(Definição de forfetário (adjectivo): cujo valor é definido por uma convenção.)

1. Regime forfetário para impostos

Quando há uma semana e meia escrevi acerca das minhas primeiras impressões sobre o orçamento, referi que havia uma descida razoavelmente generalizada dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e alguma estabilidade nos impostos sobre as empresas por contrapartida a uma subida de impostos sobre o consumo. No entanto, houve um aspecto que me escapou: o regime simplificado para trabalhadores independentes. Os famosos recibos verdes, que, na verdade, eram fisicamente azuis. Só agora, com os recibos electrónicos, é que têm um fundo verde.

Tanto quanto percebo, as primeiras reacções às mudanças propostas (incluindo as minhas) estavam erradas, o que não admira, dado que o regime simplificado fica bastante complicado. A principal característica do regime simplificado é que, até 2017, se considerava que às receitas totais do contribuinte correspondia uma percentagem fixa e pré-determinada das despesas, apenas se pagando IRS sobre a diferença entre as receitas e as despesas presumidas.

Apenas podem optar por este regime simplificado contribuintes com receitas anuais inferiores a 200.000€. Todos os outros são obrigados a ter contabilidade organizada. O motivo é relativamente simples. Não faz sentido obrigar um pequeno negócio a ter todos os custos com empresas de contabilidade para cumprir as suas obrigações fiscais como se se tratasse de uma empresa a sério. Seria desnecessariamente oneroso e burocrático. Assim, presume-se que uma percentagem das receitas (nos exemplos que vou dar é de 25%, o que abrange designers, tradutores, etc) são despesas de actividade.

Basicamente, o governo propõe uma mudança ao regime de IRS que acaba com esta presunção e obriga os trabalhadores independentes a apresentar recibos das despesas com a sua actividade. Quais as consequências disto? Vale a pena distinguir dois casos. Os falsos recibos verdes e os verdadeiros trabalhadores independentes.

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Falsos recibos verdes

Aquilo a que chamamos falsos recibos verdes são os trabalhadores por conta de outrem que têm uma situação laboral absolutamente precária. Por assim dizer, a seguir aos desempregados, são a base da cadeia alimentar. Estas pessoas não têm despesas com a actividade para apresentar, pelo que, objectivamente, passam a pagar uma taxa de IRS efectiva bastante maior do que pagavam antes. Para evitar aumentos catastróficos no IRS, propõe-se que possam deduzir ao rendimento colectável 4104€. Desta forma, trabalhadores que recebam menos de aproximadamente 16.416€ por ano ficam a ganhar com o novo regime e todos os que ganham acima disso ficam a perder. Este valor anual corresponde a um ordenado bruto mensal de 1.173€ num trabalhador por conta de outrem (que recebe 14 salários por ano). Todos os que recebem mais ficam a perder. Por exemplo, alguém que receba 30.000€ por ano (que corresponde a 2.142€/mês) fica a pagar mais 22% de IRS com este novo regime simplificado. Um aumento destes de um ano para o outro, numa altura em que muita gente vê o seu IRS baixar, é brutal.

Eu percebo que se argumente que o que está errado é haver falsos recibos verdes. Não posso estar mais de acordo. Mas o combate a este flagelo não pode passar por tratá-los ainda pior do que já são.

Verdadeiros trabalhadores independentes

Este caso é diferente do anterior, dado que estas pessoas terão, de facto, despesas reais para apresentar e para abater às suas receitas. Assim, trabalhadores que não tenham rendimentos muito elevados muito provavelmente conseguirão apresentar facturas no valor de 25% dos seus rendimentos, pelo que não ficam prejudicados com a nova lei. Profissionais com rendimentos mais elevados, por exemplo, advogados com receitas de 100.000€ anuais ou mais, terão mais dificuldades em encontrar tantas despesas e verão os seus impostos aumentar substancialmente. Muito provavelmente, estes profissionais criarão sociedades unipessoais por quotas fictícias, o que lhes permitirá pagar IRC em vez de IRS e optar pelo regime de IRC simplificado (sim, também há um regime simplificado de IRC…).

