Depois de todos os testes de paternidade, dizem-nos que este orçamento não é de ninguém. Sim, o orçamento é o resultado de muitas pressões, como seria de esperar num governo dependente da assistência política do PCP, num país dependente da assistência financeira da UE. Mas mais do que isso, este é um orçamento em que ninguém acredita. Os credores fazem subir os juros da dívida pública, os parceiros europeus sugerem “medidas adicionais”, e o ambiente começa a ser o dos PECs de 2010-2011. Mário Centeno fala do fim da austeridade. Mas o fim parece-se cada vez mais com o princípio.

A discussão desta manhã na Assembleia da República não deixou dúvidas: a questão já é só a de saber quem é responsável pela tempestade que todos aparentemente esperam. Quem é que afinal menos conseguiu cumprir o défice? Quem é que afinal levou mais puxões de orelhas da Comissão Europeia? A oposição fala das últimas quatro semanas, o governo dos últimos quatro anos. Todos têm razão: nos últimos quatro anos não se mudou o país, mas nas últimas quatro semanas perdeu-se a confiança dos credores. Porquê? Porque é que, apesar de tantas recomendações, o país não mudou, e porque é que, apesar de tantos avisos, se pôs a confiança dos credores em risco?

Basicamente, porque a oligarquia receia menos os seus parceiros europeus do que as suas clientelas nacionais. O governo anterior, como um dia explicou Vítor Gaspar, preferiu impostos em vez de mudanças estruturais. O actual governo foi pelo mesmo caminho: manteve a pressão fiscal, mas transferiu-a dos grupos de interesse organizados e protegidos pelo PCP (conhecidos agora por “as famílias”), para massas de consumidores que não estão organizadas e não são protegidas por ninguém, como os automobilistas e os fumadores. Nada disto tem a ver com a “justiça social” (há menos dinheiro para os pobres do que para os funcionários públicos com remunerações elevadas), mas com a disputa entre os oligarcas pela fidelidade dos seus dependentes.

Todos os jornais publicaram trabalhos a explicar quem ganha. Não é claro, porque nada é definitivo: os funcionários também têm automóvel, e podem subir de escalão. O orçamento é um processo, uma deriva tão complexa como imprevisível. Tira com uma mão o que dá com a outra (como no caso da compensação às empresas pelo imposto sobre produtos petrolíferos). É susceptível de todas as pressões. Mas essa é precisamente a lição: em Portugal, o que importa não é investir ou trabalhar, mas perceber o que fazer e onde estar para pagar menos e receber mais do Estado. Daí que os conselhos de António Costa sobre como praticar legalmente a “evasão fiscal” não sejam para rir, mas para levar a sério. É esse o país do orçamento: um país onde a política substituiu a economia, onde vale a pena fazer lóbi ou fazer greve, mas vale menos a pena o trabalho ou o investimento.

Donde vem a disposição da sociedade portuguesa para preferir a distribuição da pobreza pelo Estado, à produção de riqueza pelos cidadãos? Talvez neste país seja mais fácil aos demagogos populistas fazer de conta que os impostos são pagos pelos outros, uma vez que mais de metade das famílias não paga IRS, e só um terço das empresas paga IRC. Ou talvez o medo da mudança (o “liberalismo”) seja maior numa população envelhecida e dependente, a quem os reformistas ainda não conseguiram persuadir de que o “empobrecimento” não deriva da reforma, mas do imobilismo. Mas nada talvez explique tanto como a possibilidade de as coisas serem assim. E essa possibilidade tem dois nomes: o BCE e a OPEC, isto é, os juros baixos e a energia barata. Quando isso mudar, mudaremos. Antes, como já se viu, não.

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