Estalou a polémica à volta do novo disco dos Mão Morta (que ainda não saiu), nomeadamente devido ao videoclip do seu single, “Horas de Matar” – no qual Adolfo Luxúria Canibal mata a tiro figuras representativas do poder (políticos, banqueiros, padres). Algumas reacções podem ser lidas aqui (entre as quais se recomenda, pelo seu equilíbrio, a de Pedro Mexia). Afinal, será arte, política ou um apelo à violência? Não interessa. Esse debate está gasto. Já se fez dezenas de vezes a propósito de artistas tão variados como Aerosmith (“Janie’s got a gun”, música sobre uma menina que armada de uma pistola se vinga do pai pelos abusos sexuais), The Cure (“Killing an Arab” foi o primeiro single da banda), The Smiths (“The Queen is Dead” foi recebido como um ataque à família real) ou Marilyn Manson (acusado de incitar ao satanismo com o disco “Antichrist Superstar”) – sem falar de quando são os próprios géneros artísticos a serem postos em causa, como aconteceu com o black metal na Noruega e, timidamente, como acontece em relação ao rap nos EUA.

A pergunta que importa não é, portanto, se se trata de arte ou de um apelo à violência. É antes esta: por que razão o vídeo dos Mão Morta se tornou polémico?

O facto tem algo de irónico, talvez até de hipócrita. É que convivemos diariamente com violência na política e não se geram tamanhas reacções, muito menos metade das indignações. Ouvimos os apelos de Soares ao uso legítimo da força contra o governo. Lidamos com os Capitães de Abril a pedir um levantamento revolucionário nas ruas. Vemos elementos do movimento “Que se Lixe a Troika” a perseguir ministros e responsáveis políticos em eventos públicos e sem carácter político. E escutamos diariamente a linguagem belicosa do PCP (o “pacto de agressão”, o “combate”, a “luta”, a “revolução”, “derrubar o governo”), sempre no limite da chamada às armas ou, às vezes, mesmo para além dele, apelando à acção política nas ruas. Tirando um caso ou outro, tudo isto acontece sem que alguém se queixe. É a nossa normalidade. E, no meio dessa normalidade, só os Mão Morta são uma banda rock. Os outros estão mesmo a fazer política.

Há ainda um outro aspecto interessante nesta polémica. Não há nada na canção dos Mão Morta que seja propriamente novidade face ao que a banda tem feito nos últimos 30 anos. Mantêm-se fiéis ao seu universo de decadência urbana, de opressão política, de transgressão e de violência – eles que têm músicas como “Anarquista Duval”, “Charles Manson”, “quero morder-te as mãos”, “teoria da conspiração”, “cárcere”, “morgue”, “cadáver”, cão da morte”, “combate”, “ventos animais” e “destilo ódio”. E mantêm-se fiéis ao seu rock pesado, apresentado não raramente na forma de disco conceptual, com videoclips explícitos – foi o caso de “Primavera de Destroços” (2001), um disco localizado entre a cidade e o subúrbio, de “Mutantes S.21” (1992), disco em que cada canção tem um nome de cidade, ou de “Maldoror” (2008), quando transformaram em disco e em espectáculo ao vivo os contos do Comte de Lautréamont. Ou seja, o novo disco não tem nada de surpreendente e, sobretudo, nada que nos faça crer que, desta vez, se trata de um inédito incentivo à violência.

Assim, o que esta polémica nos vem recordar é o quanto somos menos livres do que pensamos. E o quanto fomos mais livres. Há dez anos, isto não seria assunto. Hoje, o vídeo é polémico porque, entre a imposição sempre latente do politicamente correcto e a importância desproporcional que atribuímos às redes sociais, por tudo e por nada, com três partilhas e dois likes, se lança uma indignação viral. Pior é não nos apercebermos o quanto estas tendências e polémicas nos prejudicam – quantos, com medo deste efémero escrutínio virtual, se auto-censuram para encaixar em padrões artísticos ou, por exemplo, no cânone da opinião publicada? Demasiados. Está, portanto, na hora de matar estas polémicas.

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