Os cemitérios de empresas e de programas eleitorais estão cheios de magníficos planos de negócio e de políticas públicas que tinham uma coisa em comum: funcionavam optimamente no papel só que depois a realidade foi madrasta.

O papel aguenta tudo, costumava dizer-se. A folha de cálculo aguenta tudo, diz-se agora. Não ponho em causa a competência técnica, a crença programática e a honestidade intlectual do trabalho que o grupo de economistas fez para o PS – Mário Centeno, como outros que integram o grupo, só se envolveria e daria a cara por um trabalho sério em que acredita.

Mas, e esta é mais uma banalidade naqueles cemitérios, temos de ficar de pé atrás quando as despesas são certas, quantificadas e calendarizadas mas as receitas e os ganhos são hipotéticos, incertos e sem encontro marcado com dia e hora.

O PS apresentou ontem as linhas principais linhas orçamentais do que deverá ser o seu programa eleitoral, algumas medidas de políticas económicas e sociais e o cenário macroeconómico que delas resulta.

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De tudo, o menos importante na diferenciação entre PS e Governo são as medidas de grande impacto orçamental. Estamos a falar da reposição dos salários da função pública e do fim da sobretaxa de IRS: a atual maioria PSD/CDS apresenta um calendário até 2019 para o fazer e o PS promete fazê-lo até 2017, em metade do tempo. O ritmo mais acelerado defendido por António Costa é certamente uma boa notícia para a generalidade dos contribuintes e, sobretudo, para os trabalhadores do Estado. Como vai ser paga? Com um défice orçamental superior ao previsto pelo Governo dos quatro anos da próxima legislatura. No cenário do Governo o défice passa de 1,8% do PIB em 2016 para um excedente orçamental de 0,2% em 2019. Nas contas do PS mantemos o Estado com défice, que cai de 3% no próximo ano para 1% em 2019.

A plano orçamental socialista passa por esta ideia simples: aumentar já e de forma mais rápida os rendimentos da generalidade da população, assumir nos primeiros dois a três anos a fatura orçamental dessas medidas mas depois beneficiar de hipotéticos ganhos económicos e nas contas públicas que daí resultarão. Como? O aumento dos rendimentos aumenta o consumo, que faz subir a receita fiscal e os negócios das empresas, o que aumenta o investimento e o emprego, que gera mais aumento do consumo… e por aí fora, num ciclo que se quer virtuoso.

A seu favor nesta proposta diferenciadora o PS tem a história dos últimos quatro anos e o resultado da aplicação do programa de ajustamento. É que as projeções iniciais da troika, feitas em 2011, também jazem hoje naquele cemitério. Quase tudo correu pior do que estava previsto: crescimento, receita fiscal, emprego, rendimentos, impacto social.

Contra si, o PS tem a década anterior, onde não faltou dinheiro atirado para cima da economia – rendimentos, subsídios, crédito, investimento público – e o resultado foi o que se viu: o crescimento não deixou de ser anémico, a dívida cresceu e tivemos que pedir socorro para evitar a bancarrota.

Será esta uma alternativa viável? Não sabemos. O que sabemos e é certinho é que o caminho dos socialistas nesta matéria propõe aos portugueses um acordo a prazo: receba já no salário para pagar depois com impostos futuros. Quando se troca salário líquido (seja pela reposição dos cortes salariais ou pelo fim da sobretaxa de IRS) por um défice de Estado mais alto é isso que se está a fazer, porque a dívida pública resultante de défices mais elevados terá de ser paga daqui a uns anos.

Mas a maior diferença entre o caminho socialista e o caminho do PSD/CDS não está aqui. Mais do que nas contas orçamentais, é na visão para o desenvolvimento e competitividade do país que encontramos a maior e mais ideológica clivagem.

O Governo quer reduzir os custos do trabalho a cargo das empresas com a descida da Taxa Social Única e aumentar a flexibilidade laboral permitida pela lei. O PS propõe o aumento imediato dos ordenados líquidos com a redução da Taxa Social Única a cargo dos trabalhadores – fatura que pagam novamente no futuro com pensões de reforma mais baixas – e o reforço das leis laborais para reduzir os contratos a prazo.

O Governo fez aprovar um plano de redução do IRC pago pelas empresas. O PS quer travar essa descida e pegar no dinheiro que dela resulta para financiar a Segurança Social.

O Governo não fala na reposição das prestações sociais que foram cortadas (Rendimento Social de Inserção e Complemento Solidário para Idosos). O PS quer repô-los.

O Governo quer reduzir a dimensão do Estado e da despesa pública. O PS quer manter o nível atual de funcionários públicos, substituindo cada um que saia.

O Governo quer reduzir o papel e o peso do Estado na economia, tentando dinamizar o papel empreendedor dos privados. O PS quer reforçá-lo, aumentando as suas competências e criando núcleos setoriais de excelência, trazendo o empreendedorismo para dentro do Estado.
São estas duas visões distintas, antagónicas dentro dos limites de uma economia de mercado, que começam a estar em cima da mesa e que vão a votos daqui a meio ano e que podem resumir-se no equilíbrio de papeis, de poderes e de recursos entre o Estado e a iniciativa privada.

Para o PS, o Estado tem de ter um papel central nos apoios sociais e de ser um agente dinamizador para a competitividade. Para o PSD, o Estado social tem de apoiar os mais necessitados e aos privados deve ser dado espaço e um ambiente que permita o reforço da competividade e do crescimento.

O PS acredita que o papel de motor da economia ainda radica muito no sctor público. O PSD entrega-o às empresas.

Este é um debate ideológico importante que nunca se colocou de forma tão evidente e que já tardava em Portugal. Mais do que as contas da “mercearia” orçamental – que são importantes mas onde não há milagres, como se vê – estamos a falar de liberdade económica, peso e custo do Estado e dos impostos que estamos dispostos a pagar por ele.

Noutro tempo, noutras latitudes, noutras opções ideológicas e económicas, o líder chinês Deng Xiaoping disse que não se incomodava se o gato era branco ou preto desde que caçasse ratos.

Todos querem que o país se desenvolva, que a economia cresça, que a prosperidade alastre e seja sustentável, que todos tenham acesso a uma vida digna. Estes são os ratos que temos que caçar.

Os caminhos propostos é que são distintos e os eleitores vão ser convidados a apostar entre o gato do Governo e o gato do PS. E a escolha terá de ser feita mais por posicionamento ideológico e de forma de estar na vida do que pela leitura de linhas infinitas de folhas de Excel, onde todos os gatos são pardos.

jornalista
pauloferreira1967@gmail.com