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© Paulo Agostinho

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Um país para estrangeiro ver

Um abismo separa a Guiné Equatorial real daquela que é vendida aos estrangeiros no protocolo, feita de edifícios sumptuosos e autoestradas novas. A realidade tem caminhos de lama e muita pobreza.

Em Sanpaca, a poucos quilómetros de Malabo, capital da Guiné Equatorial, um homem muda de roupa à beira da estrada. Trazia camisa, gravata e um casaco vestidos com calções e sandálias. Transportava na mão umas calças de vinco e uns sapatos, seguindo por um caminho de lama na floresta. “Tem de ser, tenho de andar bem vestido para a cimeira”, diz Ruben, apressado, um dos muitos equato-guineenses resgatados do desemprego para ajudar as comitivas no encontro da União Africana, no final de junho. E é no passeio que muda de roupa, antes de entrar num dos milhares de táxis, rede principal de transportes públicos do país.

O caso de Ruben espelha o abismo em que vive a Guiné Equatorial, entre a pobreza extrema e a sumptuosidade dos novos edifícios oficiais e das novas autoestradas. Este é o país com mais rendimento per capita do continente (quase 20 mil dólares), é também o terceiro maior produtor de petróleo da África subsaariana para uma população de apenas 700 mil habitantes. A Guiné Equatorial é sinónimo de edifícios do tamanho do Centro Cultural de Belém. Das centenas de palácios e edifícios de habitação social onde não se vê ninguém. De uma democracia com 13 partidos em que um domina 99 dos cem lugares do parlamento. O Presidente, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, escolheu para um dos seus vice-presidentes o seu filho, Teodoro Nguema Obiang Mangue, conhecido por Teodorin. Tem outro filho no decisivo Ministério das Minas, que gere o setor do petróleo. E filhos, filhas, sobrinhas, sobrinhos, irmãos e vários familiares em lugares-chave da administração pública, referem Oganizações Não Governamentais como a Human Rights Watch — e como o Observador tem dado conta nos últimos dias.

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Nos últimos quatro anos, foram construídos centenas de quilómetros de autoestradas. Quase tudo cheira a novo, a cimento fresco. A maior parte dele vindo da portuguesa SECIL, que tem no país um dos seus melhores clientes internacionais. Circulam carros topo de gama e há vários centros comerciais em construção. Os ministérios têm andares amplos, com grande parte das salas por ocupar e jardins majestosos impecavelmente cuidados. Os prédios são quase todos enormes, com muros altos, que se multiplicam ao longo das estradas principais. Nos cruzamentos espreita-se por detrás desse cimento fresco e vêem-se casas precárias com telhados de zinco, vêem-se caminhos de lama como aquele por onde saiu Ruben.

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“Não há emprego, não há nada. Não há esperança. E os preços, por causa dos estrangeiros brancos e do petróleo, estão cada vez mais altos”, desabafa.

Petróleo paga casas vazias

Na capital da Guiné Equatorial, há um mar de barracas escondido. Foi construído por imigrantes e agora é casa de muitos equato-guineenses na miséria. New Bili, também conhecido por Camp Yaoundé, é uma cidade de casas de madeira e telhados de zinco, cercada por muros juntos a estradas principais por onde circulam os estrangeiros. Em New Bili (uma corruptela de New Building, em pidgin, o inglês falado na Nigéria), a cidade acorda cedo. Antes das seis da manhã, milhares de mulheres saem de casa para procurar água. Não há água potável em muitas casas e barracas do país. Só naquelas que foram construídas recentemente, mas muitas delas estão vazias. Com garrafões na cabeça, percorrem distâncias variáveis para procurar água. “Demoro quilómetro e meio para ir à fonte” e “temos de ir lá todos os dias, várias vezes”, diz Isabela, que segue com a filha de oito anos, com um enorme garrafão de água na cabeça. A filha arrasta pelo chão um garrafão de cinco litros. E não há direito a mais perguntas. A pressa é muita para fazer o pequeno-almoço do marido.

