No rescaldo dos incêndios devastadores que assolaram o país, a percepção de que existe um problema estrutural de ordenamento do território é consensual. Mas as opiniões dividem-se quanto aos efeitos de determinadas opções de uso do solo na propagação e extensão dos fogos. Se é verdade que o avanço da monocultura do eucalipto tem sido acompanhado pelo recrudescimento dos incêndios, a relação entre estes dois factores ainda não é clara para uma parte significativa da opinião pública. Enquanto uns relacionam inequivocamente a transformação radical do mosaico florestal português com o agravamento dos incêndios, outros apontam que nenhuma outra espécie consegue competir com os lucros gerados pelo Eucalipto, sendo não só necessário para a economia, como um elemento dinamizador de boas práticas de gestão florestal.

Mas porque temos ainda de debater a eucaliptalização, quando o problema dos fogos tem também outras causas, como o êxodo rural, a falta de consciência cívica e ambiental de empresas públicas e privadas, o despreparo e falta de meios no combate a incêndios e as imensas áreas ao abandono? É que o Eucalyptus globulus, que fornece matéria prima para as indústrias da pasta do papel e madeireiras, ocupa 26% da área florestal portuguesa, tendo em apenas cinquenta anos passado de uma área de cerca de 50 mil hectares, para uma extensão superior a 812 mil hectares – a maior área relativa de eucaliptal do mundo – o que por si só justifica o debate. Por outro lado, no quadro mais amplo de aquecimento global, os efeitos nefastos desta monocultura são inegáveis, no que respeita aos seus impactos nos solos e recursos hídricos, e na diminuição da biodiversidade.

Para medirmos a real dimensão deste problema, é importante começar por discernir a pequena àrea gerida diretamente por empresas das celuloses (apenas 150 mil hectares, 18,5% do total), das restantes 600 ou 700 mil hectares de eucaliptais espalhados por todo o país. Enquanto as primeiras beneficiam de sistemas de controle e combate de incêndios privados, nas segundas não existem os mesmos meios, deflagrando em cada verão mais incêndios de dimensões assustadoras. Por isso não faz sentido evocar o bom desempenho na contenção de riscos de fogo em áreas controladas pelas empresas de celuloses, quando o problema está nas restantes áreas onde o eucalipto cresce descontroladamente e se expande após cada nova calamidade com renovado vigor, em particular nas áreas anteriormente ocupadas por pinheiro bravo. De facto, a àrea de pinhal que chegou a mais de 1100 mil hectares está hoje reduzida a quase metade dessa área, sendo progressivamente substituída por monoculturas de eucalipto.

Estes dados levam-nos a uma outra perplexidade: enquanto a ocorrência de fogos faz parte do ciclo natural das florestas, a escala dos incêndios que tem ocorrido ao longo das últimas duas décadas era totalmente desconhecida no passado. Recorrendo a registos fidedignos desde o séc XIX, o incêndio de Vila do Rei em 1986, é considerado por alguns investigadores o primeiro incêndio conhecido com área ardida superior a 10 mil hectares. Segundo os dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, os piores anos registaram-se em 2003 (com um total de 425 839 hectares) e 2005 (com um total de 339 mil hectares). Agora, o Sistema Europeu de Informação de Incêndios Florestais estima mais de 500 mil hectares de área ardida em 2017, o que constituiria o pior ano de sempre, com mais de uma centena de mortos. Portugal desempenha assim o vergonhoso papel de campeão europeu dos fogos, com cerca de metade da área florestal ardida em toda a Comunidade Europeia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É importante notar que o relatório da comissão técnica independente, que apurou os factos dos incêndios de Pedrógão Grande recomenda a substituição de áreas de eucalipto e pinheiro bravo por “modelos de silvicultura e silvicultura preventiva” de crescimento mais lento, os quais “podem ser mais interessantes do ponto de vista da economia dos proprietários florestais”, mencionando que os espaços florestais contínuos ocupados predominantemente por eucalipto e pinheiro bravo “geram incêndios graves e severos”. O relatório conclui que a diversificação de espécies florestais menos propensos ao fogo pode constituir “uma resposta de raiz ao problema dos incêndios”.

Do ponto de vista político e legal, o Decreto-Lei n.º 77/2017 que altera o regime jurídico aplicável às ações de arborização e rearborização aprovado em 2013, representa um marco importante. Para além de estancar a lei da liberalização do eucalipto que permitia a plantação de áreas inferiores a 2 hectares sem qualquer licenciamento, prevê também a redução de 50% das áreas de eucalipto implantadas em regime de permuta. Face a esta nova medida aprovada por lei, a questão não é mais se deve ou não ser instaurada uma política eficaz de conversão de áreas dominadas pelo eucalipto em favor de espécies mais resistentes ao fogo. As questões que precisam ser discutidas é onde, como, com que meios e para que fins.

