que compram em Portugal. O que quer dizer que os bens de um eram os bens do outro e que a poligamia não era reconhecida. Argumentos que os filhos de Clementina não deixam de usar na sua luta pela herança paterna.
Depois de um breve período em que trabalha como empregado administrativo na Macau Cooperation, Stanley cria a sua própria empresa. A sua intuição para os negócios, a par da História e da Geografia, juntam-se como motores de uma biografia de sucesso: nos anos 50 Macau transforma-se numa das portas de entrada no território chinês de tudo aquilo que oficialmente o regime comunista não podia transacionar, pois os EUA tinham decidido um embargo à Republica Popular da China na sequência das intervenções chinesas na Coreia e em Taiwan.
Stanley move-se com a mesma agilidade elegante nas pistas de dança – é um dançarino exímio – e nas fronteiras desse mundo que vai da administração portuguesa em Macau à administração britânica em Hong Kong e às autoridades desse gigante que têm por vizinho, a República Popular da China. Mas será nos anos 60 que Stanley consegue o contrato que o transformará de homem muito rico de Macau e Hong Kong num dos mais ricos do mundo. Trata-se do contrato de concessão exclusiva do jogo em Macau.
Desde os anos 30 que esse contrato estava nas mãos da companhia Tai Heng. Em Dezembro de 1961, terminava o contrato da concessão de jogo.
O mundo jogo de Macau é o pano de fundo deste filme de Josef von Sternberg e Nicholas Ray. Macao foi realizado em 1952 numa época em que o jogo no território estava concessionado à companhia Tai Heng e em que a realidade em Macau ultrapassava os mais rebuscados guiões mesmo que eles fossem protagonizados por Jane Russell e Robert Mitchum: em 1945, Fu Tak-iong um dos donos da Tai Heng, foi raptado num templo budista de Macau. Os raptores exigem um resgate de nove milhões de patacas mas acabam a conseguir baixá-lo para 500.000. No momento da entrega do então rei do jogo surge a polícia e a operação aborta. Depois foi como nos filmes: os raptores cortam uma orelha a Fu Tak-iong e voltam a exigir os nove milhões… Nas salas de cinema do ocidente Macao era um exotismo. Em Macau até poderia parecer demasiado simples.
Quando este contrato começa a ser renegociado, a Tai Heng depara-se com um rival: a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM). Stanley Ho é um dos sócios da STDM. A disputa foi dura e não faltam histórias de bastidores sobre essa competição. No fim a STDM ganhou: ofereceu 3,167 milhões de patacas anuais como contrapartida pela concessão do jogo. Os anteriores concessionários terão oferecido um pouco menos: 3,15 milhões. Daí para a frente a história é conhecida: Macau muda radicalmente graças aos investimentos da STDM e Stanley torna-se progressivamente o homem forte da STDM e de Macau, que se transforma graças aos investimentos feitos por Stanley. Este teria garantido à administração portuguesa que investiria em Macau e cumpriu a promessa.
E é aqui que se torna obrigatório voltar a falar de Clementina Ângela, a mulher com quem Stanley casara em Macau, cuja nacionalidade portuguesa e cujo pai notário terão sido essenciais para credibilizar as propostas de Stanley junto das autoridades portuguesas. Não se encontra praticamente um artigo sobre Stanley Ho que não refira a importância de Clementina Ângela na atribuição do monopólio do jogo de Macau a Stanley.
Além das vantagens sociais e administrativas proporcionadas pela integração na comunidade católica macaense, Clementina deu a Stanley quatro filhos: três raparigas, Jane, Ângela e Deborah, e um rapaz, Robert, em que muitos vão ver o herdeiro natural do poder de Stanley. Mas ao mesmo tempo que a fortuna de Stanley aumenta exponencialmente e começa a projectar o seu nome para fora do território, o seu casamento com Clementina Ângela ganhava traços que o remetiam para as imutáveis tradições chinesas: em 1962, nasce Pansy Ho filha de Stanley e de Lucina Laam que adquire o estatuto de segunda esposa em Hong Kong, onde a poligamia teve enquadramento legal até 1971. Nos anos seguintes Lucina terá mais quatro filhos de Stanley.
