1. O escândalo dos abusos sexuais em Hollywood trouxe à luz do dia uma realidade conhecida mas que o mundo teimava em ignorar: que no cinema, como em outras indústrias onde jovens bonitos se cruzam com homens poderosos, havia um sensação de impunidade por parte de quem tem poder para solicitar sexo em troca de favores.
Se olharmos bem para as histórias que agora vêm a público veremos que, tirando os casos de Woody Allen e de Roman Polanski (casos que durante anos foram ignorados pelas mesmas estrelas que agora veementemente se manifestam), os abusos não incluíram coerção ou ameaças físicas. Simplesmente a mera sugestão: fazes o que eu quero e tens uma carreira, negas e nunca mais trabalhas nesta área.
E não vale a pena dizer que as pessoas abusadas, sobretudo mulheres, sabiam ao que iam, que eram livres para não aceitar, ou ainda pior, que depois de aceitarem não têm nada que se queixar. Usar o poder sobre alguém mais fraco para ter relações sexuais é um abuso e não pode ser aceite. Trocar sexo por favores é objectivar o outro, é reduzir o outro a um bem comerciável.
Todos temos o direito de viver a nossa sexualidade em liberdade e consciência. Se alguém tenta coagir a nossa liberdade ou aproveitar-se da falta de consciência para obter sexo então é abusador. Mesmo que não o seja a nível criminal.
Por isso, apesar de todo a alarido à volta do assunto, apesar da caça às bruxas exigida pela histeria dos media, apesar da hipocrisia de todos aqueles que durante anos conviveram com aqueles a quem agora chama monstros indiferentes à sua fama de abusadores, ainda bem que Hollywood deu este passo de acabar com a impunidade dos abusos sexuais por parte dos seus mais poderosos.
2. Em Portugal tem surgido de tempos em tempos propostas sobre a legalização da prostituição. Regra geral os apoiantes deste tipo de legislação têm sido os mesmo que muito se manifestam contra os abusos sexuais como os revelados agora pelo escândalo em Hollywood.
Eu confesso que esta posição me causa alguma perplexidade. Pelos vistos, é um abuso alguém pedir sexo em troca de favores, mas já não o é se for em troca de dinheiro.
Um produtor de cinema não pode fazer avanços em troca de um papel num filme, mas pode dispor sexualmente de uma mulher se lhe pagar.
E não colhe o argumento de que quem se prostitui o faz em liberdade. Esse é o mesmo argumento repetido em tantas caixas de comentários de que Harvey Weinstein não abusou de ninguém, simplesmente fez propostas que as mulheres podiam ou não aceitar.
Defender a legalização da prostituição é defender a comercialização da mulher (a prostituição ainda é um negócio sobretudo feminino). É defender que os homens com dinheiro podem comprar as mulheres pobres. É defender que quem tem poder pode dispor de quem não o tem.
Defender a legalização da prostituição é defender os Harvey Weinstein nacionais, que pensam que o poder e o dinheiro lhes dá o direito a dispor do corpo das mulheres.
Por isso, lutemos pelos direitos das actrizes de Hollywood a não serem abusadas. Mas lutemos também pelos direitos das mulheres anónimas que em Portugal podem vir a ser legalmente abusadas pelo simples facto de precisarem de dinheiro e alguém estar disposto a dar-lhes o que precisam em troca do seu corpo.
José Maria Seabra Duque é advogado.
Jurista