“Não há emprego, não há nada. Não há esperança. E os preços, por causa dos estrangeiros brancos e do petróleo, estão cada vez mais altos”, desabafa.

Por todo o país são visíveis muitas casas novas — desocupadas. Basta passar por um dos bairros sociais em Malabo 2. O estacionamento está quase vazio, as campainhas podem tocar, mas ninguém vem à porta. Os prédios são todos iguais. São construídos por empresas chinesas que, cada vez mais, controlam os trabalhos de obras sem grande complexidade. “É pago em petróleo, independente das variações do preço do petróleo”, explica Pablo Mbá, um pequeno empresário equato-guineense. No mercado do Semo as cores garridas, tipicamente africanas, ficam esbatidas pela humidade permanente e pela lama que se cola à roupa.

As vendedoras têm poucos cuidados de higiene. “Um dos meus filhos morreu por causa de peixe estragado”, conta María Ildefonso, vendedora ocasional do principal bairro da cidade de Malabo. Prefere vender fruta e legumes, mas há dias em que tem que vender peixe, com uma “grande dor no coração”. O peixe é colocado em bacias ou sobre esteiras, a poucos centímetros do chão. Quase tudo vem dos Camarões. “Aqui só se produz petróleo”, diz María, com um sorriso que se esconde ao ver um polícia aproximar-se. A conversa acaba com uma frase: “Ninguém gosta de ser vista a falar com um branco.” Perto do mercado tradicional do Semo foi construído um novo mercado. Mas os preços dos lugares de cimento são insuportáveis para quem vende em chão de lama. E os preços dos produtos são também cada vez mais inacessíveis aos clientes. “Um quilo de pescado é 5 mil francos” (7,5 euros), diz Damien, que mora perto do Semo e vive, como quase todos, de expedientes. “Não há emprego, não há nada. Não há esperança. E os preços, por causa dos estrangeiros brancos e do petróleo, estão cada vez mais altos”, desabafa.

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Em média, um trabalhador indiferenciado pode ganhar 200 euros por mês. Um valor que não permite suportar a inflação galopante dos bens de consumo. “Aqui importa-se tudo e não se exporta nada”, diz Pablo Mba, dono de uma pequena empresa de entregas. Quem ganha com o petróleo é quem trabalha para o governo e multinacionais. E só estes têm dinheiro para comprar. “Nunca tive dinheiro para ir ao Martinez”, diz Miguel Angel, um rapaz de 20 anos que vive num dos bairros periféricos de Malabo, referindo-se à principal grande superfície da cidade, onde é frequente esgotarem-se bens de consumo. “Se falhar o barco que vem de Espanha não há sardinhas”, exemplifica Salomon Abeso, exilado político em Londres, que critica a excessiva dependência do país do petróleo.

“Na Guiné tudo tem um preço, porque não temos nada para vender além de nós mesmos. O petróleo tem-o ele, Obiang"

Junto do mercado do Semo, Damien concorda: “Este regime está fora da realidade. Há cada vez mais miséria e cada vez mais ricos.” Mas a pobreza guineense é, ainda assim, menos miserável do que nos outros países vizinhos. Integrado na região Centro-Africana, as exportações equato-guineenses (15 mil milhões de euros) representam mais de metade de todas as exportações da região, que tem potências como os Camarões ou o Gabão. Por isso Obiang tem resistido à tentação de abrir as fronteiras, num espaço económico comum em que nada tem a ganhar. Quem lhe compra o petróleo é a China e a Europa. Uma união aduaneira iria aumentar ainda mais a dependência dos Camarões, mas também iria colocar o país mais vulnerável à imigração dos países vizinhos.