Stanley tratava de forma distinta Clementina Ângela, sendo ela a mulher que o acompanhava nos actos institucionais
É difícil avaliar em que medida esta segunda família constituída por Stanley chocou a filha de Carlos Ernesto de Melo Leitão e de Maria Teresa Yoeng Pat. Afinal Clementina nascera num agregado cujo chefe, casado e pai de família em Portugal, manteve em simultâneo três famílias em Macau. Muito mais fácil é definir o reconhecimento público que inequivocamente Stanley mostrava por Clementina. Portugueses que tiveram responsabilidades administrativas e políticas no território, a par da imprensa de Macau e Hong Kong, coincidem sempre num ponto: Stanley tratava de forma distinta Clementina Ângela, sendo ela a mulher que o acompanhava nos actos institucionais. Porquê? Porque as autoridades portuguesas só a ela reconheciam como casada com Stanley. Porque para Stanley ela foi sempre a sua esposa. Porque ela lhe dava sorte. Nenhuma destas respostas explica tudo. Mas cada uma delas tem a sua parte de verdade.
Um certo Agosto em Macau
Mas como se conheceram então Manuel dos Santos e Clementina Ângela? Ou como, não podendo eu excluir que se tivessem visto antes, acabaram a criar uma relação de tal proximidade que levou muitos portugueses a concluir (como me disseram naquele dia em Macau): “a mulher do Stanley foi amante do Manuel dos Santos”? Bem, para isso é preciso tirar do baú da memória um outro nome – Alfredo Ovelha –, recuar a um tempo em que as praças de touros estavam espalhadas por vários continentes e em que o mundo, não sendo maior, parecia um infindável espaço de oportunidades para alguém com engenho e imaginação como era notoriamente o caso de Alfredo Ovelha. O que podia parecer improvável à maioria das pessoas não o era para Alfredo Ovelha em cuja vida é difícil distinguir a boémia da aventura e dos negócios.
À partida a ideia de matadores de touros africanos podia parecer estranha a muitos mas não a Alfredo Ovelha. Em 1962, quando acompanha Diamantino Viseu e Manuel dos Santos nas corridas que estes efectuam em Lourenço Marques, acaba a mover influências para que viaje para Lisboa um jovem negro do Bairro da Mafalala chamado Ricardo Chibanga, cujo gosto pelas touradas o levara a fazer pequenos trabalhos na Monumental de Lourenço Marques para poder assistir gratuitamente às corridas.
Ribardo Chibanga já não ajoelha diante dos touros como fez em Macau em 1966. Mas continua a contrariar o destino. Depois de ter sido o primeiro negro a conseguir a alternativa como matador de touros, obstina-se agora em manter viva a corrida. Com uma praça desmontável corre o país. À sua espera tem público e manifestantes anti-touradas.
Alargar o interesse pelas touradas de África à Ásia é outra das possibilidades que Alfredo Ovelha explora nos anos 60 do século passado: em 1966, Alfredo Ovelha, associado a Manuel dos Santos, está por trás da organização daquela que é considerada a primeira tourada em Macau. A STDM, empresa de Stanley omnipresente no território, apoia o evento.
E assim chegamos a Agosto de1966. Durante nove dias do mês de Agosto desse ano, a praça de touros, construída em bambu, enche. Manuel dos Santos era o cabeça de cartaz. Terá sido durante esse mês de Agosto de 1966, em que pela primeira vez se toureou em Macau, que Manuel dos Santos e Clementina Ângela se conhecem. Ela faz 43 anos nesse mês. Ele tinha feito 41 em Fevereiro desse ano.
A 1, 5, 6, 10, 12, 13, 17, 19 e 20 de Agosto de 1966 houve tourada em Macau. A lotação esgota. O público asiático reage apaixonadamente às faenas sobretudo à de Chibanga que terminava ajoelhado e de costas perante o touro. Nesse momento pelas bancadas explodia um grito de admiração. Será aliás na Ásia, não em Macau mas sim em Jakarta, na Indonésia, que teve lugar aquela que até agora é considerada a tourada que contou com maior assistência de público em todo o mundo: em Abril de 1969, mais de cem mil pessoas encheram as bancadas de um estádio de Jakarta para ver corrida à portuguesa. Organizadas por Alfredo Ovelha e Manuel dos Santos, as touradas em Jakarta não foram apenas uma questão tauromáquica mas também um ponto de descompressão na agenda das sempre complexas relações diplomáticas entre Portugal e a Indonésia.
