O Dr. António Costa achou lamentável que houvesse “aproveitamento político” em cima do drama dos fogos. Eu teria achado bem se isso não tivesse sido uma tentativa de desviar a atenção do que não corre bem, do que não pode esconder, das ineficiências de um Estado que não consegue, nem quer, corrigir. Teria sido ainda melhor se o seu desejo tivesse sido seguido pelos camaradas, compinchas, apaniguados, aliados e compadres que não têm feito outra coisa que não seja culpar os Governos anteriores, desde que não da “esquerda”.
Eu estava lá, no Penhascoso, no dia 16 de agosto, quarta-feira da semana passada. Passo lá férias, em casa de família. Estava lá quando ficámos cercados, em menos de 15 minutos, por fogo florestal. Num momento estava a quilómetros. Era sobrevoado por aviões e helicópteros que descarregavam água, a baixíssima altitude, em manobras arriscadas. Tão arriscadas que neste domingo acabaram por tirar a vida a mais uma vítima dos fogos que têm assolado Portugal. Mais um dos heróis de que nos temos de lembrar.
Logo de seguida, como se tivesse vindo a perseguir o carro da judiciária que atravessou a aldeia na alta velocidade das strobe lights, caiu por de cima da encosta. Rapidíssimo. Fogo, com labaredas maiores do que muitas vezes a altura de um eucalipto. Sem saída. Serra, Quixoperra, Mação, Mouriscas, Casal da Barba Pouca. Estes nomes não dirão muito à maioria dos leitores, mas são os destinos das cinco estradas que saem da aldeia do Penhascoso, um cruzamento de vias florestais. Todas as estradas, as cinco, ficaram cortadas.
A população ficou onde estava, nem se tentou pôr a caminho. Ouvia-se dizer, “em Pedrogão morreram os que se fizeram à estrada”. Esses tentaram o heroísmo de salvar as suas famílias e ninguém os pôde ajudar. A GNR, diga-se que rapidamente, tinha colocada um carro a bloquear a estrada para a Serra, para onde tinha descido o fogo da Louriceira, e logo avisou que o melhor era não sair da aldeia. Não conheciam as estradas, não eram dali, não tinham comunicações estáveis, não sabiam o que se estava a passar. Mas foram prestáveis e presentes.
Havia bombeiros no fundo da rua, junto a uma das entradas. Eram só dois, mais uns sapadores. Saber que ali estavam foi um alívio. O fogo chegava de todos os lados. Molhámos o jardim e a ruína que confina com a nossa casa. Não serviria de muito, mas era um alento. Do lado de Mação, a leste, já havia fogo a rodear a aldeia pelo norte e para sul. O oeste era uma barreira de chamas.
Os mais velhos e, depois, todos nós saímos para o centro da aldeia, de acordo com a recomendação da Guarda. A vizinha da frente, de filho ao colo, chorava com o fogo na berma da estrada que lhe passa nas traseiras da casa. Tive medo, tivemos todos. Já não eram os bens que nos preocupavam, era a vida. A população, estanhada por uma vida enfiada na floresta e experiente de incêndios de outros anos, estava receosa. Como este, nunca tinham visto nada.
Foi então que os vi. Os populares, como se lhes chama tantas vezes, montados em tratores e pick-ups equipados com depósitos e mangueiras. Chegam e, sem medo, atiram-se ao monstro que crepita fagulhas e liberta um calor que nenhum texto, imagem ou relato conseguirá descrever. Parece a guerra da Líbia ou da Síria, mas as pick-ups levam bombas e bombeiros, em vez de obuses e artilheiros.
O ponto de maior risco estava identificado. Era o depósito de gás do Centro de Dia, ao ar livre, embora “fechado” numa estrutura de rede que o fogo teria dificuldade em penetrar. Os mineiros sabem bem que é assim. Mas o calor do ar quente, quentíssimo, chega a todo o lado. No centro da aldeia, o cruzamento central, e no largo da igreja iam-se acumulando pessoas. Também lá estava o carro da SIC que tinha chegado antes de ficar isolado. Deu-lhes para uns diretos.
A pouco e pouco, desbravando estradas que ardiam de ambos os lados, correndo riscos enormes, foram chegando bombeiros. Tomar, Torres Novas, Fátima, Rio Maior, Mação, Entroncamento, Torres Vedras, de tanto lado. Eles que me desculpem se me esqueci de alguns. Ardia no fim da Rua do Fundão. Na estrada para a Queixoperra era um inferno nos quintais. Calma, já lá estão os bombeiros. Só o dizer-se que eles tinham chegado era um descanso. É notável como uma combustão perde agressividade e o medo se atenua só por saber-se que os “os bombeiros já lá estão”.
Reacendimento junto a uma casa. Lá vai a pick-up com o bidão de água e os “bombeiros”, voluntaríssimos, empoleirados. Heróis de que ninguém fala. A estes não dão tempo de antena. Os bombeiros estão noutro foco, num jogo de gato e rato, uma autêntica guerra de guerrilha urbana, com chamas que surgem de onde menos se espera, cortam a retirada, tiram a visibilidade e destroem os nervos de quem as tenta combater. As ovelhas que estavam na linha do fogo já tinham sido retiradas, mas para um terreno que ainda corria perigo. A proprietária, com ajuda dos vizinhos, lá ia apagando as fagulhas que caiam no mato.