Nos bairros pobres de Malabo essa presença é evidente. Em Camp Yaoundé discute-se o resultado da seleção de futebol camaronesa no Mundial do Brasil – em francês, misturado com fang, o dialeto étnico que junta a Guiné continental, os Camarões e o Gabão. E esses imigrantes vêm ganhar ainda menos que um guineense. “Aceitam ganhar mil francos ou menos”, diz Alberto, que vê o jogo do Brasil junto de Damian, que se mostra preocupado com o aumento da prostituição no país, sinal da fragilidade dos mais pobres. Às sete da manhã uma mulher sai de uma barraca do Camp Yaoundé e grita: “Garçon? Ici.” A venda de sexo pode custar entre os 500 francos (75 cêntimos) e milhares, dependendo de quem vende e de quem compra. E há quem prometa vender a virgindade das filhas por poucos euros. “Na Guiné tudo tem um preço, porque não temos nada para vender além de nós mesmos. O petróleo tem-o ele”, Obiang — diz Miguel Angel, um jovem de 17 anos que três euros transformam num guia dedicado de New Bili.

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Miguel Angel Nguema passeia pelos bairros pobres como se fossem divisões da sua casa. Cumprimenta umas pessoas, ignora outras. “Há uns em que não posso confiar. Agora há outros em quem confio completamente, mesmo que trabalhem para ele”. “Ele” é Obiang, o todo-poderoso Presidente da Guiné Equatorial. “Ele é o dono, não é só o Presidente”, afirma. Obiang “é um ditador e controla de forma direta ou indireta todo o país”, subscreve o coordenador da oposição no exterior, Salomon Abeso. “Todas as coisas são dele. Os melhores carros. As melhores casas. Os melhores terrenos. São dele ou da sua família”, diz Damien, assegurando que é através do “medo” que o regime se impõe. Na televisão da Guiné Equatorial, “todos dizem o mesmo, é só elogios para eles”. “São debates com dez pessoas e todas dizem a mesma coisa. São todas telecomandadas”, afirma.

“As pessoas vivem numa miséria absoluta. As pessoas estão cansadas e já não têm esperança. Há habitações sociais vazias em que lá vivem só os ratos”

Petróleo, salvador e carrasco

Mais de 95 por cento das exportações são petróleo, madeira e gás natural. O país importa quase tudo. Antes da independência de Espanha, a Guiné Equatorial era, a par de São Tomé e Príncipe, um dos principais produtores de cacau do mundo (43 milhões de toneladas/ano). Hoje as roças estão abandonadas, embora já se notem alguns sinais de retoma da atividade — ainda muito ligeira. A vida na Guiné Equatorial “é de desespero, há muitos assassinatos e a população está completamente desesperada”, diz Avelino Mocache Mehenga, que reside em Bata, a capital económica do país, no continent. Longe da capital política, Malabo, na ilha de Bioko. “As pessoas vivem numa miséria absoluta. As pessoas estão cansadas e já não têm esperança. Há habitações sociais vazias em que lá vivem só os ratos”, desabafa, queixando-se da corrupção de todo o sistema político. “As casas só se vendem a elementos do governo que as alugam a empresas estrangeiras, arrecadando ainda mais dinheiro”, diz. “São as multinacionais e os expatriados que sustentam a construção”, salienta Salomon Abeso.

No continente e na ilha de Bioko replicam-se obras e prédios, desde sedes ministeriais a habitações sociais. E agora já se avançou para uma nova cidade, construída a partir do nada: Oyala, no meio da selva africana. “O projeto de Oyala é um projeto fantasma apenas para lavar dinheiro”. Não faz sentido “tantos imóveis e tantos palácios em que não vive ninguém”, diz o engenheiro de profissão que, por ser opositor do regime, está impedido de exercer. “Vivo de dar aulas em colégios privados e pouco mais”, diz Avelino Mocache Mehenga, que já esteve sete vezes preso por motivos políticos, foi torturado e ostracizado, mas recusa partir. “Eu não me vou, prefiro aguentar com os meus filhos e com a minha família. Prefiro resistir”, diz. “Fui torturado tantas vezes que já nem conto”, recorda o engenheiro de 57 anos, que acusa Obiang de estar a passar o poder para o seu filho.

“Todos sabemos que será ele. E isto vai continuar até alguém pôr mão” neste “regime criminoso”, diz, considerando que o aparecimento do petróleo na década de 1990 foi a machada final no processo democrático. A mesma opinião tem o coordenador da oposição no exílio. “O petróleo trouxe o dinheiro e com isso Obiang comprou as vontades de toda a gente”, bloqueando o processo de abertura democrática no início de 1990, diz Salomon Abeso. “Foi o petróleo que acabou com o processo democrático. Ele apropriou-se do dinheiro e agora controla tudo”, concorda Jerónimo Ndongo, secretário-geral da União Popular, um dos partidos da oposição que viu o seu líder eleito rejeitado por Obiang. O regime impôs um outro nome não aceite pelos militantes. “É a loucura democrática”, resume Ponciano Mbomio Nvó, advogado que contestou essa decisão.

Mas o governo responde e garante a normalidade democrática do país, prometendo entregar habitações sociais aos mais carenciados. “A Guiné Equatorial é um país que nasceu da crise: não tínhamos luz, não tínhamos casas”, recorda Agapito Mbo Mokuy, ministro dos Assuntos Exteriores. “O que o Presidente está a tentar fazer é dar qualidade de vida aos cidadãos como qualquer país desenvolvido”, diz. “O Presidente tem um programa de edificação para que cada equato-guineano possa ter uma casa decente” e o Governo está “a destruir casas que não reuniam condições”, diz, rejeitando as críticas de que os prédios de habitação social sejam só para uma elite. “O Presidente está a permitir à população mais pobre beneficiar de custos muito razoáveis”, diz. Para o ministro, Obiang está a lutar contra “esta regra de que África é o continente dos pobres, ele acredita que África se pode desenvolver, que o africano pode viver numa casa decente”.

“Olha: está aqui uma foto de um edifício que ainda não foi construído. Está como novo, mas ainda não existe. Está aqui outra foto de um sítio que ainda é só mato. Isto é só para vocês, estrangeiros, gostarem.”

Malabo 2, cidade a régua e esquadro

Em Malabo 2, tudo é novo. Construído a partir do nada perto do aeroporto, como um cartão de visita feito de propósito para quem aterre. Prédios imensos para serviços públicos. Desde ministérios a uma sede da ONU por estrear, maior do que os edifícios da avenida da República em Lisboa. Lentamente, o governo quer mudar as estruturas do poder central para esta nova cidade construída a régua e esquadro. Os ministérios das Obras Públicas e dos Negócios Estrangeiros são os próximos a sair da malha antiga da cidade. Para ocupar edifícios novos, enormes. Já em Sanpaca, ainda há poucas casas novas que tapem as barracas junto das quintas de cacau abandonadas. Aí, ao contrário de Malabo 2, o verde da erva funciona como muro e engole os caminhos. Por isso, quem passa de carro mal vê o bairro. É necessário sair e percorrer um dos caminhos de lama para ver as barracas. Pela manhã, junto a uma fonte, as mulheres lavam roupa e os homens conversam e bebem cerveja. “Não há emprego. Quer que se faça o quê?”, diz um.

Juan [nome fictício], de 25 anos, é motorista e foi escolhido para conduzir um dos carros oficiais dos muitos governantes que visitaram o país para a cimeira da União Africana, em junho. Não é a primeira vez que o faz e nem é porque ganhe muito. Mas sempre são umas “horas de emprego certo”. Quem fica com o grosso do dinheiro é o dono do carro, que o cede ao Governo. Cada aluguer diário de um automóvel custa pelo menos 200 euros. “Fui chamado por quem é responsável pelos motoristas. Pagam-me o mesmo que receberia no táxi, mas a maior parte do dinheiro fica com alguém que não sou eu”, diz Juan, com o sorriso triste de quem tem uma filha de seis anos e não vê futuro para ela no país. Juan aponta para o livro do protocolo da cimeira e diz que a Guiné Equatorial que lá é descrita não existe. “Olha: está aqui uma foto de um edifício que ainda não foi construído. Está como novo, mas ainda não existe. Está aqui outra foto de um sítio que ainda é só mato. Isto é só para vocês, estrangeiros, gostarem.”

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