O caso das dívidas de Pedro Passos Coelho à Segurança Social permitiu-me descobrir uma coisa que desconhecia: quando, há mais de três décadas, no início da minha carreira, trabalhei como profissional independente, devia ter feito descontos para a Segurança Social que nunca fiz. Pelo que percebi da crónica de Ricardo Costa no último Expresso deve-se ter passado o mesmo com ele, também no início do seu percurso profissional.

Eu sei que não tinha antes sido deputado nem sou hoje primeiro-ministro, ministro ou sequer deputado. Sou um comum mortal. Também sei que o desconhecimento da lei não é desculpa, tal como estou a par de todas essas coisas que por aí se repetem. Mas também sei que neste caso, como em qualquer caso político, é necessário distinguir o essencial do acessório e colocar cada problema identificado no seu devido plano.

Vamos a isso, com frontalidade e franqueza.

Primeira questão: geriu Pedro Passos Coelho este caso da forma mais correcta? A resposta é simples: não. Devia ter tido o mesmo discurso do primeiro ao último dia, devia ter procurado esclarecer desde o início aquilo que acabou por esclarecer nas respostas às perguntas dos deputados, devia ter procurado evitar a politização do caso em vez de cair ele mesmo na tentação das comparações.

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Segunda questão: qual a gravidade do seu comportamento? Indiscutível no caso das dívidas à Segurança Social, nenhuma no caso das execuções fiscais. Qualquer cidadão português sabe que só tem a perder se deixar passar prazos e atrasar pagamentos, pois logo a seguir paga também multas, custas e juros. Não tenho nenhuma razão para duvidar (até existe evidência em contrário) que os atrasos que motivaram as execuções fiscais se deveram ou a declarações fora de prazo ou a dificuldades em pagar o que devia no momento certo, uma situação com que muitos portugueses se confrontam amiúde. Estando todas as dívidas liquidadas, não encontro nenhuma razão para achar que um político fica diminuído só porque se atrasou algumas vezes no pagamento ao fisco.

Diferente é o problema da Segurança Social. Parece existir um consenso que ele conhecia a sua obrigação e fugiu a ela. Não creio que possamos ter essa certeza. Por duas razões. A primeira é que a explicação que Passos Coelho é tão fatalmente ingénua que, se fosse falsa, se não fosse sincera, seria supinamente estúpida. A segunda é que, ao contrário do que sucede quando se foge ao pagamento de impostos, a ausência de pagamento daquelas contribuições para a Segurança Social acarreta uma penalidade para o cidadão: perde anos na sua carreira contributiva. Isto é, perde anos na contagem do tempo para a reforma. Não teria sido pois muito inteligente deixar de pagar um valor que na altura era relativamente baixo, entre 77 e 92 euros por mês (hoje a situação é muito diferente e os descontos são muito mais pesados), para ver com isso desaparecer cinco anos na sua carreira contributiva.

Mesmo assim trata-se de um falha grave, uma falha muito comum à época, mas mesmo assim uma falha que é menos compreensível e menos desculpável num ex-deputado.

Terceira questão: em algum momento beneficiou Passos Coelho de um tratamento de favor? Aqui chegamos, finalmente, ao que seria realmente grave. Pelo que se sabe até ao momento, não me parece existir nenhuma evidência que isso tivesse acontecido. Tudo indica que a Segurança Social indicou a Pedro Passos Coelho o valor que tinha apurado em 2007, o único que estaria tratado no seu sistema centralizado, pois foi nessa altura que esses cálculos foram feitos para todos os contribuintes. Em 2007, altura em que Passos Coelho estava muito longe de vir a ser primeiro-ministro, a Segurança Social entendeu considerar para apuramento de dívidas apenas o período entre 2002 e 2007. Fê-lo, ao que se sabe, para mais de cem mil contribuintes. O que ficou para trás não foi contabilizado para ninguém. Foi essa a factura que agora foi apresentada ao primeiro-ministro e este pagou, com juros, mesmo estando a dívida prescrita.

Deveria, mesmo assim, Passos Coelho ter pedido que lhe fizessem as contas ainda mais para trás, até 2000? Deveria. Mesmo que isso representasse cumprir uma obrigação que a máquina da Segurança Social se tinha abstido de exigir a todos outros contribuintes. E devia tê-lo feito não apenas para eliminar qualquer “rabo de palha”, mas sobretudo para ser totalmente coerente com o seu discurso político actual.  

