Imagine que os senhorios eram subsidiados para cederem as casas gratuitamente aos inquilinos e ainda lhes pagarem por eles as ocuparem durante um período de tempo. Ou que o mesmo acontecia com as empresas de aluguer de automóvel, que pagariam aos clientes por estes utilizarem os seus carros.
Seria uma inversão completa da lógica que conhecemos no mundo da economia e dos negócios. Mas é isso, esta inversão de lógica, que está a acontecer no mercado do dinheiro na zona euro. Se repararmos, o que acontece com o dinheiro não é diferente do que se passa com as casas, os carros ou qualquer outra coisa que alugamos ou arrendamos. No caso do dinheiro, a este arrendamento chamamos empréstimo e funciona da mesma maneira: utilizamos o que não é nosso durante o prazo estipulado, por isso pagamos uma renda regular (juro, renda ou aluguer) e temos de devolver o bem tal como o encontrámos no início (entrega do capital que tomámos emprestado ou da casa e do carro em condições semelhantes).
Na zona euro, os bancos já eram desincentivados a colocarem dinheiro depositado no BCE, porque a taxa a que esses depósitos eram remunerados era negativa: por cada mil euros que lá colocavam ainda pagavam três euros por utilizarem esse “parqueamento” seguro do capital.
Com as medidas anunciadas pelo Banco Central Europeu esta quinta-feira, não só esse desincentivo passa a ser maior – a taxa negativa passa de 0,3% para 0,4% – como a instituição vai passar a pagar aos bancos comerciais para que estes levem dinheiro e façam negócio com ele, emprestando-o a empresas e famílias. Por cada mil euros que os bancos comerciais levem emprestados do BCE e o injectem nas economias, recebem quatro euros de juro negativo.
Já não é adequado falar de dinheiro barato, nem sequer de dinheiro grátis: isto é ser pago para tomar e conceder empréstimos.
Se esta tentativa de atirar dinheiro às pazadas para as economias não é uma medida de emergência, então não sabemos o que é emergência.
O objectivo primário do BCE é trazer a inflação de volta à zona euro. É que no último ano os preços têm andado perigosamente na zona negativa. Em vez de subir, como todos estamos habituados, têm caído. Que isso aconteça durante dois ou três meses, por razões conjunturais bem conhecidas – a descida do preço do petróleo, por exemplo -, é uma coisa. Mas quando assistimos a uma queda continuada dos preços e esta ameaça aprofundar-se e tornar-se uma tendência consistente, é outra.
Aí entramos no campo da deflação, o verdadeiro terror das autoridades monetárias. Gerir uma economia em deflação é como se de repente deixasse de haver gravidade e tudo caísse em direcção ao céu. Não estamos preparados para isso nem sabemos como se lida com o fenómeno: a percepção da queda de preços leva os consumidores a adiarem todo o consumo que podem para comprarem no próximo mês mais barato do que comprariam hoje; as empresas reduzem e adiam produção e investimento; o emprego cai, levando a novas quebras de consumo, numa espiral infernal para a qual não há ferramentas eficazes.
O Japão que o diga, que passou por isso durante quase toda a década de 90 e ainda não recuperou verdadeiramente.
O que se passa na Europa encontra alguns paralelos com o Japão de então: um passado recente de forte crescimento do crédito concedido à economia, “bolha” de preços nos activos e no imobiliário, mais quantidade do que qualidade nos empréstimos feitos pela banca e problemas generalizados nos balanços dos bancos com o crédito malparado e investimentos ruinosos.
Cá, como lá, também se tentou esvaziar a “bolha” com uma política monetária mais agressiva que fez subir os juros do BCE até à crise de 2008.
A partir daí foi sempre a descer, na tentativa de reanimar uma economia que não passa de anémica.
O certo é que a “bazuca” de Mário Draghi já foi utilizada várias vezes – com descidas agressivas de juros e com programas de compra de títulos de dívida sempre com o objectivo de dar liquidez aos bancos para que estes emprestem às economias – e não resolveu o problema. A arma é agora reforçada como medidas ainda mais radicais e com um discurso que tem como objectivo dar aos agentes económicos, sobretudo ao sector financeiro, um prazo longo em que podem esperar dinheiro barato da parte do BCE.
Daqui resulta, inevitavelmente, a leitura de que as sirenes de alarme voltaram a soar em Frankfurt, ao ponto de Draghi ter conseguido convencer os seus pares mais renitentes – com o Bundesbank à cabeça – da absoluta necessidade de reforçar as medidas de emergência que já estavam no terreno.
Se o objectivo é colocar os bancos a emprestar mais dinheiro, a questão que vai colocar-se é a que empresas, para que projectos de investimento e com que perspectiva de viabilidade. Ou a que famílias, para quê – compra de mais casas? – e com que risco.
O dinheiro caro pode ser um obstáculo para muitas economias. Mas o dinheiro barato só é uma vantagem se se souber o que fazer com ele. Saberemos?
Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com