Alguns dias antes do anúncio público de Paulo Portas de que vai abandonar a liderança do CDS, numa conversa informal com um amigo, foi-me perguntado por que utilizo ocasionalmente um tom algo agreste quando escrevo sobre Portas. Respondi que não tenho qualquer animosidade pessoal contra Paulo Portas e que lhe reconheço até várias importantes qualidades para a acção política, mas que ao mesmo tempo o seu tacticismo extremo e a sua excessiva flexibilidade no plano das ideias e dos princípios me desagradam profundamente.
O meu interlocutor nessa conversa – conhecedor profundo da realidade política portuguesa – chamou-me a atenção para o facto de esses defeitos estarem longe de serem exclusivos de Portas, existindo também em muitos outros actores políticos que, adicionalmente, não partilham os seus méritos. Esta pertinente constatação levou-me a examinar de forma mais profunda a avaliação que faço do trajecto e da figura política de Paulo Portas. Uma reflexão que se torna mais oportuna depois do anúncio de que não se recandidatará à liderança do partido que nos últimos 15 anos moldou progressivamente à sua imagem.
Após realizar esse exame, creio que a resposta reside em parte no projecto que trouxe Portas para a ribalta: o semanário “O Independente”. Como muitos outros da minha geração, fui um aficionado e, durante bastante tempo, fiel seguidor do jornal. Retrospectivamente, não hesito em concordar com o Henrique Raposo que “O Independente” foi essencialmente um projecto estético, sem um conjunto claro e coerente de ideais morais e políticas orientadoras e mais pós-moderno do que conservador.
Mais: hoje é para mim claro que todo o projecto (incluindo os seus aficionados, grupo de que fiz parte) padecia de um provincianismo e de um deslumbramento com algumas referências externas que o diminuíam. A soberba conduziu com demasiada frequência à boçalidade e a comportamentos mesquinhos e até vingativos. Mas, mesmo reconhecendo tudo isto, “O Independente” não deixou de ter um impacto revolucionário na política portuguesa da época e de ser profundamente marcante. E Paulo Portas foi indiscutivelmente a sua figura de proa.
Ora, creio que é em larga medida por esse trajecto anterior que a conduta política de Portas ao longo dos anos se torna mais criticável. Ao defender ideias que muito justamente criticou e condenou no passado e ao praticar ele próprio grande parte dos vícios que denunciou, Paulo Portas carrega na sua encarnação como político um odioso maior do que a generalidade dos membros da classe política portuguesa. Era-lhe exigível mais e Portas não conseguiu estar à altura do padrão que lhe era exigível.
A situação em que Paulo Portas deixa o seu partido foi muito bem sintetizada por Rui Albuquerque, um conhecedor simultaneamente profundo e distanciado da realidade do CDS:
“ (…) Paulo Portas não deixa um projecto político, nem foi capaz de o criar. O CDS é «o partido do Paulo» e, apesar do brilhantismo do «Paulo» ou, se calhar, por causa dele, o CDS não tem alma própria, nem existência real, o que é bem visível na quase inexistência autárquica do partido. Se alguém estiver interessado em encontrar no CDS, não digo um programa político ou uma ideologia, duas ou três ideias avulsas que o caracterizem politicamente, não será fácil achá-las. (…) O problema da demissão de Paulo Portas não está, assim, em encontrar-lhe um sucessor. Nomes e candidatos não faltarão. Mas no facto do carisma de Portas não se transmitir «mortis causa» e do CDS não ter mais nada para legar.”
Ironicamente, neste contexto, a vontade de poder de António Costa e a “geringonça” governamental que articulou em precária articulação com bloquistas e comunistas acabou por dar um valioso contributo para a continuação do CDS enquanto partido autónomo. Depois de praticamente dizimada a base autárquica do CDS, sem princípios que o distingam no panorama partidário português e com uma organização e imagem totalmente centradas na figura do seu líder, dificilmente o CDS resistiria a mais quatro anos de coligação governamental com o PSD.
Chegados a este ponto, importa olhar para o futuro do partido. A escolha caberá – como não poderia deixar de ser – aos militantes do CDS mas parece claro que o grande desafio que se coloca é fazer o que Portas não fez (e já não teria condições para fazer, depois do slogan vazio do “partido do contribuinte” e do inenarrável guião para a reforma do Estado que apresentou): afirmar o CDS como um partido com uma plataforma e discurso consistentes, distintivos e que marquem um espaço próprio à direita. Um espaço que não deve ser delimitado de forma exclusivista e pode provavelmente incluir tendências conservadoras, liberais e democratas-cristãs.
Mais do que saber quem será o próximo líder, importa que o CDS discuta ideias e políticas e reflicta sobre a sua razão de ser no sistema político-partidário português. O primeiro passo para o conseguir é ultrapassar rapidamente a dicotomia entre seguidores e opositores de Paulo Portas. O segundo passo será que o próximo líder não tente imitar Portas que, para o bem e para o mal, será inimitável. Quanto ao próprio Paulo Portas, com todos os seus talentos e defeitos – e, recorde-se, com apenas 53 anos – vai certamente continuar a andar por aí.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa