Em Portugal, há poucas certezas, mas numa coisa há um amplo consenso nacional: a culpa é do “neoliberalismo”. O sentido preciso do termo é indefinido, mas a sua perversidade assume contornos indiscutíveis. Seja na comunicação social, no discurso político-partidário ou nas universidades, a percepção do espectro neoliberal que paira sobre o país é inequívoca, embora a respectiva concretização seja problemática. Nas várias áreas políticas, desde os mais empenhados activistas de extrema-esquerda aos mais respeitáveis senadores do regime (alguns dos quais transitaram do anterior), a condenação do neoliberalismo é um ponto de união.

Na perspectiva de um observador imparcial externo, este consenso alargado não poderia no entanto deixar de provocar alguma perplexidade. Afinal, vivemos num país no qual o Estado controla directamente cerca de metade de toda a riqueza gerada. Adicionalmente, intervém activamente com os mais variados instrumentos regulatórios sobre a metade remanescente. Mas mais curioso ainda é que, num país em que quase todos se declaram militantemente anti-neoliberais, tantas culpas possam ser atribuídas ao neoliberalismo.

Ainda assim, o estado do debate podia ser ainda pior. Pelo menos em Portugal, como na generalidade da Europa, a palavra “liberalismo” preserva mais ou menos inalterado o seu sentido original de defesa da liberdade e responsabilidade individual, igualdade perante a lei, limitação do poder político e cepticismo face ao intervencionismo estatal na economia e na sociedade. É verdade que foi acrescentado o prefixo “neo” para acrescentar algum efeito dramático às denúncias, mas ainda assim pelo menos não se tornou comum os estatistas declararem-se defensores do liberalismo.

Nos EUA foi diferente, com a palavra “liberalismo” a assumir gradualmente a partir do início do século XX um sentido em larga medida inverso ao seu significado clássico. De tal forma que hoje, no contexto dos EUA, alguém classificado como “liberal” é muito provavelmente um estatista. Como magistralmente sintetizou o grande economista austríaco Joseph Schumpeter, “como um supremo, ainda que não intencional, elogio [ao liberalismo], os inimigos do sistema de livre iniciativa consideraram vantajoso apropriar-se da sua designação”.

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Voltando a Portugal, se há algo razoavelmente claro é que há por cá muito pouco liberalismo, seja ele clássico ou “neo”. Os desenvolvimentos face ao colapso e subsequente pedido de ajuda externa de 2011 foram a este respeito bem elucidativos. Para salvar e manter o Estado com o mínimo de alterações, a opção foi, uma vez mais, sacrificar a sociedade, o que aliás conduziu a níveis de opressão fiscal sem precedentes. Ao mesmo tempo, todo o aparato regulatório e de extracção de rendas por via do Estado continuou de boa saúde, assim como a cultura de intervenção na economia com base em subsídios. Como cereja no topo do bolo, o país passou até a contar com um novo “banco de fomento” estatal cuidadosamente delineado para ajudar a perpetuar as velhas práticas e redes estabelecidas.

Neste panorama, a figura mítica do neoliberal acaba por funcionar como um bode expiatório útil para tudo quanto inevitavelmente corre mal numa sociedade ultra-estatizada. Enquanto se condena o neoliberalismo, evita-se o confronto com uma realidade em que o Estado asfixia a economia, distorce a concorrência e vicia o mercado. É sem dúvida mais confortável proceder assim do que encarar as numerosas evidências que apontam para o fracasso das receitas intervencionistas e para o triunfo dos interesses instalados acoplados ao Estado. Enquanto não percebermos que o verdadeiro mal está na sobreposição da coerção à interacção voluntária e na crença no falso ídolo do Estado, uma coisa parece certa: a culpa continuará a ser do neoliberalismo.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa