Com mais ou menos TSU, mais ou menos medidas concretas, quantificadas e calendarizadas e mais ou menos princípios genéricos que qualquer um assinaria por baixo, o PS vai fazendo o seu caminho no desenho das propostas eleitorais.
Há lá boas ideias (o documento está aqui). O sistema eleitoral com círculos uninominais, por exemplo. A vontade de reforçar a regulação económica e financeira, tornando-a mais independente dos regulados, é outra, tal como a limitação e segregação do exercício de atividades não-financeiras por parte das instituições de crédito – e aqui vale a pena olhar com muita atenção para as propostas do PS e do Bloco de Esquerda na sequência da comissão parlamentar de inquérito ao BES; o facto de virem de outras áreas ideológicas não deve impedir os partidos da actual maioria de as acolher por mero taticismo ou clubismo partidário.
Há mais. Entre outras, a garantia de que as alterações nos regimes fiscais são feitas apenas uma vez em cada legislatura, “de preferência no seu início”. Num país onde cada Orçamento do Estado facilmente se transforma numa reforma fiscal, esta é uma promessa de estabilidade tributária que os agentes económicos agradecem.
Bem sei que o nosso inferno está cheio de boas intenções eleitorais que nunca passaram disso mesmo. Um parte importante delas perde-se pelo caminho nas curtas semanas que separam a vitória eleitoral da definição do programa do governo e a outra parte vai sendo esquecida ao longo da legislatura.
Mas quero centrar-me hoje nesta proposta: “a sujeição a apreciação e aprovação parlamentar, por maioria qualificada de 2/3, dos programas plurianuais de investimento, com indicação expressa das respetivas fontes de financiamento”.
É mais uma boa ideia. Na prática, pretende estabelecer um autêntico pacto de regime sobre as obras públicas, já que para fazer os 66% de votos no Parlamento será previsivelmente necessário um entendimento que envolva os dois maiores partidos.
Resolve de vez a nossa endémica tendência para avançar com projectos faraónicos, “obras de regime” que rapidamente se tornam um fardo sem sentido para os bolsos dos contribuintes? Não. Basta, por exemplo, recordar como o bloco central se entendeu na construção ou renovação de dez estádios de futebol para o Euro 2004, com uma boa parte deles a estarem hoje às moscas e a pesar nos orçamentos de vários municípios. E como só a absoluta falta de dinheiro matou projectos como o TGV ou o novo aeroporto de Lisboa, onde as divergências entre os dois maiores partidos eram mais táticas do que estratégicas.
Não sendo o antídoto totalmente eficaz para a irracionalidade económica de muitos investimentos públicos é, no entanto, muito melhor do que o que temos agora. A necessidade de compromisso e a co-responsabilização política que daí resulta introduz no processo de decisão de uma parte importante da despesa pública uma natural moderação e, espera-se, maior ponderação.
Mas o que se passou no Largo do Rato, sempre tão avesso a entendimentos com o PSD e com um discurso de total rejeição dos chamados pactos de regime – da Segurança Social à alteração da lei eleitoral, de reformas fiscais às leis laborais – para, de repente, abdicar do pleno poder de decisão numa área emblemática das suas políticas, como é o investimento público, no caso de vir a ser governo?
Não haverá muitas motivações para este súbito ataque de generosidade na partilha de poder político que não sejam uma tentativa de posicionamento num plano de responsabilidade financeira e de reconhecimento da necessidade de um qualquer mecanismo de tutela que o afaste das práticas do costume.
Uma marca comum dos governos portugueses do passado é o vício em despesa pública. Incapazes de reformar, de fazer opções e de colocar a racionalidade à frente da popularidade, sempre resolveram essa dependência quase patológica sacando quantidades crescentes de dinheiro aos contribuintes.
Conscientes disso e percebendo que esse caminho ultrapassou já todos os limites admissíveis, não admira que tentem agora criar mecanismos que lhes imponham um controlo que, só por si, parecem incapazes de conseguir. São uma espécie de “Despesistas Anónimos”, embora saibamos o nome de todos eles. Começam a ter noção da sua dependência – e isso já é, só por si, um grande avanço – mas também da incapacidade para se corrigirem sozinhos.
A disciplina forçada pode assumir várias formas. Ou vem de fora, através das cada vez mais apertadas regras de supervisão orçamental da União Europeia; ou é incluída nos regulamentos internos, legais ou parlamentares. Se não puder ser de outra maneira – e o passado já mostrou como somos incorrigíveis – que seja então assim.
Esta proposta socialista podia até ser alargada a tectos globais da despesa pública que incluam os gastos correntes para além da despesa de investimento. Ou a limites máximos de carga fiscal na economia que, juntamente com os valores máximos de défice público que Bruxelas já vigia, acabariam por limitar os montantes de despesa.
A oposição que habitualmente é feita a estas regras começa pela pergunta: então, e onde fica a política e a margem de manobra de cada governo? As políticas e a saudável diferenciação dos programas partidários ficam no que cada um se propõe fazer com o mesmo montante global de despesa. As combinações para gastar 80 mil milhões de euros por ano são quase infinitas: Saúde ou Defesa? Menos impostos ou mais subsídios? Uma nova estrada ou mais escolas? Mas as escolhas deviam ser feitas dentro desse tecto e não alargando-o sucessivamente para 85, 90 mil milhões e por aí fora, que foi o que sempre aconteceu. Não podemos continuar a beber eternamente para evitar a ressaca.
Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com