O colunista e historiador Henrique Raposo (HR) é alguém que sigo com muita atenção desde há algum tempo, pois consegue conjugar uma visão conservadora, a qual partilho, com um certo “mundo”, isto é, não é um rato de buraco e vive imbuído da cultura contemporânea, não se deixando levar pelas suas ilusões, mas confesso que fiquei desiludido com o artigo que escreveu, intitulado, “O casamento não traz felicidade”.
Se compreendi bem, em resumo, o que defende é que o casamento não é para se ser feliz, é essencialmente para ser dedicado aos outros e esta tarefa já é suficientemente penosa. Os que veem esta instituição como viagem de amor são “adolescentes” e imaturos pois não percebem que dos filhos e da família vêm muitas dificuldades e não prazeres. A tese de HR: felicidade é vitória e não prazer. Prazer é “ver um filme, ler um livro, estar na praia, beber um vinho”. Mas pergunto, porque é que estar com os filhos não pode dar prazer?
O meu amigo dá o exemplo dos filhos para ilustrar que os primeiros tempos deles são de grandes dificuldades. Não nego nem posso falar de tal coisa, mas posso falar enquanto filho de família numerosa, nove irmãos. E posso falar de “pior”: não os poder ter. Como dizia Ida Gorres, “a sua situação é difícil? Um casamento a sério também é difícil. Ter muitos filhos é difícil, não ter filhos é ainda mais difícil” (“Casar com Sucesso”, Princípia, p. 165). Mas diz, “compreendo, mas hoje em dia as empresas não respeitam as famílias”. Também é verdade, mas essas pessoas, o que fizeram para alterar a situação? Mudaram de emprego? Ah, “mas o outro emprego não é na minha área”, ouço muito. E ficamos por aqui. Os portugueses têm um dos índices mais altos no que toca à aversão ao risco. E os desempregados também estão mal pois não têm emprego e muitas crianças em África, nem oportunidade têm de estudar. And it goes on and on…
Esta visão pessimista de HR, aliás, não é nova. Já Denis de Rougemont escreveu um ensaio emblemático do ensaísmo europeu do século XX, escrito em 1938 – “O Amor e o Ocidente” — em que, a meu ver bem, criticava a visão que o mundo ocidental sempre deu ao amor. Por culpa da literatura, sobretudo, desde tempos imemoriais e especialmente no Romantismo, o amor foi, antes de mais, sentimento, algo arrebatador, a paixão, e não se deu devido valor à decisão. A um compromisso. Isto é, a paixão e amor são coisas diferentes. A primeira vem e vai, fica a segunda. Isto não é novo para ninguém, todos falamos nisto nos cafés, pois tivemos “Tristão e Isolda”, “Werther”, “Romeu e Julieta” e… Rougemont.
Ora, não discordo totalmente de HR, mas não poria o foco só nas cargas. Parece-me uma visão muito pobre sobre o casamento (e sobre a vida), seja para crentes ou não crentes. Um género de estádio 2. O primeiro é, de facto, uma visão adolescente, mas poucos já a têm. Ao menos a tivessem, pois com o tempo poderiam até melhorar, mas as pessoas já nem sequer casam.
Pode haver uma terceira via? O dever é suficiente para aguentar uma relação de uma vida? É verdade que muitos vão e foram para o casamento com ilusões de que iam ser “só rosas”. Mas o meu amigo acha que hoje em dia, depois de Rougemont e com 70 divórcios por cada 100 casamentos, alguém ainda tem estas ilusões? Por isso, a sua visão, sendo (em parte verdadeira), não é completa nem corresponde às mais profundas ânsias das pessoas de hoje (e de sempre). O problema do casamento, hoje em dia, não é as pessoas avançarem para o mesmo a pensar que é só “amor e uma cabana”. A questão, hoje em dia, é dar sentido a uma vida a dois. A pergunta de qualquer pessoa, católica ou não, é: conseguirei eu ser feliz numa relação toda a vida, manter o romantismo e a minha individualidade, ao mesmo tempo que tenho filhos e trabalho? Olham para trás e para o presente e veem o insucesso do casamento.
Por isso, concordo numa das razões de insucesso do casamento na nossa sociedade, a ilusão de Rougemont, mas não me parece que seja a única, pois, comprovado no caso do HR, há muitos casais infelizes e divórcios (entre eles muitos católicos). A segunda razão tem que ver, então, em recuperar o amor, que não é só uma obrigação, mas que também é feito de ações e de emoções. Soa clichet? Ouçamos o Papa Francisco na sua sabedoria: “O ideal do matrimónio não se pode configurar apenas como uma doação generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos que o amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual” (Amoris Laetitia, 157). Compreende-se, também, a visão de HR, a qual é influenciada pelo pessimismo calvinista (não é estranha a citação que faz de Tiago Cavaco, um pastor batista e grande amigo, como não esconde).
Perdemos o amor, o Eros e o Ágape? Temos, aliás, vergonha, de dizer o seu nome: Amor. É lamecha. Não é adulto. Isto é ridículo. Não temos de nos matar se não somos correspondidos, como Werther, mas também não temos de ser uns aristocratas aborrecidos com a vida. E muitas vezes centramos o casamento apenas nos filhos. Não só o casal existe antes como depois. Ora, o casal é o gerador dos frutos (visíveis e invisíveis) e, por isso, é o agente mais importante do resto (e a “célula da sociedade!”). E sim, o romantismo é importante. Então, o sexo é a solução? É um dos, fortalece a relação, claro, mas podemos incluir, além dele, a ternura em geral, o perdão, os momentos a dois, a audição sincera, os momentos em família. E para os católicos, o poder da oração e dos sacramentos.
Temos suficiente literacia afetiva hoje em dia? É que, mesmo na formação dos padres, como argumenta o Papa, não se pode cingir à Teologia e à Filosofia, mas também ao lado psicoafectivo (Amoris Laetitia, 203). E outras competências, como a comunicação, a resiliência, a negociação, o trabalho de equipa, a liderança? Estas capacidades comportamentais são as capacidades do futuro, não só nas empresas como nos casamentos. A formação técnica já era.
Mais: alguém acredita que infelizes, se consegue criar filhos felizes? Tal como Steve Jobs dizia “do what you love and you will not work any day”, aplica-se ao casamento. Há dificuldades? Onde não há? Mas a vida é para desfrutar. Até os Católicos o acreditam, “eu vim para que tenham vida em abundância”, “quem deixar casa, família, será recompensado aqui e na vida eterna”.
Um dia, se me chegar uma notícia colorida num teste de gravidez, antecipo uma explosão de alegria e choro, pois o irreal tornou-se real e agradecê-lo-ei toda a vida. Se este momento nunca acontecer, a minha vida tem sido e continuará a ser o que até aqui foi, experimentar cada segundo como um milagre e cada sinal como seta do meu caminho.
Co-fundador do site datescatolicos.org, gestor.