O fumo torna-se irrespirável. Arde na garganta e nos olhos. É noite às 6 da tarde. Tosse-se e tem-se sede, muita sede. Hora de voltar a casa, na frente leste o lume está mais brando e já corre para cima do cemitério. Faltou a luz. No meio das labaredas, ironia, acabei a comer à luz de velas. Saio de novo. Não podia estar ali, sem saber onde andava o fogo. Na rua do Espírito Santo arde um casebre e há bombeiros, já sem água, com um pneu furado, que abandonam o local, depois de terem sido alimentados por uns locais, para irem consertar o pneu e reabastecerem-se. Conseguiram falar para Mação e lá vão eles.
Passaram-se quatro horas e tudo continua a arder. Há bombeiros que nos perguntam por outros. Não têm comunicações há horas. Perguntam por caminhos. Mas não desistem. Não há telemóveis que funcionem. Chama-se aos gritos. O fogo corre de norte para sul. As vias foram sendo abertas. Passa da meia noite. Ainda há fogo, muito, na estrada para o cemitério e na direção das Mouriscas. Há um carro de bombeiros que encontro, mais um já sem água, esperando para ser rendido. Não tinha como avisar o comando de que ali estava e não podia dali sair. Finalmente é substituído.
A noite foi azul das luzes de emergência e laranja de fogo. Acabei por dormir, já na madrugada. Muitos nem isso conseguiram. Na manhã seguinte, bem cedo, ainda há fumos nos matos e reacendimentos a que acorrem os voluntários dos kits que a autarquia distribuiu. Os bombeiros foram seguindo o incêndio que estava já a queimar em direção ao Tejo.
Mas nem tudo foi mau. Fomos poupados aos alvos sorrisos e aos abraços comovidos. Dispensaram-nos de cumprimentos e palavras de conforto. Não tivemos visitas inopinadas daquela trupe que ainda não percebeu que nem sempre tem de ser vista. Não servimos para o circo mediático da política. Bastou-nos a solidariedade de quem lá estava e de quem lá foi apagar o fogo.
Logo a 17, na quinta-feira a seguir ao desastre que voltou a apoquentar Mação, Sardoal e Vila de Rei, o Governo decidiu decretar o estado de calamidade pública preventiva. Com esta nova “prevenção” talvez se tivessem salvo os 10 ou 20% do Concelho de Mação que ainda faltavam arder. Mas nem isso. A devastação foi quase total e só não foi pior, salvando-se casas e pessoas, porque houve os voluntários populares, com os seus kits de intervenção rápida, os bombeiros, os meios aéreos, a GNR e muitos outros.
Melhor ainda, nesse dia depois do drama, houve um comunicado do diretor-geral da Saúde a ensinar-nos como evitar o fumo. Se tivesse sido emitido na véspera, apesar das banalidades que lá estão escritas, talvez me tivesse dado jeito. No caminho para Lisboa vi o que tinha imaginado. Até a A13 tinha sido cortada. Se tivéssemos tentado sair por uma estrada florestal, teríamos morrido. A GNR aconselhou-nos bem.
Passada esta aventura, embora sem consequências pessoais ou familiares, saio fortalecido na minha confiança na humanidade e nas pessoas que habitam o Portugal de que quase nunca se fala.
O Dr. António Costa não quer “aproveitamentos políticos”. Pois bem, não os faça, nem os permita. Mas não se demita das suas responsabilidades políticas, as que lhe competem por ser primeiro ministro em exercício. Foi ele que escolheu ser o chefe do Governo que temos, não foi escolhido pelos eleitores, nem sequer pelos que votaram PCP ou BE. Ele é o mal menor para esses partidos que se vão aproveitando, como sabem e podem.
Ao ter decido ser primeiro ministro, mesmo depois de clamorosamente derrotado, o Dr. Costa exonerou o anterior Governo de quaisquer responsabilidades presentes. É assim numa democracia parlamentar. O Dr. António Costa tem legitimidade no Parlamento mas não tem legitimidade eleitoral. É o facto que o vai perseguir e que só tem de servir para que se lhe exija mais. Bem o tentam legitimar com sondagens que são “apenas” exercícios estatísticos de extrapolação da opinião de amostras. A verdade é que o Dr. António Costa ainda não ganhou eleições para a Assembleia da República e não serão as Autárquicas que lhe darão esse estatuto de vencedor.
Até lá, até ganhar os votos que lhe darão o direito de formar Governo, desejavelmente apoiado em esteios que não os da Soeiro Pereira Gomes, não tem outro remédio que não seja governar e fazê-lo bem melhor do que tem feito até agora.
Para já, aos que salvaram as aldeias do Concelho e a Vila de Mação não há mais nada a pedir. Aos heróis que ninguém conhece, basta dizer-lhes obrigado e nem isso eles pediram.