As soluções para erradicação do eucalipto que venham a ser reguladas pelos instrumentos de ordenamento territorial previstos na lei, colocam novos desafios técnicos para testar opções distintas de uso do solo, tendo em conta as condições específicas de cada local. O modelo de comportamento do fogo simulado no relatório de Pedrógão Grande por exemplo, conclui que a substituição de eucaliptos por bosques maduros e fechados de quercíneas e outras folhosas, poderia representar uma redução da área ardida em cerca de 57% correspondente à substituição de metade da área de eucalipto. O relatório reconhece ainda que a localização estratégica das substituições e intervenções de silvicultura preventiva “certamente produziria resultados mais notórios”. Pôr em prática estas experiências no terreno, é seguramente mais difícil, dada a dificuldade de erradicação do eucalipto, o que exige uma melhor articulação entre agentes e concentração de esforços para investigar metodologias realistas e eficazes.

O avanço do conhecimento científico sobre boas práticas regenerativas integradas em sistemas agroflorestais para substituição de monoculturas florestais, enfrenta ainda forte resistência daqueles que não querem questionar o atual modelo de exploração destes recursos. Este modelo é dominado por grandes empresas que dão lucro, geram emprego e muito dinheiro, alimentando e sendo alimentadas por uma rede capilar de interesses económicos interligada com a burocracia estatal. Não é difícil compreender a dificuldade destes agentes em reconhecer os riscos intrínsecos a este modelo economicista, por serem contrários aos seus próprios interesses e à sua permanente necessidade de expansão em mercados globais cada vez mais competitivos. A visão dos que defendem este poderoso sector é clara: que o governo entregue novas áreas florestais às grandes empresas das celuloses, que tem suposta competência para gerir estes recursos e podem encher os cofres do Estado.

E aqui mora o perigo do governo ser co-optado por estes interesses para resolver o dilema actual, numa lógica “win-win” de curto prazo, mas que poderá comprometer definitivamente o futuro de Portugal: se as áreas de eucalipto implantadas em regime de permuta serão reduzidas em 50%, uma alternativa para o sector das celuloses pode ser equacionada na atribuição de novas monoculturas de eucalipto em àreas ardidas de pinhal. Se assim for, quem beneficiará dos incêndios que ocorreram na passada semana, cujas causas são ainda desconhecidas e onde parecem existir indícios de mão criminosa? Cui Bono? É por isso absolutamente imperativo que a sociedade portuguesa exija que nenhuma área ardida beneficie os interesses dominantes, seja da indústria da pasta do papel ou das madeireiras. Que os factos sejam apurados até às ùúltimas consequências e que as populações sejam chamadas a depor para inverter definitivamente este ciclo auto-destrutivo.

Haverá sempre vozes e sensibilidades diferentes no que respeita às formas mais eficazes de enfrentar o multifacetado problema dos incêndios florestais. Estamos perante um problema socioambiental complexo, onde a educação, consciencialização e responsabilização de cada um são elementos essenciais. É necessário procurar soluções em várias frentes em simultâneo, tanto no que respeita às medidas de prevenção, proteção e prontidão face à probabilidade de agravamento das condições climáticas, mais favoráveis à ocorrência de fogos. As soluções de curto prazo que reúnem já amplo consenso técnico para reduzir riscos e ampliar a capacidade de resposta no combate a incêndios, devem ser implementadas, sem perder de vista os desafios de longo prazo que carecem de um trabalho continuado.

De todas estas frentes de trabalho, a realização do cadastro fundiário nacional representa uma oportunidade rara para criar ciência sobre o território português e avançar na direcção de uma visão sistémica dos sectores agrícolas e florestais. É preciso que esse processo seja conduzido com seriedade, evitando que se torne em mais um instrumento de mercantilização da natureza. Mais do que um mero exercício de mapeamento, este pode ser o momento de aproximação à terra que precisamos para ajustar o rumo da economia às especificidades dos nossos suportes de vida. Mas resta saber se os portugueses e seus Navigators serão capazes de reorientar o seu curso, para que possamos transformar o desastre em oportunidade e finalmente descobrir um papel mais dignificante para Portugal no mundo. Como diria Gonçalo Ribeiro Telles: “não percam esta oportunidade, o futuro do País está em causa.”

Arquitecto, D.Sc. Eng. Civil