É impressionante a quantidade de conclusões que tanta gente consegue tirar do resultado de eleições onde os cidadãos são chamados a escolher 230 deputados arrumados em listas distritais, ideias de um programa eleitoral e um primeiro-ministro para o executar.

A ordem de importância de cada uma destas escolhas é, provavelmente, a inversa. Muitos eleitores conhecem os líderes partidários candidatos à chefia do governo e algumas das suas ideias e propostas, sobretudo as que são mais repetidas durante a campanha eleitoral. Muito menos conhecerão razoavelmente os programas eleitorais e menos ainda saberão indicar o nome de dois ou três deputados que constem da lista em que votaram.

É certo que institucionalmente a votação é para a formação do Parlamento que suporta os Governos e fiscaliza a sua acção. Mas sabemos que na prática a generalidade dos eleitores vota num partido e no seu líder e não em candidatos a deputados que, com elevada probabilidade, não conhece. Os eleitores dizem que votam no “Costa” ou no “Passos”, no “Bloco” ou no “PC” mas nunca ouvi ninguém dizer que ia votar no “Mendes” ou na “Pereira”, que estão algures em terceiro e sétimo lugar de duas listas de deputados.

Votamos para eleger deputados? Sim, mas o nosso sistema foi habilmente construído de forma a que nunca saibamos concretamente qual foi o deputado que elegemos.

Ora, os mesmos políticos que nos impedem desse básico são os mesmos que nestes períodos sabem com uma precisão microscópica qual era a vontade dos eleitores quando votaram como votaram. Como se os cidadãos votassem em chinês e precisassem de tradutor, aí estão as frases começadas por “o que os eleitores quiserem dizer nestas eleições foi que…”. Falaram com eles todos?

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Se saber tudo o que está num voto já é um mistério que, com sorte, o próprio eleitor saberá desvendar, saber o que está em 5.408.805 de votos requer um bocadinho mais de trabalho do que simples adivinhação ou leituras de conveniência. E os inquéritos e estudos que nos permitem saber por aproximação o que vai na cabeça dos portugueses ainda não foram feitos.

A começar pela eterna questão da maioria absoluta.

“Os portugueses não quiseram dar a maioria absoluta a ninguém”. Mas isso resultou de uma vontade colectiva, concertada, consciente, do eleitorado? Os eleitores reuniram, discutiram e saíram dali com a decisão maioritária de “já decidimos, desta vez não vamos dar maioria absoluta a ninguém”? O voto é inorgânico e individual e o seu somatório não revela nenhuma intencionalidade colectiva. O que os inquéritos de opinião nos dizem com regularidade é que uma maioria de eleitores prefere, por regra, governos de maioria. É até provável que cada eleitor, quando vota num partido, tenha a esperança de estar a contribuir para lhe dar a maioria absoluta. Mas na mesa de voto ao lado está outro eleitor a votar, com a mesma esperança, mas em relação a um partido diferente.

Depois há os que olham para as eleições como se fosse um referendo sujeito a escolhas de “sim” ou “não”, “a favor” ou “contra”.

Sobre isto, os tradutores de eleitores têm várias certezas. Que se votou por uma mudança de política. Que se votou a favor de uma política de esquerda. Que se votou para acabar a austeridade. Ou o contrário disto tudo.

Não sei se na assembleia de voto me deram um boletim diferente do que distribuíram a todos os outros eleitores, mas o meu tinha uma lista de partidos e coligações.

Não vi lá nenhuma questão sobre uma “mudança de política”, questão tão complexa que daria um tratado. E mudar de política a favor de qual? Da que nos mantém no euro ou da que defende a nossa saída? Da que respeita as empresas privadas ou da que nacionaliza a banca e outros sectores? Convenhamos que não são questões de detalhe ou capricho.

O mesmo em relação à política de esquerda. A maioria quer uma esquerda democrática e defensora da economia de mercado ou a extremista que não gosta da propriedade privada?

E sobre a austeridade, podem ser mais concretos? Manter cortes salariais e sobretaxa de IRS por mais dois anos, como defende o PS, é acabar com a austeridade? Mas se eles acabarem em quatro anos, como prevê a coligação, já não é acabar com a austeridade? E se for em três anos?

A lista podia continuar.

Mas sabemos, por exemplo, que uma larga maioria votou em partidos (PSD, PS e CDS) que defendem a continuação de Portugal no projecto europeu e na NATO.

Que uma maioria votou em partidos (PS, BE e CDU) que defendem uma igualdade de direitos sem discriminação de orientação sexual.

Que uma minoria votou em partidos (BE e PCP) que querem um perdão forçado da dívida.

Que uma larga maioria votou em partidos (PSD, PS e CDS) que defendem o cumprimento do Tratado Orçamental.

Que a quase totalidade (a excepção é o PNR) votou em partidos favoráveis ao acolhimento de refugiados.

E por aí fora.

Mesmo estas questões, que tendemos a dar como bem arrumadas a partir da leitura dos programas partidários, podem cair pela base com inquéritos de opinião, como Pedro Magalhães sublinhou por estes dias quando recordou dados de 2011 que nos deixam mais dúvidas do que certezas.

E na dúvida o melhor é ler nos resultados o que eles reflectem sem margem para ambiguidades: houve uns partidos mais votados do que outros. Não sabemos muito bem porquê, mas esses dados são objectivos. Ir além disto, para um lado ou para o outro, é tentar torturar os dados até eles dizerem o que queremos. Um voto é um voto. Uma cruz num papel que reflecte a escolha de um partido numa eleição. Ponto.

A propósito, e sem querer entrar no território do Nicolau Santos, lembrei-me da “Lágrima de preta” do António Gedeão:

“Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio”

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com