Já todos sabemos o que conseguiu o Syriza: em vez da troika, passou a haver “instituições”; em vez do programa, “acordo”; em vez de credores, “parceiros”; em vez de austeridade, “condições”. Enfim, a transfiguração semântica servirá para muita coisa, mas não chega para esconder que o Syriza enganou os gregos, quando, para ganhar as eleições, prometeu que bastava dar dois berros à Merkel para tudo se tornar fácil. Agora, como todos os mentirosos, resta-lhe continuar a mentir, recorrendo ao delírio verbal consentido pelos seus parceiros europeus para inventar “batalhas ganhas” em guerras perdidas.
Na Grécia, à esquerda e à direita, já muita gente percebeu a “ilusão” encenada por Tsipras e Varoufakis. Manolis Glezos, o patriarca do Syriza, com um sentido da decência que os seus correligionários mais novos não têm, pediu entretanto as devidas desculpas ao povo grego. Há quem diga que ficou tudo na mesma. Não, tudo ficou muito pior, porque o circo do Syriza deixou a Grécia mais isolada, mais desacreditada, mais fraca, e mais longe da recuperação económica. O saldo orçamental primário, por exemplo, já desapareceu. Com inimigos destes, a troika não precisa de amigos.
No exterior, o clube de fãs do Syriza vai tentar fingir que este foi apenas mais um caso de prepotência alemã. Não foi nada disso. A Grécia não é um país ocupado, e não estamos no século XIX. Ninguém iria bombardear Atenas para forçar o pagamento da dívida, como aconteceu ao Egipto em 1882. Então, porque é que o Syriza não ousou romper as negociações, renegar a dívida, sair do euro, afirmar a soberania, e em vez disso se submeteu a um acordo duríssimo? Não foi por causa da “pressão europeia”, mas porque teve de reconhecer que não existe na Grécia uma maioria para romper com a União Europeia, o euro, o “capitalismo” e a “democracia burguesa”, como desejariam os revolucionários da extrema-esquerda.
Na Europa do sul, os que têm imediatamente a perder com uma revolução são a maioria, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Venezuela, o país-modelo do Syriza. A hemorragia de dinheiro dos bancos foi um sinal da pouca inclinação da Grécia para sacrificar as suas poupanças e patrimónios numa aventura fora da União Europeia (desde o começo da crise, os depósitos em relação ao PIB já caíram de 131% para 77%). O Syriza cedeu porque teve medo do que lhe fariam os gregos se por acaso Varoufakis voltasse a casa para anunciar uma desvalorização de 50% sob a forma de um novo dracma. A alternativa foi chamar “instituições” à troika.
O truque dos contestatários do ajustamento e das reformas na Europa do sul tem sido o de fingir que toda a população está com eles. Não está. É óbvio que ninguém gosta de cortes e pouca gente está entusiasmada com mudanças. Mas também é óbvio que quase toda a gente sabe que as alternativas são piores. Os programas de assistência evitaram bancarrotas e pouparam os vários países a tormentos muito maiores do que os que infligiram. É por isso que, apesar de todas as dificuldades, a Grécia aguentou cinco anos de troika, e agora, com o Syriza, preferiu continuar sob as “instituições” (para usar o novo vocabulário grego).
No passado, ajustamentos do tipo que a Grécia experimentou deram resultados rapidamente, como sucedeu em Portugal a partir de 1985. Agora, não. Há quem explique a dificuldade pelo modo como a zona euro funciona, impedindo desvalorizações e não prevendo transferências entre países. Com todo o respeito, parece-me que não é bem essa a questão: transferências há, o que não há é muita vontade de efectuar o equivalente interno das antigas desvalorizações da moeda, e muito menos ânimo para sanear e modernizar administrações, ou abrir e flexibilizar mercados. Por isso, a inflação, com a sua “ilusão monetária”, continua a parecer a muitos especialistas indispensável para restaurar a competitividade de países como a Grécia.
O problema da Grécia é que não deseja voltar à desvalorização e à inflação, mas não conseguiu ainda organizar-se para existir de outra maneira. A questão é fundamentalmente política: não há, na classe dirigente, muita gente disponível para se comprometer num projecto reformista. Em França, Hollande teve de recorrer ao poder presidencial para fazer passar a lei Macron, de modo a dispensar os deputados socialista de sujarem as mãos em reformas.
As classes dirigentes falharam, mas o seu falhanço serviu mais uma vez, no caso da Grécia, para tornar manifesta a insustentável irrelevância da chamada “esquerda radical”, a quem a crise emprestou um simulacro de vida. Não há revoluções grátis. Por isso, no mundo actual, onde não há petróleo, não há revolução. Até o Podemos, em Espanha, parece não dispensar o dinheiro venezuelano. Sem rendimentos petrolíferos, a “esquerda radical” não é mais do que retórica, colarinhos abertos, cachecóis – e mentiras.