Falta tudo nas prateleiras dos supermercados, nas gavetas das farmácias, nas salas dos hospitais. A crise humanitária é evidente e os responsáveis sempre alocaram as culpas a terceiros. Faltou o pão; até o pão e a farinha foram racionadas. Não é recente. Desde abril, a fome começou a caminhar com a indignação e as pessoas saíram à rua para fazer ouvir a sua voz quanto ao trabalho de quem as governa: as mais pobres, as classes médias, todos os que veem a sua vida perder dignidade.
1. O que deve fazer um Governo quando as pessoas vão para a rua manifestar-se contra a escassez generalizada de alimentos e medicamentos? Reprimir com violência letal essas manifestações não é de facto uma opção plausível ou aceitável para responder a esta questão, em contexto nenhum. No entanto tem sido isso que o Governo venezuelano tem feito nos últimos meses.
A proibição de manifestações públicas antes das eleições constituintes do último domingo na Venezuela são um ponto extremado da limitação de todos os direitos civis e políticos. Em vez de tentar acalmar a crescente e intensa insatisfação da população que reivindica direitos fundamentais, o Governo do Presidente Nicolás Maduro continuou a castigar através de violência letal todas as vozes dissidentes, afundando o país numa crise ainda maior. De crise económica e social, com a sua atuação, o Governo conseguiu o pleno de uma crise de direitos humanos em toda a linha, atacando direitos económicos, sociais e também civis e políticos.
Desde que os protestos se iniciaram em abril de 2017, mais de 100 pessoas foram mortas e mais de um milhar feridas. Além da repressão maciça, alguns cidadãos venezuelanos têm reportado que foram intimidados na sua participação nas eleições de domingo, convocando uma Assembleia Constituinte para rescrever a Constituição de que o próprio antecessor de Maduro foi parte liderante. No dia do voto, pelo menos mais dez pessoas terão sido mortas em contextos de extrema violência.
Além da repressão letal a todas as manifestações públicas levadas a cabo pela Polícia Nacional Bolivariana e pela Guarda Nacional Bolivariana, a Amnistia Internacional documentou ainda ataques contra comunidades e indivíduos que não participavam em protestos, incluindo rusgas maciças e violentas pelas forças de segurança com veículos armados e uso de gás lacrimogéneo, danificando casas e veículos e pondo em risco as vidas de residentes.
2. Estes ataques têm acontecido em Caracas e também nos estados de Lara, Barinas, Carabobo e Táchira, indicando que tais práticas não se têm limitado a uma zona do país, antes que são muito mais generalizadas e sistemáticas. O aparato de Estado para a repressão e as declarações de responsáveis do Governo, que incluem o próprio Presidente Maduro, às forças de segurança e aos grupos civis pró-Governo, sublinham uma retórica e uma atitude de discurso de ódio que incitam à violência contra todas as expressões de dissidência. Ter fome ou pensar diferente de um Governo, não é ser terrorista. Considerar isso é falhar em toda a perspetiva democrática e continuar a não endereçar os problemas que lançaram a Venezuela numa profunda crise de direitos humanos, a maior na sua história recente.
As autoridades que iniciaram estes mecanismos de repressão, têm de lhes colocar um fim imediatamente.
3. A comunidade internacional e os mecanismos de justiça penal internacional têm de estar atentos ao que se passa naquele país e à crescente instabilidade social para levar os seus responsáveis à justiça. Do mesmo modo, a diplomacia internacional tem de intervir a uma só voz para que esta situação inaceitável, na Venezuela ou em qualquer outro país do mundo, seja imediatamente invertida.
Portugal deve, pelos laços das migrações que tem com aquele país, vigiar e acompanhar especialmente os cidadãos portugueses – como tem feito – apoiando o seu regresso caso seja o desejo destes. Deve apoiar ainda a sua integração no nosso país, definitiva ou até que a estabilidade social regresse à Venezuela, e assim eles queiram lá regressar.
4. Em direitos humanos e em democracia cabem todas as ideologias democráticas. É por isso incompreensível a incoerência por parte de partidos políticos, da esquerda à direita, que perante situações semelhantes – em países diferentes – têm reações diferentes, não consoante a situação, mas conforme tenham ou não afinidades ideológicas com os governos responsáveis por repressão, por violência e por crises injustificáveis.
Primeiro os direitos humanos como base fundamental da sociedade e, neles, a democracia. Cumpridos estes, há lugar a todas as ideologias.
Diretor-executivo Amnistia Internacional Portugal