Quanto a alguns documentos que foram este fim-de-semana publicados no Expresso, onde alegadamente essas contas estariam feitas, tenho duas estupfacções. A primeira é o próprio jornal admitir que o documento, apesar de ter o nome de Passos Coelho, se refere a uma empresa sediada no Porto. Se é assim, como depois comprovaria a Segurança Social, qual a relevância da sua publicação? A segunda é documentos internos e sigilosos de organismos públicos, cuja autenticidade os jornalistas têm dificuldade em confirmar, circulem por aí, muitas vezes em blogues anónimos, sem que ninguém se incomode. Hoje servem para denunciar políticos e todos batem palmas, amanhã podem ser instrumentos de chantagem contra cidadãos comuns, e nessa altura talvez todos se indignem, tarde demais.

Quarta questão: porque é que o primeiro-ministro não liquidou a sua dívida logo em 2012, quando foi contactado pela primeira vez por um jornalista? Passos Coelho só enfrentou claramente esta questão nas respostas às perguntas dos deputados. A explicação que dá é, de novo, de uma enorme ingenuidade. O PM entendeu que, ao pagar essa dívida e ao assim contribuir para a sua carreira contributiva, estava a ganhar mais do que a perder, e que isso podia ser visto como um tratamento de favor. Entendeu mal, e quando corrigiu o comportamento, ao segundo contacto de um jornalista, o mal já estava feito. Em política, sobretudo em tempos de crise, não se pode esperar que uma resposta do género “ainda não paguei, mas garanto que vou pagar quando deixar de ser primeiro-ministro” convence quem quer que seja. Foi o que aconteceu, e este é o calcanhar de Aquiles de todo o processo.

Quinta questão: deve este caso ser considerado mais grave por Passos Coelho ter feito campanha contra a evasão fiscal? Este é o argumento central dos moralistas, mas o que faz menos sentido. A obrigação política e moral deste primeiro-ministro, como de qualquer primeiro-ministro, é combater a evasão fiscal e contributiva. É por esse ser um combate ainda incompleto que os portugueses que cumprem as suas obrigações pagam mais impostos do que é razoável – é que pagam-nos também para compensar os que lhes escapam. Como primeiro-ministro, em crise ou sem ser em crise, Passos Coelho devia, deve e deverá combater a evasão fiscal.

Erros cometidos no passado, mas entretanto corrigidos, não se tornam mais graves se, anos mais tarde, se tem de combater esses mesmos erros. É por isso que o problema de Passos Coelho não é moral, é político: perdeu autoridade, ficou, como se costuma dizer, ferido na asa.

Mas há mais, e na minha perspectiva mais grave: o Estado português, por norma (há excepções e melhorias nos serviços fiscais, por exemplo), não se comporta com os contribuintes como uma pessoa de bem. Primeiro, porque as alterações legislativas são tão frequentes que até os profissionais têm dificuldade em entendê-las e segui-las, sendo que muitas vezes os serviços nem sabem interpretá-las. Depois porque o Estado dispara primeiro – fazendo penhoras, por exemplo – e avisa depois, muitas vezes sem sequer ter razão. Ora as reformas que fixaram por fazer em toda esta máquina pública, que nos últimos anos só se tornou mais draconiana e implacável, eram da responsabilidade de Passos Coelho, e aí, numa relação mais séria, mais equilibrada e, nalguns casos, mais humana dos serviços públicos com os cidadãos a situação até se agravou.

Quinta questão: casos como este fazem de todos os políticos um bando de malfeitores? Não, não e não, por mais que isso seja repetido nas redes sociais, nas caixas de comentários e até nos fóruns radiofónicos. Há uma enorme, uma gigantesca diferença entre falhas e erros nos deveres contributivos para com o Estado e utilizar esse mesmo Estado e o poder que nele se tem em proveito próprio. Atrasar o pagamento de um imposto não é o mesmo que praticar ou promover uma fraude fiscal. Falhar o pagamento de contribuições para a segurança social não é o mesmo que obter comissões em negócios ilícitos e enriquecer despudoradamente à vista de todos. Há políticos portugueses que já foram condenados por corrupção, outros que estão acusados de crimes graves. Felizmente não são a maioria, pelo contrário.

