O que se pode dizer a um filho que viu a mãe morrer? O que pode ter dito o ministro Paulo Macedo a David Gomes, que acabou de perder a mãe, quando o recebeu no Parlamento? Tenho dificuldade em imaginar. Honestamente. Até porque não conheço a história toda – julgo que ninguém conhece, pelo que foi tornado público – mas conheço os dilemas que se colocam a Portugal e a todos os países desenvolvidos quando um medicamente como o sofosbuvir surge no mercado.

Não conheço a história porque só ouvi explicações parcelares dos protagonistas. É verdade que a doente recusou medicamentação convencional mas com alguma eficácia? Porquê? Porque levou a autorização do Infarmed tanto tempo a chegar? E, quando chegou, seria que ainda ia a tempo? Todas as histórias clínicas são complicadas – sabemo-lo quase todos por experiência própria, mesmo em casos banais – e todo este drama se carregou de demasiada emoção e demasiada politização para sobrar suficiente racionalidade.

Neste caso, como em todos que envolvem vidas humanas e a esperança de as salvar, a reacção imediata, humana, popular, é dizer que nenhuma consideração económica se pode sobrepor à salvação de um doente. Fizemo-lo e fazemo-lo tantas vezes nas nossas famílias que nos parece absolutamente óbvio que o Estado não pode deixar de o fazer da mesma forma. Eu também diria o mesmo. É o impulso natural. Contudo…

Contudo todos sabemos que é necessário fazer escolhas. Que muitas dessas escolhas começam por ser feitas pelos médicos. Porque eles sabem que não é possível salvar toda a gente, todas as vezes, todo o tempo.

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O caso do medicamento que está agora em causa é, ao mesmo tempo, um caso exemplar e um caso limite: o sofosbuvir, o fármaco do laboratório norte-americano Gilead Sciences que deu uma esperança nova, de cura, aos doentes com hepatite C. Doentes que se sabem condenados a prazo. É, parece, o medicamento milagroso por que tanto se esperou.

O problema, como se sabe, é o preço: cada tratamento de três meses custa 42 mil euros (começou por custar 48 mil) e pode ter de ser repetido. Se fosse administrado a todos os doentes com hepatite C, como a sua associação reivindica, poderiam ser necessários entre 500 e mil milhões de euros. O que represente cinco a dez por cento do orçamento de todo o SNS. O que pode equivaler ao orçamento total, para medicamentos, de todos os hospitais do SNS.

Dir-se-á: mas se isso salvar 10 ou 12 mil vidas, então temos de fazer das tripas coração. É o que dizem os doentes. É o que diria qualquer doente. É o que estaríamos a discutir com o ministro da Saúde não houvesse um outro factor a condicionar os dados do problema: esse preço não é racional, é especulativo, é obscenamente especulativo. Podemos percebê-lo se pensarmos que o preço do sofosbuvir no Egipto é de um pouco menos de 800 euros. E que nos Estados Unidos é ainda mais elevado do que na Europa, é de 70 mil euros por tratamento. Mais: só em 2014 as vendas do sofosbuvir atingiram o astronómico valor de nove mil milhões de euros, o equivalente a todo o orçamento do SNS. Isso colocou essa droga entre as que mais receita geraram no seu primeiro ano depois de chegarem ao mercado.

Não sei se, como referiu o ministro Paulo Macedo, o custo do desenvolvimento deste fármaco já está amortizado. Também não sei se estamos perante um lucro de cinco mil por cento por comprimido, como disse David Gomes à saída do encontro com o ministro. Mas há uma coisa que sei: a campanha que o governo português está a fazer, em conjunto com os outros governos europeus (já houve reuniões de ministros da Saúde da UE em que o tema foi tratado), para forçar a farmacêutica a baixar os seus preços é uma campanha justa e indispensável. Com preços assim nunca será possível tratar todos os doentes – nem em Portugal, nem em Espanha, onde se vive uma situação quase idêntica e uma associação de doentes também já fez um cordão humano até à residência do primeiro-ministro. Nem na generalidade dos países europeus com sistemas públicos de saúde. Um papper da Fundação Open Society precisamente sobre este fármaco também permite ver, fazendo um paralelo com o que se passou no tratamento do HIV, que só com preços muito mais baixos se conseguirá realmente chegar a todos os doentes que precisam do medicamento.

