“Governo cria incentivos para senhorios terem estatuto de “cariz social”. Ministério quer convencer privados a praticar rendas acessíveis às classes média e média baixa, mais atingidas pela crise, revela o secretário de Estado Adjunto e do Ambiente, José Mendes.” – Lia-se na versão online do PÚBLICO.
Na versão em papel, o destaque da capa ia também para este propósito governamental: “Governo prepara ajudas para envolver privados nas rendas sociais. José Mendes, secretário de Estado Adjunto e do Ambiente, quer avançar com a figura do senhorio de cariz social. Em estudo estão incentivos para aumentar a oferta de casas às famílias de menores rendimentos.”
Deixando de lado a subtileza que leva a que numa versão os senhorios sejam envolvidos e na outra convencidos, cabe perguntar: o senhor secretário de Estado está a brincar? Ou mais propriamente a gozar, não é verdade? Suponha que alguns proprietários se sentem convencidos ou envolvidos pelas suas palavras e resolvem tornar-se “senhorios de cariz social”, tanto mais que o cariz social liberta os senhorios do odioso de serem senhorios. Quem garante, senhor secretário de Estado, a esses senhorios que daqui a uns meses o Governo perante, por exemplo, a saída de pessoas dos bairros sociais ou municipais para estes arrendamentos, não rompe o que assinou com eles? Afinal foi isso mesmo que aconteceu aos colégios que tinham celebrado acordos com o Ministério da Educação e que, de um dia para o outro, precisamente por causa do seu sucesso, viram esses acordos atirados para o caixote do lixo e os seus alunos coagidos a seguir para as escolas da rede pública.
Quem garante a esses “senhorios de cariz social” que, perante uma autarquia que acabou de construir mais um bairro social, os seus inquilinos não são transferidos para lá? Ou que de um momento para o outro as praças de Portugal não se enchem de cartazes a dizer “Onde há habitação pública não se paga a senhorios” ou “Habitação pública. Habitação de qualidade. Habitação com dignidade”? E sobretudo está o senhor secretário de Estado em condições de afiançar que no meio das declarações da arquitecta Roseta em prol da cidadania, mais as contas do economista Eugénio Rosa, sem esquecer as associações de inquilinos, não acabam estes (e os outros) senhorios com as suas casas num imbróglio jurídico em que são proprietários unicamente para pagar impostos e ser insultados?
Para agravar a situação, os senhorios, ao contrário do que está a acontecer com os colégios com contratos de associação, não têm nem dimensão nem estruturas que lhes permitam enfrentar uma decisão unilateral por parte de um Governo. Este ou outro qualquer. Mas acontece que no caso deste Governo as decisões unilaterais (que nos demais governos se criticam e contestam) são intrínsecas à natureza ditatorial de alguns dos partidos que o apoiam – o BE, o PCP e os Verdes – e indissociáveis das contingências de um executivo derrotado pelos números e a quem consequentemente o Diário da República surge não como veículo regulador do país mas sim como criador de um país-propaganda.
Assim, mesmo que a ideia dos “senhorios de cariz social” fosse interessante, quer para os senhorios quer para os inquilinos – já lá irei mas acreditem que ainda é menos interessante para os inquilinos, sobretudo para aqueles que querem mudar de casa ou ainda não alugaram casa – como podem os proprietários arriscar investir (e repito que, no caso do imobiliário, estamos perante pequenos proprietários para quem o risco é sempre maior) num país em que por puras razões ideológicas o Estado rompeu os contratos que tinha na área da da Educação, apesar de os resultados dessa parceria serem indiscutivelmente bons? Ninguém que esteja de boa-fé, a fazer contas para pagar impostos, taxas e manter edifícios põe um euro de seu num negócio destes, sobretudo quando corre o risco de se tornar no próximo bombo da festa do “não transigimos”, do “ousamos”, do “vamos enfrentar”… Que confiança se pode ter para fazer acordos com o Estado quando uma pletórica Catarina Martins anuncia que é chegada a vez de fazer na saúde o que já se fez na educação?
Os senhorios não têm bispos por eles, como acontece com os colégios com contratos de associação. Nem grandes investidores, como os há na saúde. Nem sequer conseguem transferir para outros os ónus das medidas de propaganda governamental – como fizeram, por exemplo, as empresas produtoras de electricidade quando confrontadas com o disparatado, ambiental e socialmente falando, alargamento da tarifa social de electricidade.
Desde certificados energéticos que não servem para nada – a não ser claro para assegurar o pagamento dos mesmos – à taxa municipal de protecção civil inventada em Lisboa, sem esquecer o IMI da paisagem, o proprietário de imóveis está, em Portugal, nas mãos da voracidade fiscal e devaneios ideológicos do legislador. As quotas para alojamento turístico e o “senhorio de cariz social” são apenas o último capítulo desta espécie de crónica do desastre anunciado. Aliás a história do arrendamento é, em Portugal, uma lição viva sobre as consequências das políticas ditas sociais nas mãos de um legislador preconceituoso e ignorante.
