A eleição de Trump (aaaargh) raptou o meu texto da semana passada a um assunto ainda mais importante, e a eventos seminais que estão a ocorrer em Espanha. Não, não se trata de finalmente terem governo, que não lhes fazia falta nenhuma (a taxa de crescimento espanhola anda acima dos 3% sem governo). Nem da implosão do PSOE. Nem, sequer, da visita de Costa a Rajoy enquanto o seu governo por cá vai ensaiando culpar os raquíticos números do crescimento económico – perdão, os apoteóticos 1,6% no terceiro trimestre que os aleivosos garantem ser praticamente estagnação – com a incerteza trazida pela eleição de Trump.

Não, algo muito mais importante se passa em Espanha: os pais espanhóis estão em greve durante este mês de novembro aos trabalhos para casa que os professores dão aos petizes para lhes arruinar os fins de semana. Repetindo, de resto, parecida investida dos pais franceses há uns meses.

Finalmente uma greve que me enche o coração e que tem o meu apoio absoluto. Recomendo mesmo que os pais portugueses de filhos em idade escolar se juntem a este crescente movimento internacional. Unidos venceremos. Estou quase a sentir empatia com aqueles senhores das empresas de transportes públicos, que recebem subsídios em cima de subsídios só para aparecerem no local de trabalho, e que ainda reclamam e transtornam a vida dos demais concidadãos de cada vez que o PCP está descontente com a governação da malvada direita e decide greves.

aqui dei conta do meu desprezo mais absoluto e retinto pela instituição dos trabalhos para casa. Mantenho tudo. Muitos psicólogos e pedagogos se insurgem contra os TPC ou, pelo menos, contra uma grande carga de trabalhos de casa. Há muitos argumentos: a necessidade de brincar é formativa e fulcral; muito tempo a fazer trabalhos de casa é uma grande causa de sedentarismo; os TPC tiram tempo a atividades mais importantes como refeições em família, ler por prazer os livros que apetecem, cimentar as relações sociais e, até, dormir; os TPC são grande causa de stress escolar – a lista é quilométrica. Numa revisão de literatura sobre os trabalhos de casa entre 1987 e 2003, Harris Copper, da Duke University, concluiu que nos primeiros seis anos de escolaridade não há qualquer correlação entre trabalhos de casa e melhores notas. Outro estudo concluiu que mais de uma hora e meia (uma hora e meia!) perdida em trabalhos de casa prejudica o aproveitamento escolar.

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Acrescento um argumento contra os trabalhos de casa: são uma fonte interminável de potenciais tragédias gregas que envolvem figuras paternais. Etta Kralovec, no livro The End of Homework (foi um dos iniciadores desta discussão sobre a bondade dos TPC) explica claramente como os trabalhos de casa são disruptivos para as famílias. E eu ofereço-me a correr para exemplo disso.

Depois de ter escrito o meu manifesto em 2014, ganhei no ano letivo passado mais um utente de trabalhos para casa na minha população filial. Que, vim a descobrir, tem uma aversão tão aguda como a sua mãe aos TPC. Enquanto o meu filho mais velho fazia os trabalhos autonomamente e diligentemente, ainda que – sintoma de que é uma criança saudável e inteligente – vertendo abundantes comentários ácidos e de escárnio sobre os ditos deveres, a combinação do meu filho mais novo com TPC foi todo um ambiente de guerra termonuclear deflagrada em casa.

Nas minhas tentativas de o convencer a terminar os trabalhos de casa, ou sequer a começa-los, ou a demorar menos de três quartos de hora para fazer cinco guês minúsculos, usei de todos as ameaças disponíveis à humanidade. O meu filho, bastante argumentativo do alto dos seus seis e sete anos, descreveu incontáveis vezes, de forma vívida e detalhada, como eu era a pior mãe do mundo por lhe impor os TPC. (E eu, que concordava com as suas arengas anti-TPC, sentia-me de facto uma traidora da classe infantil portuguesa.) A gritaria foi omnipresente. Um dia ou outro acabámos os dois a chorar.

Este ano, felizmente, o ambiente é mais de armistício. Nas aulas, criaram uns períodos de tempo de apoio ao estudo onde as crianças fazem os TPC vigiados pela professora, o que lhe permite chegar a casa alguns dias livre da tortura. Claro que o domingo ainda está decretado como o pior dia, e com toda a justiça, por ser o dia de fazer os TPC de fim de semana. Mas parecemos ter sobrevivido à iminência de um inverno nuclear.

Pelo que faço aqui o meu apelo a todas as autoridades para abolirem essa malfeitoria que são os TPC, antes que os pais tenham de se entregar à luta armada para defender a paz familiar ou, pelo menos, às greves.

No livro The Case Against Homework, Sarah Bennett e Nancy Kalish contam o início desta febre do mundo contemporâneo. Quando os soviéticos lançaram o Sputnik para o espaço em 1957, a educação laxista americana foi um dos bodes expiatórios por essa catástrofe dos russos ultrapassarem os EUA na corrida espacial, na supremacia militar e, quiçá ao virar a esquina, na económica. Os EUA estavam a perder a Guerra Fria porque as crianças russas trabalhavam mais e tinham melhores notas. Donde: foi afogar as criancinhas americanas em TPC para salvar o mundo livre.

Depois disso houve oscilações face aos TPC, mas em retrospetiva podemos verificar que a carga de TPC da miudagem soviética não impediu o soçobrar do bloco comunista em 1989. Podíamos então, sei lá, relegar uma mania assim nascida para a mesma estante onde está o senador McCarthy?