Ganhámos. Ganhámos finalmente. Contra a França e em França, ultrapassando o trauma de 2000, aquele que a mão de Abel Xavier impôs sobre a nação. A euforia tomou conta dos corações. Não, isto não é só sobre futebol. Aliás, nunca foi apenas sobre futebol. Sabe quem vibra no estádio que no relvado se joga um país, que se partilha a emoção com o vizinho, que se defende uma identidade e um sentido de pertença, que se afirmam as raízes de um povo que se sente global. Sim, o futebol por cá é um tema sério. Um assunto de Estado, que define os termos do patriotismo e que até coloca o Presidente da República no flash interview. Sim, a febre futebolística faz dos jogadores nossos heróis, para inveja dos políticos, elevando-os a verdadeiros representantes da pátria. E, por ser vivida com tanta intensidade e por todos, a Selecção espelha também algo acerca de nós.
Primeiro, o que sempre fomos: uma nação plural, cujo ADN reproduz em afectos o império que o poder político nunca teve legitimidade para construir – onde pretos, mulatos, brancos, ciganos e estrangeirados (do Brasil, da Venezuela, de Macau, de Dili, de Goa, de toda a Europa) partilham espaço sem reservas. Pepe nasceu no Brasil, Adrien e Raphael Guerreiro em França, Quaresma é cigano, Ronaldo madeirense, Renato Sanches e Nani têm origens em São Tomé e Cabo Verde. Qual 11 milhões, qual quê. Portugal só é pequeno no mapa.
Segundo, a Selecção recorda-nos o que não éramos mas já somos: um país escolarizado, menos dependente do acaso ou do talento, mais conhecedor dos seus limites, mais capaz de trabalhar estrategicamente para contornar as adversidades. Nas últimas décadas, o que mudou no país e no futebol português não foi o talento dos nossos jovens jogadores – continuamos a ter os melhores jogadores do mundo, de Eusébio a Figo a Cristiano Ronaldo. O que mudou foi a educação. E foi o que fez a diferença entre o antes, quando a Selecção falhava quase todas as grandes competições, e o agora, em que se frequenta os grandes torneios sucessivamente e se alcançam bons resultados com regularidade. Desde a década de 1980, Portugal deu um salto qualitativo nos seus indicadores de escolaridade – democratizou o acesso à escola, combateu o abandono e o insucesso, elevou índices de desempenho escolar – e produziu sucessivas gerações de jovens cada vez mais qualificadas. E foi igualmente nesse período que as academias dos clubes integraram a escola na formação dos jogadores, preparando-os para os desafios do desporto em alta competição e para a vida. Os jovens da actual Selecção nacional são o produto dessa vitória do sistema educativo. Também aí, representam Portugal.
Por isso, ganhámos agora com uma equipa mediana no papel e em que ninguém acreditava, porque esta compreendeu e cumpriu as indicações do seu treinador. E não ganhámos antes, quando as gerações de ouro se sucediam mas não produziam resultados, sucumbindo à organização das equipas alemãs, francesas ou italianas. Ganhámos agora que, nas academias dos clubes, se investe e se prepara o futuro. E não ganhámos antes, quando uma carreira desportiva na alta competição pressupunha o abandono da escola, a limitação táctica dos jogadores e a condenação dos craques que, ao arrumarem as chuteiras, ficavam com a vida tramada – como aconteceu a Cadete (Sporting) e a Veloso (Benfica) nesses tempos em que Vítor Baia (FC Porto) era um intelectual por ter concluído o ensino secundário. Ganhámos agora que, nas conferências de imprensa, os jogadores se explicam em português correcto, discutem as tácticas, gerem a pressão mediática. E não antes, quando o quase analfabetismo dos atletas compunha o anedotário nacional.
Dizia-se que faltava estrelinha de campeão. Engano. O ponto nunca foi a sorte ou o azar. Foi que, antes, o jogador médio português estava efectivamente menos apto do que os seus adversários para a complexidade táctica do jogo, para a criação de rotinas no treino e para a execução de planos de jogo. Portugal sempre foi mistura de fado com samba, de morna com chanson française, do talento natural de Eusébio com a geometria inata de Rui Costa. Isso levou-nos longe, mas sempre aquém das nossas aspirações. Hoje, sob a liderança de Fernando Santos, a Selecção é talento mas também estudo, rigor e trabalho táctico. Há 20 anos, tal coisa seria impossível. Hoje, foi possível. E era isso que nos faltava para vencer.