E depois o que aconteceu? Indiscutivelmente estabelecem-se laços de amizade entre Stanley, a sua mulher Clementina e Manuel dos Santos. O casal Ho visita a Quinta de Guadalupe na Golegã, onde Manuel dos Santos e Gloria Elena vivem.
Na zona do Estoril a família Ho adquire casas por onde passam Stanley e Clementina e outros familiares. Um desses familiares é “a jovem aficionada chinesa” (provavelmente uma sobrinha de Clementina) com quem Manuel dos Santos toureia na apresentação da época tauromáquica de 1968.
Igualmente certo é que Clementina permanece em Portugal mesmo sem o marido. Uma decisão que também é explicada por questões de saúde – problemas do aparelho digestivo tê-la-ão levado a procurar tratamento fora de Macau. Dos investimentos que então Stanley faz em Portugal, um pode ser explicado precisamente pelos problemas de saúde de Clementina: em Agosto de 1967 era inscrita provisoriamente “a favor de Stanley Ho, casado no regime de comunhão geral, com Clementina Ângela de Melo Leitão Ho, residentes em Macau e acidentalmente no Hotel Ritz” a propriedade do número 30 e 30-A da avenida Luís Bívar em Lisboa. Por quinze mil contos Stanley e Clementina tornaram-se proprietários do edifício onde funcionava o Hospital Particular de Lisboa. O mesmo para onde Manuel dos Santos é levado a 17 de Fevereiro de 1973 e onde vem a morrer.
“Como estão os outros?”
A meio da tarde do dia seguinte, 18 de Fevereiro, Manuel dos Santos recupera a consciência e pergunta “Como estão os outros?” Alheia à esperança que este momento gera entre aqueles que se aglomeram no Hospital Particular de Lisboa, a morte leva Manuel dos Santos pouco depois.
Quanto aos outros, esses vivem momentos de dor e estupefacção nesse dia 18 de Fevereiro de 1973. Sobretudo aqueles que lhe eram mais próximos, como a sua mulher e o seu filho. Estes são confrontados com a perda brutal do marido e do pai. Mas não só.
A “história da Tininha” não causou de modo algum a perturbação e a mágoa que a existência da Céu e da sua filha trouxeram
No meio daquela sucessão dramática de factos uma outra mulher apresenta-se como tendo constituído família com Manuel dos Santos. É uma antiga empregada da casa do toureiro que entretanto se tornara cabeleireira em Lisboa. Não sendo propriamente novidade a preenchida vida sentimental de Manuel dos Santos, o aparecimento desta mulher representa um terramoto para a família: Céu, assim chamava a mulher em causa, fora mãe há poucos anos de uma menina que Manuel dos Santos perfilhara. As implicações legais desta situação, a par da constatação de que Manuel dos Santos não se alheara da vida que Céu e a sua filha tinham no Restelo, são nas palavras de algumas das pessoas com quem falei um tremendo choque para a família de Manuel dos Santos. Mais do que um dos meus interlocutores dir-me-á que, do ponto de vista da família, a “história da Tininha” não causou de modo algum a perturbação e a mágoa que a existência da Céu e da sua filha trouxeram.
Mas como o interesse que temos ou não pelas histórias não é ditado por aquilo que os seus protagonistas sentiram quando as viveram mas sim por aquilo que nós sentimos perante elas, deixo a Céu e a sua filha no Hospital Particular e continuo em busca da Tininha. Se não encontro qualquer referência ao seu nome entre as vítimas do acidente, muito menos o detecto entre aqueles que participam no funeral.
A solução para este enigma chega-me através de testemunhos: tinha havido não um mas sim dois acidentes. No primeiro, que teve lugar na zona do Guincho, Clementina Ângela estava com Manuel dos Santos. O toureiro escapa ileso mas Clementina sofre ferimentos graves. A recuperar desse acidente Clementina não poderia nunca acompanhar Manuel dos Santos na viagem que este faz a 17 de Fevereiro, nem comparecer no seu funeral.
