Todas as histórias de dentaduras são cómicas, e todas  as histórias de enterros ameaçam sê-lo.     Às dentaduras chama-se por vezes dentes postiços, ou dentes falsos.  E naquilo que se enterra há também qualquer coisa postiça ou falsa, como um dente, embora não seja claro o quê, e como.

As dentaduras são falsas em dois sentidos:  são uma imitação de dentes; e são dentes obtidos por meios por assim dizer extra-regulamentares, por meios não-orgânicos.   Um rim congénito é insusceptível de provocar o riso.  Um rim transplantado será cómico apenas em caso de rejeição, mas em todo o caso menos cómico que uma dentadura.   Depois a escala volta a descrescer suavemente: cabeleiras, guarda-chuvas e óculos.

As histórias de dentaduras são quase todas sobre dentaduras que se soltam do sítio onde foram fixadas: cuspidas, engolidas, roubadas ou perdidas.   A falsidade de uma dentadura é exposta sempre que sai do seu lugar; desse ponto de vista a satisfação cómica que sentimos é uma satisfação praticamente moral; a falsidade e a impostura dos costumes do século são expostas sempre que acontece qualquer coisa à dentadura dos outros.

O caso dos enterros parece à primeira vista muito diferente.   O elemento essencial de um enterro é um corpo humano inanimado ou morto.   Em nenhum caso se pode dizer que um corpo inanimado seja um falso corpo; da mesma maneira que um carro que não funciona não deixa de ser um carro, assim um corpo morto é ainda um corpo genuíno, a que acontece estar inanimado.    Um corpo morto não é de modo algum um falso corpo vivo.

A comédia das dentaduras tem a ver com imitação.  Será um corpo morto imitação de alguma coisa?  Há razões para pensar que um corpo humano morto é a imitação de uma pessoa, e nessa medida uma falsa pessoa (a diferença entre um corpo e uma pessoa é que todas as pessoas estão vivas, mas nem todos os corpos estão mortos).   Bem entendido, a palavra ‘imitação’ está aqui a ser usada de modo exagerado, como fazem os filósofos.  Enquanto um dente falso foi feito deliberadamente para passar por dente verdadeiro, um corpo morto não foi feito para passar por uma pessoa verdadeira; e aliás não foi sequer feito. Um corpo morto é no entanto uma falsa pessoa no sentido em que se parece com uma pessoa, mas lhe falta qualquer coisa.   Ao longe pode enganar.

Embora seja normalmente razoável e justificado associar corpos a pessoas, com o tempo acabamos por perceber que existem excepções, nomeadamente no caso dos corpos humanos mortos; e acabamos por perceber que o que vai a enterrar não é uma pessoa: falta-lhe qualquer coisa.   As histórias cómicas sobre enterros são as histórias sobre o momento do enterro em que alguém percebe que afinal não se está a enterrar ninguém.  É por essa razão que as histórias sérias sobre enterros são histórias sobre túmulos vazios.

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