Ao longo do século XX, enquanto a tradição marxista disseminava pelo mundo a externalização da culpa coletiva como fundamento da ordem moral das sociedades, a velha tradição ocidental resistiu e manteve-se fiel à sua herança freudiana de matriz edipiana, isto é, a consciência da necessidade permanente de expiar um qualquer pecado original cometido pelos próprios.

Trata-se de um percurso histórico milenar que tem na génese um compromisso singular entre a tradição filosófica grega e a tradição religiosa judaico-cristã que se tornou capaz de exorcizar a violência social de modo eficaz. Basta circular por dois países de tipologias distintas (ocidental e não-ocidental), de dia e de noite, ou ambicionar opinar e viver em liberdade para admitir a hipótese da vantagem civilizacional do Ocidente ter no seu âmago uma inigualável maturidade moral que se manifesta no quotidiano. Para além do Ocidente, a morte e a violência andam à solta nas ruas com demasiada frequência ou, estando reguladas, tal conquista tende a dever-se ao sacrifício da liberdade individual.

Todavia, após a II Guerra Mundial (1939-1945) circunstâncias históricas fizeram com que os ocidentais fossem permitindo que o seu saliente sentimento de culpa própria fosse instrumentalizado para desculpabilizar responsabilidades alheias. Na prática, tal significa a assunção progressiva, pelos ocidentais, de culpas que abundam por um vasto mundo não-ocidental. Desde as mais remotas origens à atualidade, com ou sem ocidentais por perto, a culpa endógena é intrínseca à condição humana porque os indivíduos mantêm sempre latentes instintos primários instigadores da violência que necessitam de ser domesticados, função das mais variadas tradições culturais, das ancestrais às contemporâneas.

Daí a contranatura da tradição marxista, talvez por isso tentadora enquanto versão contemporânea do pecado original para os povos «novos». De uma ou de outra forma, a maturidade moral constrói-se ao longo de séculos por cima da consciência do sofrimento próprio (antes da morte do pai fundador) e do sofrimento imposto aos próprios ou a terceiros (após o parricídio), seguido de sentimentos de culpa e remorsos que fundam uma ordem moral viável. Nesse sentido, é mais regra do que exceção a existência de povos sem uma consciência histórica de longa duração sedimentada, cujas elites insistem em espraiar-se em rebeldias infantis ou adolescentes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Enquanto sonha com o crescimento dos demais, o velho paternalismo dos ocidentais fá-los equivaler, no atual sistema internacional, a uma comunidade que proíbe o uso de armas (identitárias) aos seus membros, confisca as existentes e respetivas munições a pretexto de um avanço moral. Porém, essa mesma comunidade toma a iniciativa de legitimar o uso de armas pelas demais comunidades com as quais tem de partilhar a existência, inclusivamente oferecendo às últimas as armas e munições que confiscou aos seus membros.

Esse misto de estupidez e loucura disfarçado de avanço moral, próprio da bonomia de certos idosos, é o retrato dos sistemas de ensino transformados em Cavalos de Troia do Ocidente. Concretizo o argumento a partir de exemplos de um manual escolar. Vigora em Portugal e é do 12º ano, «Linhas da História» (Lisboa, Areal Editores, 2015). Os seus autores são Alexandra Fortes, Fátima Freitas Gomes e José Forte. Mas poderia ser um manual do 9º ano da mesma disciplina, nível de escolaridade ao qual pouquíssimos escapam ao ensino da história.

Sugiro comparações entre a abordagem, por um lado, do nazismo alemão (1933-1945) em que a violência de matriz endógena ocidental é deslegitimada sem hesitações (e bem!) e, por outro lado, do maoísmo chinês (1949-1976) em que a violência de matriz exógena (não-ocidental) obedece a lógicas que a legitimam (e mal!).

Sobre o nazismo alemão ensina-se que «O fascismo era uma doutrina antiliberal e antidemocrática. (…) Os movimentos fascistas perpetuaram-se no poder graças à organização de um sistema fortemente violento e repressivo (…). (…) Os judeus foram deportados para campos de extermínio nos quais ocorreu o genocídio de 11 milhões de pessoas, mortas nas câmaras de gás (polacos, eslavos, homossexuais, ciganos, opositores políticos, prisioneiros de guerra, deficientes). Seis milhões eram judeus» (pp.136, 142 e 147 – I Parte) [sublinhados meus para facilitar a comparação].

De resto, são inúmeras as referências à violência nazi quer nas diversas passagens do texto historiográfico do manual, quer nos materiais de suporte: documentos escritos, imagens, referências a livros, filmes, etc. Seria inviável reproduzir aqui o aprofundamento do estudo do nazismo, cuja violência é didaticamente isolada como um mal em si mesmo, desumano, indesculpável, imoral.

Todavia, deparamo-nos com critérios analíticos «alternativos» quando os alunos passam ao estudo do maoísmo chinês (1949-1976). Neste caso, nem sequer se colocam as hipóteses do regime ser antidemocrático ou de alimentar a ambição de se perpetuar no poder. Paira a insinuação de fascistas e nazis continuarem no poder na Europa, inferência não aplicável ao comunismo na China. O ensino do último parte d’«A nação chinesa foi [ter sido]  mobilizada para um programa de desenvolvimento económico (…)» (p.72 – II Parte). Depois, vem a referência ao período das «Cem Flores» (1957) em que a violência do regime atingiu os que caíram no engodo do convite à crítica aberta, sendo referido que «(…) a contestação cresceu e o governo respondeu com repressão e purgas, em grande escala» (p.72 – II Parte). Sem mais. Não se referem ou mostram cadáveres ou os «laogai», os campos de reeducação e trabalho forçado da República Popular da China.

Adiante explica-se o «Grande Salto em Frente» (1958), iniciativa económica do regime de Mao Tsé-Tung rematada, no manual, em duas palavras singelas: «verdadeiro fracasso» (p.73 – II Parte). Uma vez mais sem referências a cadáveres ou aos «laogai», numa interpretação que se assemelha a uma simples falha nas previsões do défice das contas públicas. Também porque as linhas imediatas conduzem a um final da página com uma representação angélica, através de uma imagem propagandística, do percurso revolucionário chinês. Depois surge a referência à «Revolução Cultural» (1966-1969), orgia ideológica que o manual reconhece que lançou «(…) o caos e a violência no país», mas insistindo em omitir quaisquer outras referências [p.74 – II Parte].

Nada mais sobre a violência comunista na China maoísta. Ao contrário do exercício sobre o nazismo, o referido acima corresponde a uma recolha exaustiva no manual sobre a violência associada ao maoísmo (pp. 72 a 76 – II Parte). E mesmo o que consta é contextualizado em justificados propósitos revolucionários. Não há referências a imagens, livros, filmes, testemunhos individuais de vítimas ou outros materiais que permitam aos alunos isolar a violência comunista como um mal em si mesmo.

A terminar a sequência historiográfica, aprende-se que «Quando Mao morreu, a 9 de setembro de 1976, a China tinha conquistado um papel internacional de relevo. (…) Aos sucessores de Mao coube o desafio de modernizar a China e de integrá-la nos circuitos da economia mundial» (p.75 – II Parte).

Ligando o princípio, o meio e o fim da explicação, a tese transmitida aos estudantes é a do percurso histórico do maoísmo ter permitido atingir um propósito legítimo superior e, desse modo, a violência política retratada acaba objetivamente legitimada.

A condizer, quem ler o livro de fio a pavio continuará a ignorar um dado-chave que os manuais de história não dispensam – e bem! – quando se trata da violência praticada pelos ocidentais: o número de vítimas. Os alunos nunca aprendem que, em tempos de paz, a implementação do comunismo matou cerca de setenta milhões de seres humanos apenas na China e num intervalo de duas décadas, o mesmo número de vítimas de toda a hecatombe que foi a II Guerra Mundial (1939-1945); o mesmo número de vítimas do genocídio de índios aquando da ocupação colonial das Américas pelos europeus, mas ao longo de mais de três séculos; bem mais do dobro do número de africanos escravizados pelos europeus entre os séculos XVI e XIX.

Se articularmos a lição de história de atropelo grosseiro à dignidade da condição humana a subtilezas equiparáveis constantes em manuais de literatura, filosofia, formação para a cidadania, entre outras disciplinas, ratifica-se a conivência dos poderes tutelares de um estado europeu ocidental do século XXI, como outros, com práticas homicidas. Se assassinar o próprio povo em massa tem laivos de virtude, suponho ser bem mais virtuoso e justo o assassínio de brancos ocidentais por não-ocidentais.

Um nojo moral floresce nas salas de aula.