É frequente ouvir-se dizer que ‘o meu corpo é meu’. Deste jeito, entende-se ilegítima qualquer pretensão do Estado, da Igreja ou da sociedade, para intervir em decisões pessoalíssimas, como são as que dizem respeito ao princípio e ao fim da vida humana.
Que ‘o meu corpo é meu’ dizem os defensores do aborto, esquecendo que o ser concebido no ventre materno não é parte do corpo da mãe, nem foi por ela gerado exclusivamente. Também o dizem as mulheres que se disponibilizam para a chamada gestação de substituição, vulgo ‘barriga de aluguer’, como se o seu ventre fosse uma espécie de hostel, que pudessem arrendar a seu bel-prazer. O mesmo afirmam os apologistas da eutanásia e do suicídio assistido: porque ‘o meu corpo é meu’, só a mim compete decidir quando e como deixará de funcionar. Mas não se trata apenas do corpo, mas da vida e, mais em concreto, de uma eventual licença para matar, de forma institucional, seres humanos inocentes.
É verdade que há um aspecto positivo a salientar no slogan ‘o meu corpo é meu’: a afirmação da liberdade fundamental de todos os seres humanos em relação à sua própria existência. Admitir que alguém possa dispor de outra vida humana seria contrário à tradição humanista cristã, um regresso ao tempo em que era lícita a escravatura, contra a evidência da igual dignidade de todos os seres humanos. Mas é isso mesmo que acontece nos países que legalizaram a eutanásia.
Como já aqui disse Raquel Abreu, no seu excelente artigo intitulado “Eutanásia – o fracasso da Humanidade”, “na Holanda, em 2013, a eutanásia foi realizada em 97 doentes com demência e em 42 doentes com doenças psiquiátricas. Em 2015, praticou-se a eutanásia a cada hora e meia!”, o que significa 16 assassinatos por dia, 480 por mês e 5.760 por ano! “A legislação holandesa já permite que os médicos ponham fim à vida de recém-nascidos, se nascerem com problemas tão graves que o termo da vida seja considerado a melhor opção”. Também no estado do Quebec, Canadá, se pensa avançar para a “eutanásia involuntária de idosos dementes”, ou seja, sem eufemismos, a legalização do homicídio dos mais velhos e débeis.
A ninguém é lícito dispor sobre a vida de outrem e nem o próprio tem um direito absoluto em relação à sua existência: por isso, se alguém atentar contra a sua própria vida, todos têm a obrigação moral e jurídica de impedir a concretização desse acto desesperado, mesmo que consciente e voluntário. Quem o não fizer, podendo-o fazer, incorre em responsabilidade civil e criminal, por omissão de um seu dever humanitário.
Todos os seres humanos têm um direito fundamental à liberdade, mas esse direito não é, nem sequer para o próprio, ilimitado. Ou seja, o respeito pela liberdade e pela autonomia tem um limite, que é a dignidade humana. Assim o diz expressamente o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, justiça e paz no mundo”.
“O direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objectivo da dignidade da pessoa humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde, por exemplo” (Conferência Episcopal Portuguesa, Eutanásia: o que está em jogo?, Nota pastoral, 8-3-2016, nº 5).
De modo análogo a como recai sobre toda a propriedade privada uma hipoteca social, que obriga o dono a usar desse seu bem em prol do bem comum, sob pena de violar o estatuto definidor do direito, que não é apenas fonte de poderes, mas igualmente de deveres, também cada vida humana está obrigada a observar algumas exigências éticas irrenunciáveis. Se o próprio não souber respeitar a dignidade da sua condição humana, pode e deve ver limitada a sua autonomia. Na realidade, mais do que limitação da liberdade, trata-se da sua afirmação positiva e eticamente conformada, porque o fundamento axiológico desse direito é a própria dignidade humana. “A vida humana – como se lê na citada Nota pastoral – é o pressuposto de todos os direitos e de todos os bens terrenos. É também o pressuposto da autonomia e da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular”.
Os cidadãos não podem fazer de si mesmos o que quiserem. O ser humano não deve ser livre de se vender ou de se prostituir porque, para um ordenamento jurídico justo, a dignidade humana não é, em caso algum, alienável, nem sequer pelo seu titular, mesmo agindo consciente e voluntariamente. Seria também nula e sem efeito a renúncia à protecção legal devida à sua pessoa, porque o Estado entende ser seu irrecusável direito perseguir certos crimes, mesmo que o ofendido tenha consentido. O princípio jurídico e constitucional da liberdade está subordinado aos princípios da dignidade da condição humana e da absoluta indisponibilidade dos direitos fundamentais.
Com efeito, se alguém raptou, estuprou ou assassinou, é óbvio que o consentimento da vítima não pode obstar à actuação da justiça: mesmo consentido, nenhum desses crimes poderá ficar impune, por ser gravemente contrário à dignidade humana, que nem sequer pelo próprio é renunciável. Se o Estado entender que a vontade do próprio legitima o seu homicídio, porque não poderia essa mesma vontade justificar uma agressão, como acontece, por exemplo, na violência doméstica?!
O meu corpo não é meu, porque … eu sou o meu corpo! O corpo não é algo, mas alguém, porque ninguém pode existir senão no seu corpo. Sendo o corpo parte constitutiva da identidade pessoal, nem sequer o próprio pode dele dispor absolutamente.
Portugal foi um dos primeiros países do mundo a abolir a pena de morte; se for dos primeiros a legalizar a eutanásia – ainda só quatro Estados no mundo o fizeram! – atraiçoará o melhor da sua história: a sua tradição humanista.