As rendas foram congeladas em Portugal em 1910. Daí até 1976 não mais se deixou de produzir legislação sempre apresentada como visando proteger os inquilinos: em 1914, instituiu-se a obrigação penal de arrendar casas devolutas. Em 1918 invoca-se o estado de guerra para mais uma vez impedir o aumento das rendas. Em 1919, a guerra já tinha acabado mas em Portugal o congelamento das rendas foi prolongado. Em 1920, 1928, 1943 e 1948 sai legislação a permitir actualização das rendas mas não só os coeficientes aprovados são muito inferiores ao aumento do custo de vida como rapidamente se revogavam os aspectos mais liberalizantes desta legislação. Em 1969, um estudo encomendado pelo ministério da Justiça, concluía que as rendas estavam entre um quinto a um quarto do valor que teriam se acompanhassem a desvalorização da moeda.
Em 1974 as rendas são congeladas de novo. Em 1975 legalizam-se as ocupações de casas, obrigando os respectivos proprietários a celebrarem contratos de arrendamento com os ocupantes. E em 1976 temos até um espantoso decreto que estabelece os direitos dos hóspedes em caso de morte do inquilino-senhorio pois a perversão do mercado de arrendamento gerara um negócio florescente de alugueres de quartos e partes de casa: aqueles que tinham conseguido arrendar uma casa passavam a subalugar (muitas vezes por valores muito superiores aos que eles pagavam de renda pela totalidade da casas aos respectivos senhorios) quartos e partes de casa a hóspedes. Graças à legislação de 1976, esses hóspedes não só podiam agora tornar-se inquilinos de facto como o seu direito a um novo contrato de arrendamento suplantava o do senhorio que necessitasse do local para habitação própria.
Ironicamente tanta protecção aos inquilinos levara a que as casas para arrendar praticamente desaparecessem (entre 1981 e 1991 o número de arrendamentos quase caiu para metade, passando de 1 074 590 para 545 710) e gerou até novas formas de conto do vigário: na secção de anúncios de alguns jornais publicitavam-se sem morada casas para alugar. O contacto era apenas um telefone. Uma vez feito o contacto marcava-se a visita à casa. Mas primeiro, e apenas para ver a casa, era necessário dar o equivalente a, pelo menos, uma renda. Como a procura era muita havia sempre quem arriscasse. Invariavelmente, no dia e na hora marcados para ir conhecer a casa não aparecia ninguém.
Entretanto e à medida que o centro das cidades envelhecia – Lisboa e Porto estão à cabeça da lista das cidades da União Europeia que mais se despovoaram entre 1999 e 2005 – as periferias cresciam. Sem mercado de arrendamento, pedir empréstimo para comprar uma casa tornou-se na peça obrigatória do enxoval de milhares de jovens a partir dos anos 80. Do lado dos bancos o negócio era óptimo: seguros e cartões de crédito vinham associados ao empréstimo da casa… Quanto aos construtores, a vida não lhes podia correr melhor: o valor das casas aumentava entre 6% a 7% ao ano, um valor muito superior ao da inflação. Eram os tempos em que a prestação que se pagava ao banco quando se pedia dinheiro para comprar uma casa era frequentemente mais baixa que a renda que se pagaria caso se tivesse equacionado alugar essa mesma casa. Várias isenções fiscais transitórias adiavam o momento em que os custos de ser proprietário se fariam sentir. Integrar carro e mobília no cálculo do empréstimo da casa tornou ‑se também prática corrente…
Depois sabe-se o que aconteceu: em 2011 não se encontrava comprador para as 350 mil casas que estavam à venda no país. O seu valor, tal como a sua procura, começam a cair acentuadamente. Nas negociações com a troika a recuperação do mercado de arrendamento surgiu como vital. E mal o Estado abandonou (apenas em parte, é certo) o seu propósito de fazer política social à custa dos senhorios o mercado de arrendamento mexeu. Reabilitaram-se prédios antigos, alugaram-se casas novas que não se conseguiam vender. Ganhou-se mobilidade.
Desiluda-se quem pense que daí os estatistas tiraram alguma conclusão, pelo contrário, voltaram como se não tivessem quaisquer responsabilidades na matéria. Agora pretendem alertar para o problema do alojamento turístico (que antes nessas casas agora alugadas a turistas só residissem pombos e ratos não lhes dá que pensar). Segue-se agora, segundo leio no PÚBLICO, o problema (eles não conseguem viver sem se imaginar a resolver problemas!) das “famílias de classe média e média baixa que têm vindo a ser cilindradas pela crise e que, não cumprindo os requisitos para aceder a um fogo social, têm dificuldades em suportar os custos de uma habitação condigna.”
Para acudir então às famílias de classe média e média baixa pretende o Governo criar agora a figura do “senhorio de cariz social”. Recordo que a pensar nas casas da classe média (não sei se baixa se apenas média) o primeiro-ministro já anunciara a afectação de verbas da Segurança Social à “reabilitação urbana que dinamiza a economia e rendas acessíveis que servem o acesso à habitação por parte da classe média”…
Já chega de disparates, não? Se o Governo quer apoiar a classe média ou média baixa (ou ambas. Ou até a média alta, a alta e quem mais lhe aprouver) cobre-lhes menos impostos ou dê-lhes um subsídio para habitação. Mas deixem o mercado de arrendamento em paz.