Meter tudo no mesmo saco e indignar-se quando alguém recorda as diferenças não é apenas próprio de quem gosta de navegar em águas turvas, é também sinal de uma hipocrisia politicamente orientada.

Sexta questão: até que ponto devemos ser exigentes com os políticos e exigir uma total transparência das suas vidas? Temos de ser muito exigentes. Temos mesmo de ser muito mais exigentes do que com os cidadãos comuns. E eles, porque são figuras públicas que desfrutam de uma posição de poder, têm de aceitar que há, como dizem os juristas, uma “compressão do direito à reserva da sua vida privada” (não da vida íntima). São por isso obrigados a dar mais explicações e a ser mais exemplares no seu comportamento cívico.

Devemos contudo ter consciência que só há dois tipos de políticos aparentemente perfeitos e sem falhas: os betinhos com alma de manga-de-alpaca, que nunca serão capazes de inspirar ninguém e só sabem fazer carreiras certinhas e cuidadosas, e os verdadeiros vigaristas, pois estes são especialistas em apagar o rasto não apenas dos seus erros, mas também dos seus crimes. É por isso que prefiro políticos mais normais, porque mais humanos – desde que sinceros e capazes não só de assumirem os seus erros como, sendo necessário, de pedir desculpa, algo que não me recordo de Passos Coelho já ter feito neste caso.

É por isso que, sendo exigente e considerando que o carácter não é um detalhe quando falamos de um dirigente político, tenho perfeita consciência que não podemos passar o dia a lamentar já não termos políticos como Churchill e, todos os dias, criarmos condições para que nunca mais alguém com tantos defeitos como ele possa algum dia ascender à liderança de uma grande ou de uma pequena nação. Como em tudo, é necessário equilíbrio: o mundo de hoje é mais exigente, o que é bom, e as opiniões públicas são muito mais vorazes, o que nem sempre é bom, mas isso não pode tornar-se no único critério político, no único tema de discussão pública. Seres assépticos e bacteriologicamente puros podem ficar bem nas fotografias, mas não são os que precisamos em tempos difíceis.

Sétima e última questão: onde é que isto tudo nos leva? No final da semana passada o PS começou a falar de “luta de lama” e, depois de conhecidas as respostas do primeiro-ministro, remeteu o caso para o julgamento futuro dos eleitores. Os cínicos dirão que só o fez porque entretanto começaram a pairar dúvidas sobre possíveis casos que envolvessem o seu líder, António Costa. Eu prefiro, desta vez, não ser cínico e acreditar que o PS percebeu que não havia neste caso gravidade nem dimensão para deixar que a discussão política passasse para outros níveis, ao contrário do que continuam a pretender o PCP e o Bloco.

Olhemos para a vizinha Espanha e vejamos o que se está a passar. É possível que, nas próximas eleições, o sistema político que assegurou a transição para a democracia e a integração europeia impluda, e não apenas porque a crise sacrificou muitos espanhóis. O que está a minar os grandes partidos é a percepção de que estes estão tomados por corruptos e formam uma oligarquia intocável – “la casta”, como demagogicamente se lhes refere o líder do Podemos.

Portugal não está na mesma situação, mas não nos faltam casos realmente graves, processos e escândalos intoleráveis, para que qualquer político responsável saiba que caminha sobre brasas. Criar ou deixar criar na opinião pública a percepção de que “são todos iguais”, quando não são e se sabe que não são, é abrir caminho aos que, colocando-se contra o regime, podem surgir como redentores, e não como os demagogos que realmente são.

É bom saber distinguir o essencial do acessório. É preciso separar os erros, mesmo os mais condenáveis, dos crimes. E não confundir a necessidade de transparência com exigências demagógicas e voyeuristas.

Já vi, com tristeza, compatriotas meus elegerem alegremente políticos que sabiam duvidosos (e que até acabaram presos) sem especiais estados de alma. Mas, neste caso, não penso que o julgamento sobre Passos Coelho deva incidir sobre descontos que não fez há mais de dez anos, antes sobre as reformas que deixou por fazer nestes quatro anos – e também sobre as que fez e a forma como a sua teimosia foi, em certos dias mais complicados, uma virtude. Esse é o debate que conta. O debate que terá como outro protagonista António Costa.