O dilema do ministro – o dilema que esteve por certo presente na sua conversa com David Gomes – não é apenas o de saber se há hoje orçamento para pagar todos os tratamentos, é o de perceber que ceder à chantagem da farmacêutico compromete a generalização do tratamento no futuro. O dilema é perceber que, enquanto este braço de ferro dura, há doentes que podem morrem, ou morrem mesmo. O dilema é mesmo assim definir, com os especialistas do sector, os critérios que podem separar os doentes entre aqueles que receberão o fármaco mesmo a 48 mil euros, e os que terão de esperar. É que ninguém quer esperar. E, na oposição, todos desejam cavalgar a causa desses doentes.

Para falar verdade não me surpreende o tom deste debate. Recordo-me da histeria com que, há pouco mais de dois anos, foi recebido um parecer da Conselho Nacional de ética para as Ciências da Vida sobre racionamento na área da saúde – mais precisamente sobre critérios para administrar certos fármacos inovadores. Em todos os países do mundo desenvolvido que há muitos anos, mais de duas décadas, se discute esse tema, e compreende-se porquê: se não se fizerem escolhas na área da saúde, os seus custos serão incomportáveis para a sociedade. Pela razão simples que, mesmo não fazendo nada, os seus custos são sempre crescentes. Crescentes em função do próprio desenvolvimento da ciência, crescentes porque há medicamentos cada vez mais caros – o sofosbuvir não é caso único, um dos fármacos mais sofisticados de tratamento do cancro custa mais de 400 mil euros/ano por doente –, crescentes porque estão sempre a aparecer novos meios completares de diagnóstico., crescentes porque a população está a ficar cada vez mais idosa.

É um quadro em que não podemos dizer apenas que “a saúde não tem preço”. É um quadro que exige responsabilidade, ponderação e uma discussão transparente. Costumo recomendar, a este propósito, um texto de Pedro Pita Barros publicado no número 2 da revista XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, pois aí coloca-se a discussão nos seus termos certos: defende-se que há sempre que fazer escolhas, mas que essas escolhas devem ser claras para os utentes e a classe médica, apesar dos dilemas éticos serem tremendos. Por exemplo, “deverá ser valorizado o acréscimo na longevidade, independentemente da qualidade de vida, ou deverá o objectivo ser maximizar os anos de vida com qualidade?” Outro exemplo: se se quiser “maximizar o bem-estar social”, será que “na escolha de distribuição dos recursos por grupos de idades diferentes se deve atribuir prioridade às populações mais jovens, uma vez que, em média, o benefício de receber tratamento é maior (maior longevidade obtida)”?

Este debate não traz de volta a mãe de David Gomes, mas sem este debate não teremos critérios claros, consensualizados na sociedade, critérios que ajudem os decisores políticos a superar dilemas como aquele que seguramente está a viver o ministro, critérios que não flutuarão ao sabor de um debate parlamentar.

Repito: não sei o que se pode dizer a um filho que acabou de perder a mãe. Mas gostava que no meu país, se um dia eu próprio me vir numa situação semelhante, a decisão não fosse casuística (e não sei sequer se foi o que aconteceu neste caso), gostaria que a decisão fosse informada por critérios éticos e acompanhada por boas práticas médicas. Infelizmente tenho pouca esperança que isso aconteça.

PS. Já depois de este artigo ter sido escrito e publicado, o Ministério da Saúde chegou a acordo com a farmacêutica, um acordo que, aparentemente, permite reduzir a cerca de metade o custo dos tratamentos. É uma boa, uma excelente notícia. “Um milagre”, como ouvi há pouco dizer um dos doentes a uma rádio. O Ministério esteve bem em ser duro na negociação. O drama é que entretanto morreram pessoas. Essas ninguém as traz de volta.