Meses depois Clementina deixa Portugal e acabará por regressar a Macau, onde continuará sempre a ser tratada como a mulher de Stanley que associa o nome da esposa a inúmeros actos de benemerência.
Entretanto a época tauromáquica prosseguia, agora com Glória Elena e o seu filho Manuel Jorge como empresários. Alfredo Ovelha até consegue cumprir um velho sonho de Manuel dos Santos e organiza em Maio de 1973 uma corrida no Canadá.
Clementina e Stanley, perderam o filho mais velho, aquele que era visto como o herdeiro natural do império construído por Stanley: a 23 de Junho de 1981, Robert Ho e a mulher, a modelo Suki Potier, morrem num acidente de automóvel na marginal.
Depois o tempo, esse grande clarificador, encarregou-se do resto.
Portugal, que fez de Stanley e da sua mulher Clementina Ângela imensamente ricos, deu-lhes também a provar o amargo da tragédia: em Portugal Clementina ia perdendo a vida e viveu a morte de alguém a quem estava unida, independentemente da natureza dessa relação. Stanley ia perdendo a mulher no acidente que esta sofre com Manuel dos Santos. E ambos, Clementina e Stanley, perderam o filho mais velho, aquele que era visto como o herdeiro natural do império construído por Stanley: a 23 de Junho de 1981, Robert Ho e a mulher, a modelo Suki Potier, morrem num acidente de automóvel na marginal.
Em Hong Kong, Ina Chan, uma das enfermeiras contratadas para tratar de Clementina, torna-se a terceira esposa de Stanley. Pouco a pouco aqueles para quem Clementina era a Tininha dão lugar aos que a designam como Grande esposa Li Wanhua.
Em África as praças de touros começam a cair em ruínas. A de Lourenço Marques/Maputo acabou a servir para cenário do filme A intérprete e a de Luanda funcionou como sinistra prisão.
Macau passou a ser administrado pela República Popular da China. Nas vésperas da passagem da administração de Portugal para a China, Clementina Ângela recebeu das mãos do então Governador de Macau, General Rocha Vieira, a medalha de Grande-Oficial da Ordem do Mérito.
A 21 de Fevereiro de 2004, Clementina Ângela morreu. Stanley Ho fez-lhe um impressionante funeral onde compareceram as autoridades de Macau e Hong Kong. Numa coroa de flores lia-se “To my dearest wife with deepest love, your husband Stanley”.
Hoje Clementina Ângela continua sorrindo, eternamente jovem como todos os que já morreram, numa lápide do cemitério de Hong Kong.
Luto rigoroso. Jornalistas à distância. Elevada segurança. Representantes do poder político e empresarial. Foi assim o funeral de Clementina Ângela. Stanley que comparece sem nenhuma das outras três mulheres com quem constitui família deixa uma mensagem: “To my dearest wife with deepest love, your husband Stanley”. A mulher que dava sorte morrera.
Stanley deixou de ser um dos homens mais ricos do mundo e agoniza rodeado da quarta esposa enquanto os seus dezasseis filhos travam uma batalha fratricida pela sua herança.
Glória Elena continua a viver na Golegã, na Quinta de Guadalupe.
Manuel dos Santos é agora uma estátua ao lado do Café Central na Golegã onde o seu sorriso ilumina as inúmeras fotografias que cobrem as paredes.
Como diz o Fado Manuel dos Santos, a vida deu-lhes a todos encantos. Já quanto à sorte ser uma graça de Deus ou o resultado da ligação a uma mulher, como terá garantido o astrólogo a Stanley Ho, isso só os protagonistas desta história poderiam responder.
Entre a roleta e a espada, a vida destas pessoas foi uma espécie de “suerte entre dos”, essa faena a dois em que a sorte de cada toureiro está nas mãos daquele com quem partilha o capote.
Nota: A descrição dos laços familiares de Carlos de Melo Leitão pai de Clementina Ângela foi construída a partir do livro Famílias Macaenses, da autoria de Jorge Forjaz