É impossível ficar alheio ao drama do Mediterrâneo. Ele chega-nos diariamente em imagens, relatos e números. Todos eles impressionantes. Ecos de histórias difíceis, inimagináveis, de quem foge da morte, arriscando a vida, em busca de um futuro melhor. Em algum momento já todos pensámos no que faríamos se fosse connosco, se também nós estivéssemos destinados ao desespero, à fuga, ao risco, às balsas.
O Mediterrâneo apela hoje a um lado profundamente humano de quem embarca e de quem assiste do lado do porto. Por cada vida ali perdida ou ali nascida, morre um pouco mais a ideia europeia de humanidade e civilização. Por cada resgate, bem ou mal sucedido, ficam a vergonha e o embaraço colectivos da ausência de uma resposta melhor. Afinal nós, os europeus, estamos comprometidos com o respeito pela dignidade, a vida, a integridade e a segurança de todas as pessoas. Não só dos que são daqui, e aqui estão, mas também dos que nos chegam de lá. E ninguém duvidará que este é, antes de mais, um problema de protecção de direitos humanos. O Mediterrâneo coloca hoje, na verdade, um desafio verdadeiramente existencial à auto-compreensão dos direitos fundamentais na Europa. E o discurso oficial não o ignora, muito embora as medidas concretamente adoptadas fiquem claramente aquém do que a esta luz se poderia esperar.
E afinal, porquê? Por que razão não encontrou ainda a Europa mecanismos que permitam resolver o problema das migrações na sua “última fronteira”? Parece consensual que esta é uma questão europeia, que merece e reclama assim uma solução europeia. O espaço Schengen e o mercado único remeteram a questão para o plano da União. O mar Mediterrâneo é fronteira externa da União, e por isso fronteira de todos (ou quase todos) os Estados-membros. Neste sentido, nunca o mare nostrum foi tão nosso como agora.
Mas existindo consenso quanto ao diagnóstico, por que falha o consenso na terapêutica?
Importa perceber que as medidas adoptadas pela União para responder à tragédia do Mediterrâneo assumem uma dupla dimensão: uma dimensão interna, uma vez que se prendem com as políticas europeias de imigração e asilo; e uma dimensão externa, na medida em que envolvem decisões de política externa e segurança comum, inclusivamente com implicações no domínio militar e da defesa. Ora, nestes domínios o consenso europeu não é, tradicionalmente, fácil, nem evidente. Introduzidas com o Tratado de Maastricht, as políticas da justiça e assuntos internos e a política externa e de segurança comum encontravam-se, nos anos noventa, plenamente sujeitas a uma lógica intergovernamental, de cooperação internacional, em que os Estados acordavam actuar por acordo unânime entre todos. A razão para isso é simples: trata-se de matérias próximas do núcleo da soberania nacional, relativamente às quais os Estados não estavam dispostos a perder o seu direito de veto. Certo que hoje já não é inteiramente assim.
Na sequência do Tratado de Amesterdão, as matérias da imigração e asilo foram plenamente “integradas” – sujeitas ao método da integração ‑ e desenrolam-se hoje num quadro decisório baseado na maioria qualificada dos Estados, com envolvimento da Comissão e do Parlamentos europeus. Ainda assim, é significativo que três dos Estados-membros mais antigos se mantenham afastados destas políticas e das medidas adoptadas neste âmbito: o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca. Em matéria de imigração e asilo, a Europa – como noutros domínios – também se faz de geometrias variáveis e ritmos diferenciados. Mais significativas, porém, são as dificuldades e limitações de implementação da política externa e de segurança comum da União. Aqui, mesmo depois de Lisboa, continua a prevalecer a lógica da unanimidade entre os Estados, do acordo, possível ou impossível, entre os vinte e oito, designadamente para a adopção de medidas com implicações militares ou de defesa.
Neste quadro decisório, não surpreende que não obstante o acordo quanto ao diagnóstico da situação no Mediterrâneo, a terapêutica seja difícil de fixar. Estão em causa vinte e oito diferentes percepções quanto a matérias fundamentais que se prendem com a segurança interna e externa da União, com relações com países terceiros, com os controlos de fronteiras e a política de migrações que devem vigorar na Europa.
A esta pluralidade de visões associa-se a inevitável desigualdade entre Estados-membros que o Mediterrâneo implica. Desigualdade que começa por ser meramente geográfica ‑ à entrada ‑ e que penaliza os países do sul, mas que acaba numa desigualdade no acolhimento – na permanência ‑, já que os pedidos de asilo sobrecarregam sobretudo os países do norte. Nem sempre o diálogo entre as duas frentes será evidente, e também aqui falha a tão reclamada solidariedade europeia. Solidariedade entre portas e fora de portas, entenda-se. Aquém e além-mar.
Talvez por isso não seja surpreendente que as medidas recentemente aprovadas pelo Conselho Europeu soem a pouco. O reforço dos meios das missões de patrulha e resgate, detenção e julgamento, e o aprofundamento do diálogo com os países de origem, é de facto pouco relativamente ao que a Europa pode fazer. Mas este é, porventura, o consenso possível. Porque o outro, o consenso da assistência humanitária a países terceiros, da abertura das fronteiras, das quotas de asilo, da recepção e acolhimento temporários e/ou definitivos de quem nos chega em busca do sonho europeu, esse parece (por ora) impossível.
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa