Todos os seres humanos gostam de ter boas surpresas. Mas há seres humanos que nunca nos surpreendem. Nunca nos fazem duvidar que fazem parte daquele grupo de gente para quem os fins justificam os meios. Quaisquer meios, mesmo os golpes baixos.

Augusto Santos Silva, figura central dos anos de chumbo do socratismo, fez o favor de nos recordar, em texto no Diário de Notícias, como se pode ser baixo na política. Como se pode tratar de atropelar tudo e todos em função de um poder (que, no caso, se perdeu) e de um ego (que, no caso, não parece ter limites).

O que esteve, o que está em causa é a polémica entre o antigo ministro socialista e o director de informação da TVI, Sérgio Figueiredo. Não me interessa, não creio ser útil, entrar nos detalhes da controvérsia. Basta recordar que a TVI decidiu dispensar os comentários de Augusto Santos Silva, substituindo-o na antena por outro socialista, Fernando Medina, e que aquele andava há semanas a fazer acusações de censura à televisão de Queluz. Sérgio Figueiredo, que se manteve em silêncio durante várias semanas, entendeu esclarecer o que se passou na sua mais recente coluna de opinião no mesmo DN. O jornalista conta uma história longa, mas fácil de resumir: Augusto Santos Silva (ASS) foi dispensado pela TVI não por qualquer vontade de calar as suas opiniões, mas por ser mal-criado. ASS fez-nos agora o favor de confirmar esse julgamento. Quem pudesse duvidar do seu carácter e daquilo a que a minha avozinha chamava “falta de chá em pequenino”, fica sem dúvidas.

E por aqui ficaríamos não fosse todo este episódio muito revelador. E não nos tivesse este texto recordado o tipo de práticas políticas autoritárias que caracterizaram o consulado socrático, de que ASS foi um dos expoentes, porventura um dos arquitectos ao integrar o núcleo político dos seus governos. Como essa tinha não desaparece facilmente, como ainda não nos curámos de todos os males que o estilo de fazer política causou ao país e à sua cultura democrática, vale a pena perder algum tempo com a diatribe de Santos Silva.

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E começa por valer a pena pois ela não é apenas arrogante e desproporcionada: é também um exercício de manipulação, um exercício bem típico do que fazia o nosso dia-a-dia no tempo em que ASS foi passando por quatro ministérios diferentes (sim, é verdade: custa a crer, mas ele foi, sucessivamente, ministro da Educação, da Cultura, dos Assuntos Parlamentares e da Defesa, um verdadeiro político todo-o-terreno).

Apenas um exemplo, para mostrar o estilo deste nosso “animal político”. A certa altura, ASS cita Sérgio Figueiredo: “no mesmo dia em que [Santos Silva] reagia […] aceitando conversar, decidiu fazer um comentário público na sua página do Facebook”. A partir desta citação, transforma “o mesmo dia” num “depois”, discorrendo a seguir sobre horas de mails e de post no Facebook. Tudo para concluir: Sérgio Figueiredo é “mentiroso”. Porquê? Por algo que Sérgio Figueiredo não escreveu mas ASS sugere que escreveu.

Esta forma de procurar distorcer a verdade manipulando ou descontextualizando frases era uma das especialidades dos “spin doctors” do socratismo. ASS não a esqueceu nem a desmerece. O que Sérgio Figueiredo contestava era a forma de actuação do político, que trouxe para a praça pública do Facebook, com acusações e ataques, uma discussão que esse mesmo político começara em mails privados. A boa educação recomendaria que aí se mantivesse até que as partes esclarecessem o que tivessem a esclarecer. Santos Silva preferiu antes passar ao ataque, cinicamente alegando que o fazia em legítima defesa. Assumidamente considerando que, mesmo antes de qualquer ruptura, nenhuma lealdade era devida para a estação que o convidara para colaborador e lhe dava palco.

A desfaçatez com que o faz é tal que nem lhe ocorre que basta ler o texto atentamente para perceber que Sérgio Figueiredo nunca o acusa daquilo que se diz vítima, isto é, de ter colocado um post no Facebook “depois” da sua resposta ao mail de ASS, apenas de ter feito isso no “mesmo dia”. Mas é uma desfaçatez coerente com a forma como ASS via a sua colaboração na TVI: aquilo era a sua rubrica. Dele. Só dele. Não de Paulo Magalhães, que lhe fazia as perguntas e, assim, é reduzido à condição de palhaço ou de capacho (não sei qual a pior). Muito menos era uma rubrica da TVI. E, sendo dele, nenhum motivo de actualidade poderia alterar o seu horário ou formato, mesmo sendo a TVI24 uma estação cuja razão de ser é… a actualidade.

Não me surpreende esta forma de pensar e actuar. Não devia surpreender ninguém: foi regra durante os seis anos do quero, posso e mando em que ASS colaborou, esses anos que só terminaram em 2011, com o país no estado que se conhece. E ainda me surpreende menos porque conheço a má relação que Augusto Santos Silva tem com a liberdade de informação e a autonomia dos jornalistas. Já tive de lidar com ela, vivia-a na pela, tal como muitos outros jornalistas.

Não esqueço, por exemplo, que enquanto foi ministro da Educação se opôs tão ferozmente ao acesso da imprensa aos rankings das escolas que, mesmo depois de uma deliberação da comissão que regula o acesso ao dados da administração pública, decidiu desobedecer-lhe (esse acesso só foi possível porque António Guterres o substituiu, em boa hora, como ministro da Educação). Também não me esqueço da tenebrosa proposta de alteração do Estatuto do Jornalista, uma proposta que violaria grosseiramente direitos de informação e sigilo profissional, uma proposta que na sua versão mais gravosa só não foi por diante porque o Presidente da República a vetou. Na altura escrevi que esse estatuto “configurava um dos mais violentos ataques à liberdade de informação em Portugal desde o 25 de Abril” e voltaria a escrevê-lo se necessário.

Há quem não tenha memória – mas eu tenho. Por isso também me recordo de um jantar onde Francisco Pinto Balsemão, dirigindo-se directamente ao ministro, que estava presente, considerou toda a legislação que ele estava a preparar configurava uma “flagrante e constante insistência em proibir, travar, limitar, burocratizar, impedir a adaptação e o aproveitamento, pelas empresas e pelos profissionais, da revolução em curso”, isto é, da revolução digital. Como não me esqueço que o seu objectivo, enquanto ministro, era acabar com “o jornalismo de sarjeta”, como se isso fosse missão do poder político, como se disso não pudessem resultar as mais indiscriminadas formas de censura.

Mesmo assim há algo que aprecio em Augusto Santos Silva – a ausência de disfarces. Ao terminar o seu texto, escreve que “não faltam servos e cúmplices ao tiranete, quando está no topo”, o que faz com conhecimento de causa, pois tem disso experiência e honra. Mais: fá-lo com substância ao mostrar como, em Portugal, continua a haver políticos que acham que os jornalistas só podem estar ao seu serviço, que a verdade é apenas aquela que lhes convém e que a melhor atitude é ser como um animal feroz. Bem haja por isso. Bem haja por nos refrescar a memória. Bem haja por nos ajudar a perceber que o passado está sempre desejoso de regressar.