A carta que, com data de 16 de Julho passado, cerca de meia centena de católicos escreveram ao Papa Francisco, acusando-o de heresia, não é inédita, mas é insólita, injusta e muito infeliz.

Há precisamente cinco séculos, Martinho Lutero revoltou-se contra o papa e a Igreja católica, dando origem aos vulgarmente designados por ‘protestantes’. Também os signatários desta “correcção filial”, embora não sejam, em sentido próprio, protestantes, são-no de facto, por este seu protesto contra o Santo Padre.

Não obstante o seu louvável zelo pela ortodoxia e suposta boa-fé, manifestam uma considerável presunção e arrogância, quando dizem que foram “obrigados a dirigir a Sua Santidade uma correcção, devido à propagação de heresias produzidas pela Exortação apostólica Amoris laetitia e de outras palavras, actos e omissões de Sua Santidade”. É algo confusa a alusão a “heresias produzidas pela dita Exortação apostólica, porque nenhuma heresia é ‘produzida’ por um texto, nem por meras “palavras, actos e omissões”, mas por alguém que, neste caso, só pode ser o Papa Francisco.

Segundo o Código de Direito Canónico, “diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o baptismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica” (cânone 751). Portanto, só é herética a negação, por um fiel que o faça de forma consciente e pertinaz, de algum dogma. Não constando, como certamente não consta, essa intenção e vontade por parte do Sumo Pontífice, é moralmente temerária e juridicamente improcedente a acusação de heresia, também porque nada permite supor, no Papa Francisco, a consciência e intenção de contradizer a fé da Igreja.

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Como é sabido, nenhum bispo, nem a totalidade dos cardeais pode, em caso algum, depor um Papa validamente eleito. Nem sequer o concílio ecuménico poderia fazê-lo. Não há nenhuma forma canónica pela qual se possa obrigar o bispo de Roma a renunciar ao seu ministério eclesial.

E se o Papa for herege?! Segundo o Código de Direito Canónico, qualquer clérigo que incorra em heresia, fica automaticamente excomungado e, em consequência, cessa no seu ofício eclesiástico (cân. 1364), mas não o romano pontífice, porque “a primeira Sé por ninguém pode ser julgada” (cân. 1404). “O Papa na Igreja é juiz supremo, a quem só Deus pode julgar. A esta prerrogativa, proveniente do direito divino, nem sequer o Papa pode renunciar. Ao dizer que a primeira Sé não pode ser submetida ao juízo de poder humano algum, deve entender-se acerca tanto das resoluções que o Papa pronuncie, como daquelas que ele faça com aprovação ou aceitação expressa e formal” (Communicationes, 10, 1978, p. 219).

Como não há qualquer hipótese legal de destituir o Papa Francisco, os subscritores desta carta apelam à “dúvida” quanto à “validade da renúncia do papa emérito Bento XVI ao papado”. De facto, se a resignação de Ratzinger não tivesse sido válida, continuaria a ser ele o Papa, em cujo caso a eleição de Jorge Mário Bergoglio teria sido nula e sem efeito. Mas também este argumento não colhe porque o Papa emérito, ciente desses rumores, já várias vezes veio a público desmenti-los, porque não têm qualquer fundamento.

Entendem ainda os autores da “correcção filial” que, por causa da Exortação apostólica Amoris laetitia, os fiéis católicos encontram-se agora num difícil dilema: “ou chegarão a adoptar as heresias ora propagadas ou, conscientes de que essas doutrinas são contrárias à Palavra de Deus, duvidarão ou negarão as prerrogativas dos Papas”. Ou seja: ou são fiéis à palavra de Deus e infiéis ao Papa, ou fiéis ao Papa e infiéis à palavra de Deus. A alternativa não faz contudo sentido porque a palavra de Deus obriga à fidelidade ao Papa, cujas afirmações não contradizem os ensinamentos revelados.

Os autores da “correcção filial” referem ainda as inúmeras passagens da Amoris laetitia que entendem contrárias à doutrina católica. Esquecem, contudo, que o documento que tão meticulosamente examinaram não pretende ser um texto dogmático, nem normativo, mas pastoral e, por isso, a sua exegese deve ser feita em sintonia com o magistério e a tradição da Igreja e não contradizendo-os. Foi aliás o que fizeram três teólogos especializados nestes temas, em publicação agora editada em português e prefaciada por D. Nuno Brás, Bispo auxiliar de Lisboa (José Granados, Stephan Kampowski, Juan José Pérez-Soba, Acompanhar, discernir, integrar, Aletheia, 2017).

Também no Evangelho há expressões que não são susceptíveis de uma exegese literal. Quando Jesus diz que a mulher samaritana já teve “cinco maridos” (Jo 4, 18), não afirma que o foram validamente, ainda que os designe como cônjuges dela. Jesus, ao referir-se aos cinco homens que tinham convivido maritalmente com a samaritana, não ajuizou, moral e juridicamente, essas relações. Uma exegese fundamentalista desta passagem evangélica poderia levar a afirmar o absurdo: Jesus Cristo autorizaria até cinco casamentos consecutivos, pois chamou ‘maridos’ aos cinco primeiros parceiros da samaritana, mas não mais, porque ao sexto foi negada essa condição …

Quando, na manhã da Páscoa, São João chegou ao sepulcro, “inclinou-se para observar (…) mas não entrou.” Porque o não fez?! Para dar prioridade a Pedro, que o seguia. Já não parecia fazer sentido esta deferência com Simão porque, se é verdade que Pedro fora constituído chefe da Igreja, depois negara três vezes o Mestre. À conta da infidelidade de Pedro, João, não menos apóstolo do que ele, podia supor que já não lhe devia especial respeito, nem obediência, mas uma correcção filial!

Não se pode ser bom católico sem ser fiel ao Santo Padre. Aos discípulos de Jesus não compete julgar ninguém, muito menos o vigário de Cristo na terra, nem ajuizar o seu magistério, mas segui-lo com fidelidade e obedecer-lhe com filial reverência. Foi o que fizeram João e todos os cristãos que, ao longo dos dois mil anos da história da Igreja, são, pelo seu amor e obediência ao Papa, outros tantos discípulos predilectos do Senhor.