Espera-se que os resultados das eleições presidenciais nos EUA tenham importantes reflexos no plano internacional, nomeadamente na forma como violações de direitos humanos e crimes ambientais são tratados. Na Amazónia, esta mudança de direção da política externa americana constitui uma oportunidade para evitar um genocídio de consequências incalculáveis.

A relevância geopolítica da Amazónia foi reconhecida por Joe Biden durante a sua campanha, que prometeu investir 20 biliões de USD na região. Estas declarações foram imediatamente criticadas no Brasil pelo General Mourão, revidando a retórica nacionalista da ala mais conservadora do exército brasileiro que domina o atual governo.

Paradoxalmente, foi desde o início da ditadura militar que enormes fluxos de capital se estabeleceram entre o Norte e o Sul do continente americano para explorar as riquezas minerais da região amazónica. Hoje, a soma das áreas de mineração em atividade na Floresta Tropical, equivalem a uma área total maior do que a França*.

Mapa da Amazónia com representação das áreas de mineração ativas (vermelho) áreas naturais de proteção (verde) e terras indígenas (amarelo). Fonte: Rede Amazónica de Informação Socioambiental Georeferenciada (RAISG)

No Brasil de Bolsonaro, a mineração foi oficialmente considerada uma atividade essencial no atual quadro de pandemia. O governo federal procura legitimar o garimpo em terras indígenas, constituída como a linha da frente de um extenso programa extrativista que se pretende “regularizar”, através do Projeto de Lei 191/20.

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A cada dia que passa, centenas de milhares de garimpeiros avançam sobre reservas indígenas. Estas ações predatórias encontram-se pulverizadas pelo território, formando uma complexa teia de relações entre o mercado ilícito de minérios e a emissão de licenças de operação a corporações internacionais, que buscam estabilidade nas suas operações extrativas junto dos órgãos licenciadores do governo.

Esta conjuntura de violação sistemática de direitos humanos cria um dilema à nova administração americana: por um lado, é moralmente obrigada a tomar providências diplomáticas nesta matéria, e por outro é constrangido por um ambiente político adverso ao multilateralismo. Entre a necessidade de romper com a cultura neoliberal do “business as usual”, e o legado de irresponsabilidade política de Donald Trump, resta um caminho estreito e difícil para Joe Biden e Kamala Harris.

As dificuldades deste contexto constituem também uma oportunidade de reabilitação da imagem e do papel dos EUA no plano internacional. Mas isso só será possível, se a política externa americana for capaz de corajosamente instaurar uma nova ética nos negócios sobre os quais pode exercer influência, e de reconstruir cuidadosamente alianças com atores locais, regionais, nacionais e internacionais, sem ceder às pressões dos interesses económicos instalados.

Entre outras linhas de atuação fundamentais, devem ser criados e fortalecidos mecanismos de monitorização que permitam fiscalizar as atividades financiadas por corporações financeiras sediadas nos EUA, cujas ligações a abusos e conflitos tem sido objeto de denúncia por diversas organizações.

Durante a presidência de Bolsonaro, instituições financeiras como BlackRock, Citigroup, Morgan Chase, Vanguard, Bank of America, Goldman Sachs, Dimensional Fund Advisors, entre outras, investiram dezenas de bilhões de dólares em empresas alegadamente ligadas a episódios de violência e invasões de terras indígenas. É necessário chamar à responsabilidade estas organizações, e avaliar as práticas dos empreendimentos financiados. A multinacional Anglo American por exemplo, tem quase 300 requerimentos de pesquisa registrados na Agência Nacional de Mineração, que incidem sobre terras indígenas.

É necessário reavaliar os limites e possibilidades de ação de agências de cooperação como o World Bank,  a International Development Finance Corporation e o Interamerican Development Bank, para que instrumentos de financiamento e concessão de crédito sejam parte da solução, e não parte do problema. Estas e outras agências internacionais podem e devem apoiar as pessoas e as comunidades locais para desenvolverem seus próprios caminhos, responsabilizando os povos da Amazónia pelo seu próprio destino, com o mínimo de interferência nas suas terras.

Com maior investimento na produção de conhecimento sobre o bioma, e investigação aplicada aos seus ecossistemas, é possível promover processos integrativos e regenerativos, que contribuam para o fortalecimento dos territórios indígenas, das áreas de conservação especial da Amazónia e de toda a região.

Proteger a Amazónia deve ser um empenho de todos os governos do planeta, com respeito pelas leis e soberania das nove nações com jurisdição sobre esse território e pelo direito internacional. Estender a nossa solidariedade e dar voz aos povos da floresta, é um passo essencial para a construção da paz no mundo, e o único caminho para salvar o que resta de um legado ambiental, sociocultural e genético insubstituível.

*Os dados deste artigo baseiam-se em informações de relatórios nacionais e internacionais elaborados pelas organizações World Resources Institute, Amazon Watch, e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), bem como de investigações conduzidas pelos observatórios jornalísticos De Olho Nos Ruralistas (DONR), o Instituto Socioambiental (ISA) e a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada.