Quando o PS estava na oposição costumava dizer coisas de esquerda. Quando o PS ganhava eleições e ia para o Governo, contaminado pelo “vírus da fé excessiva nos mercados” — palavras da moção de António Costa — governava à direita. Ou mais à direita. Ou com o socialismo na gaveta. Mário Soares, António Guterres e José Sócrates agiram como a direita (da esquerda) nos seus governos. Agora não. Este foi o primeiro congresso, pelo menos nos últimos 30 anos, em que o PS, estando no Governo, fez um congresso à esquerda. Entrou pela esquerda e saiu pela esquerda, proclamando governar como um verdadeiro Partido Socialista — embora Pacheco Pereira tenha aqui dito que com o Tratado Orçamental, nem os socialistas tinham a possibilidade de governar como socialistas. Com isso os socialistas não concordaram, mas é o que até ao fim do ano se vai ver.
Ao contrário do costume, a oposição interna não foi um grilo falante da consciência do partido, como era Manuel Alegre, avisando para os desvios de direita do primeiro-ministro. Era sempre muito condescendentemente aplaudido. Pela primeira vez (talvez com a única exceção do gamismo) a oposição interna ao secretário-geral surgiu da direita do partido. Na verdade, nem sequer se manifestou uma oposição interna. Foi só Francisco Assis. Sozinho, assobiado e apupado, a queixar-se da “crueldade” da solidão que o deixa perante um partido inteiro contra uma solução “contranatura”. O segurismo desapareceu. Os opositores ou foram absorvidos no Parlamento, no Governo ou nos órgãos do partido ou então ficaram de fora voluntariamente.
Restou Francisco Assis, a marcar o único ponto alto, em que aliás vestiu muito bem a pele de crítico-útil de António Costa, para o líder poder dizer no discurso final que no PS há discordâncias não há dissidências. Assis é o novo Alegre, a chamar a atenção do partido para outros valores. Por exemplo os da Europa. E aqui este congresso deixa outra marca contraditória: a do novo euroceticismo conjugada com o velho federalismo.
Quando o convidado José Pacheco Pereira criticou de forma violenta o momento europeu, disse o que o PS queria ouvir. Foi muito aplaudido. António Costa também afirmou claramente que cumpre as regras, mas é contra. Ana Catarina Mendes chegou a reconhecer, numa entrevista ao Observador, que o Tratado Orçamental é mais limitador do Governo do que o PCP e o Bloco. Isto lança também o PS numa nova fase: a do euroceticismo. Apesar da crise profunda da Europa, que é unânime e palpável, o PS situa-se pela primeira vez fora da maioria europeia, das instituições, dos países e das forças políticas dominantes. O cenário europeu mudou. Mas o PS também.
Costa acabou por ser contraditório, ao propor um avanço federalista, como um orçamento europeu comum, e até usou o exemplo dos Estados Unidos. Portanto, ao mesmo tempo que critica o atual modelo, defende outro que teria como consequência acentuar o primeiro. Se o Tratado Orçamental é mau, imagine-se um orçamento feito a partir de Bruxelas, onde valia de forma férrea o que está no Tratado Orçamental? Se não é confuso, o líder do PS tem de explicar o que quis dizer.
Outra marca deste congresso foi a ausência de referências do líder a questões financeiras no seu discurso final (apenas repetiu que a Comissão prevê para Portugal pela primeira vez um défice abaixo dos 3%). É revelador. É preciso saber ler os silêncios do poder. Mal se pronunciou a palavra “défice”. Costa não se disse condicionado pelas regras europeias, enquanto desfiava medidas como nos bons velhos tempos. Não aflorou sombra de qualquer plano B, apesar de o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ter dito ao Observador que era impossível prometer que não ia aumentar impostos nos próximos seis meses. Ignorou que houvesse problemas na Segurança Social.
Bastou a António Costa dizer que era otimista mas consciente das dificuldades. Poucochinho. É natural que os socialistas venham a um congresso de socialistas dizer coisas socialistas. Mas o líder não deu qualquer conforto a quem tem dúvidas sobre a viabilidade da política de restituir tudo a toda a gente ao mesmo tempo. E essa pode ser uma das fragilidades da sua liderança. O otimismo não faz as vacas voarem. E se Bruxelas apertar o PS pode ter de meter muita coisa na gaveta.
Mesmo com todo este voluntarismo, não se vislumbra uma alteração nas intenções de voto dos portugueses que liberte o PS da “geringonça”. O PS padece do mesmo problema do PSD. Não se percebe como pode tentar uma maioria absoluta. Não teve nem terá. O resultado poucochinho de Costa nas legislativas deve continuar poucochinho. E ninguém — nem Assis — lhe pediu contas. Afinal, se o PS e o país estão reféns da “geringonça” foi porque António Costa falhou a meta que o tinha levado a assaltar o poder a Seguro. Fica para o futuro próximo dependente do PCP e do BE, e quando eles saltarem fora do arco governativo António Costa terá de meter hélices na vaca para ela não se deitar na palha. Isso o congresso não discutiu.
Apesar de tudo, António Costa sai relegitimado. Sai fortalecido. Sai com o partido na mão. Foi um congresso de auto-justificação bem pensado. Justificou-se para agradar às suas hostes e conseguiu. Repetiu coisas que muita gente em casa também terá gostado de ouvir. A política portuguesa também precisava de uma dose disto. Mas não disse uma palavra que pudesse maçar alguém. E isso é preocupante. Foi apenas uma celebração, só com dois momentos altos: a participação especial de Pacheco Pereira e o discurso de Francisco Assis. Foi poucochinho.
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