Independentemente de se concordar ou não com a medida, não faz qualquer sentido dizer que não há agravamento de imposto, como quer o ministro das Finanças quer o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais têm vindo a dizer.

O Diabo está nos detalhes

Na verdade, ainda é cedo para perceber o que vai acontecer. Tudo depende daquilo que possa contar como despesa. Num extremo, se tudo ou quase tudo contar como despesa, então, na prática, o novo regime não terá qualquer impacto fiscal. Apenas obrigará as pessoas a passarem a vida no portal online das finanças a validar facturas. Se, pelo contrário, o critério for tão restritivo que nada conte, então estamos a falar de um aumento desumano de impostos para muita gente.

Ouvindo o secretário de Estado, fica-se com a ideia de que tudo e mais alguma coisa pode entrar como despesa. Chegou até a sugerir que as despesas de supermercado de alguém que trabalhe a partir de casa podem contar. Mas não consigo perceber como é que é assim tão simples. Como distinguir o que um tipo come em serviço do que come fora de serviço? Como distinguir a electricidade que se gasta em casa para ver um filme ou para trabalhar? Como saber se um advogado comprou um fato para o trabalho (outro exemplo dado pelo Secretário de Estado) ou para um casamento? Nada disto está explicado na actual proposta de Orçamento do Estado, pelo que uma avaliação final das implicações desta mudança terão de ficar para depois.

Uma conclusão, no entanto, podemos retirar. O regime simplificado vai passar a ser bastante complicado, o que é errado. Todos perdem. Ao contrário do que diz o governo, não basta ter o e-factura para todo este processo ser simples, isto pela simples razão de que a divisão entre despesas profissionais e pessoais não é nada simples. Alguém que reserva um quarto da sua casa como escritório como deve contabilizar o custo desse espaço? E, se pintar esse quarto, isso é uma despesa profissional ou pessoal? Alguém que vá de carro ter com um cliente e que no regresso apanhe os filhos na escola, como vai dividir as despesas de gasolina?

Um verdadeiro regime simplificado deve ser um regime forfetário, ou seja, os custos devem ser presumidos e não carecerem de prova, evitando-se assim um monte de complicações. Se consideram injusto e querem que os profissionais liberais mais bem pagos paguem mais impostos, basta mudarem os coeficientes técnicos. Por exemplo, podem definir simplesmente que até 50.000€ por ano se desconta 25%, e acima disso se desconta apenas 15%. Conseguiam o agravamento fiscal pretendido, sem complicarem o regime simplificado.

Porque, convenhamos, usar o regime simplificado para complicar o regime fiscal é uma contradição nos termos.

2. O testemunho de mulheres adúlteras em tribunal

Por um lado, uma mulher adúltera é uma «pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral.» Naturalmente, o seu testemunho não faz prova ou seja, não é credível em tribunal. Por outro lado, há um ditado popular que nos diz que a “mulher honesta não tem ouvidos”. Se não tem ouvidos, é surda, se é surda também não vale muito como testemunho.

Daí se conclui que o testemunho das mulheres só deve ser aceite em tribunal em situações extraordinárias, nomeadamente quando não há nenhum homem disponível. Aquela tão polémica passagem do Corão que sugere que são necessárias duas mulheres para substituir o testemunho de um só homem peca assim por defeito.

Em vez de se estar a gastar tempo e recursos a ouvir mulheres adúlteras em tribunal, mais vale aplicar um regime forfetário e convencionar que o valor de tal testemunho é nulo, Ouvindo-se apenas o homem, tudo é mais célere, poupa-se trabalho a todos e, no fim, obtém-se o que interessa: Justiça. (Assim com “J” grande e tudo!)