Regressar a Lisboa no meio de Setembro, quando já está montado o teatro da política, dos jornalistas e da pressa dos factos, é uma espécie de viagem dentro da viagem. Enquanto avançamos em direcção ao mundo das notícias, da lei da cópia privada, da fiscalidade verde e do referendo na Escócia lá para trás, na estrada, vão ficando tabuletas de empresas que fazem furos, de residências sénior e de capitais disto e daquilo.

São dois países que só se cruzam nos lugares de pagar e receber. Aliás, seja nesse interior quase despovoado que fica para lá das tabuletas ou nas periferias urbanas onde as promessas de água abundante feitas pelas empresas dos furos são substituídas pelos anúncios às sex shop, cada vez somos menos cidadãos e mais contribuintes: o que pode destruir a vida de um político já não é a traição ao seu país mas sim a fuga ao fisco. Todos os crimes que não os fiscais são alegados. Até os homicídios são alegados crimes praticados alegadamente por um alegado homicida. Já no domínio fiscal todos somos culpados à partida. Diante da fita negra da estrada o óbvio torna-se evidente.

Tão esquecidos andamos dos cidadãos que fomos que, como percebo ao longo dessa viagem de regresso, muitos ao ouvir o discurso de Gordon Brown tiveram um sobressalto. Não era apenas o que ele dizia mas sim o eco que ele despertava em quem o ouvia, esse eco que vinha do tempo em que se fora cidadão antes de contribuinte, em que não se estava reduzido a um NIF cuja relação com o Estado é quase só uma questão de escalão de IRS, benefício fiscal e pagamento da respectiva taxa.

Ao ouvir o antigo primeiro-ministro britânico apetecia perguntar porque não terá aquele homem falado assim quando era primeiro-ministro? Será que já ninguém se lembra da última campanha eleitoral que protagonizou? Desastre é um termo doce para a descrever. Na verdade Gordon Brown não o fez porque não podia. Tal como Hollande não pode. Tal como Passos, Rajoy ou Cameron não podem. Eles não podem porque, a não ser em momentos excepcionais, como foi o referendo da Escócia, eles já não falam para os cidadãos que fomos, mas também não sabem o que dizer aos contribuintes que somos.

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Confundindo construção europeia com diluição das identidades nacionais, os líderes deixaram para os extremos o discurso sobre o patriotismo e os valores (sejam esses extremos protagonizados pelos produtores de discursos xenófobos ou pelos inventores das causas fracturantes) e centraram a sua retórica no campo das promessas. Esses foram os tempos em que o estado nacional se tornou assistencial: todos, por uma qualquer razão, eram merecedores do apoio estatal, de uma política própria, de um subsídio, de uma intervenção prioritária, de um programa, de uma linha de crédito, de uma unidade de missão…

Contudo esse tempo esgotou-se não porque os políticos se tenham cansado desse discurso redondo e reconfortante. Mas sim e pela prosaica razão de que não há dinheiro. Sem dinheiro o mais que os líderes conseguem é esse patético e pateta argumentário das folgas e das almofadas orçamentais e reafirmar a sua aposta na solução miraculosa do crescimento económico, cujo invocam com aquela fé xamânica dos recém-convertidos às maravilhas do pensamento positivo.

Não é por acaso que os discursos políticos do centro esquerda e direita mal se distinguem entre si – eles não se distinguem porque não existem – e que vemos a luta pela liderança do PS português ou dos gaulistas em França transformadas em combates de personalidades: não há discurso. Os actuais líderes políticos são a geração que ficou sem discurso e a quem uma multidão de analistas, assessores e jornalistas garante que não podem dizer o que sabem ser inevitável – o que chamamos direitos adquiridos não estão garantidos e vão deixar de ser direitos – sob risco de desiludir o eleitorado.

Temerosos das palavras sobra-lhes essa espécie de língua de pau – ironicamente chamam-lhe discurso de esperança – em que todos procuram falar muito dizendo o menos possível de forma a não traírem o que amargamente descobriram nos últimos anos: já não se trata de mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma, como fizeram aqueles que a si mesmos chamam grandes líderes da Europa, mas sim que muita coisa vai ter de mudar porque já ninguém e muito menos eles conseguem garantir que podemos ficar na mesma.

Quanto tempo demorará a fazer-se desta evidência um convincente discurso político para os contribuintes a que estamos reduzidos? Certamente mais que a mudar o reino dos céus. Afinal o paraíso já não é um jardim ou um local bíblico ou sequer idílico mas tão só um sítio onde não se pagam impostos.