Valerá ainda a pena voltar à questão da hermenêutica orçamental? Como é óbvio, qualquer proposta de despesa para um certo ano deve ser interpretada em função da despesa efectuada no ano anterior: se eu disse que ia gastar 100 em 2016, mas gastei 200, e agora disser que vou gastar 110 em 2017, parece claro que a interpretação mais relevante é aquela que nota uma intenção de cortar a despesa em 90, e não de a aumentar em 10. A comparação entre previsões é irrisória, porque um orçamento parte de uma execução, e não de uma previsão ultrapassada. Sempre foi assim. Mas como esta abordagem não dava jeito ao governo no debate orçamental, o óbvio deixou de ser óbvio. O mais significativo, porém, não foi isso, mas a quantidade de gente que apareceu a tentar acreditar na prestidigitação governamental. Porquê tanta disponibilidade para a inocência?
Porque este governo representa uma grande promessa: a promessa de que a sociedade portuguesa, afinal, não precisará de fazer nenhuma das mudanças necessárias para arrancar o país de uma longa estagnação económica que compromete, a prazo, todas as suas expectativas. Segundo o governo, basta irmos fazendo despesa e dívida. De facto, sabemos que tudo depende de um único factor: de o BCE continuar a financiar o endividamento de que vivemos. É essa a última protecção do país contra uma reacção imediata dos credores à recusa do governo de desenvolver em Portugal um ambiente mais propício para o trabalho, a poupança e o investimento. É a primeira condição deste governo: o imobilismo temporariamente permitido pelo dinheiro barato do BCE.
Mas o oxigénio do BCE requer défices com um certo aspecto. Em que é então este esforço orçamental diferente do anterior? Em tudo: não corresponde a um saneamento financeiro, mas a um projecto de poder. Os actuais governantes esperam controlar o país através do que podemos chamar um “clientelismo de massa”, que compreende o funcionalismo público, os pensionistas de maiores rendimentos e ainda os banqueiros do Estado – uma espécie de “chavismo rico”. A austeridade foi redistribuída de modo a dar aos rentistas do regime uma sensação de segurança, à custa de todos os contribuintes e da degradação dos serviços públicos. É a segunda condição deste governo: a passagem do Estado social ao Estado clientelar.
Com esta carga fiscal e com a erosão dos serviços públicos não deveria haver “agitação social”, como nos tempos da troika? O governo não o espera, porque sabe que a contestação à chamada “austeridade” – isto é, ao ajustamento, sem o qual o Estado teria entrado em bancarrota — nunca foi “social”, mas política, isto é, consistiu sempre no bulício sindical e mediático orquestrado pelo PCP e pelo BE, com o assentimento ou a colaboração do PS. Portanto, um governo do PS que conte com o sindicalismo do PCP e o jornalismo do BE, pode cortar o orçamento da educação sem recear greves ou manchetes contra o “assassinato da escola pública”. É a terceira condição deste governo: a “paz social” simulada pelo PCP e pelo BE.
Sim, este governo é possível e até pode durar mais do que a economia portuguesa. Resta, para quem quiser, acreditar. Acreditar que a economia reagirá à despesa, sem reformas estruturais. Acreditar que bastam o PCP e o BE para haver consenso em Portugal, e que é possível manter o regime demonizando e excluindo dois dos três partidos que votaram as revisões constitucionais e a integração europeia que definiram esse regime. Acreditar, enfim, que basta acreditar.