Há muito boa gente que pensa que isto dos milagres é mais um artifício clerical para enganar as pessoas simples e as convencer a aderir à supersticiosa religião dos dogmas, dos mistérios e de outras indecentes superstições. Nada mais falso, até porque não é a Igreja, mas sim a ciência, quem acredita em milagres, porque a noção de facto extraordinário decorre da comprovação científica da inexplicável anormalidade de um fenómeno que, por contrariar as leis que regem a realidade, tem que ser forçosamente atribuído a uma intervenção sobrenatural. Só quem conhece, com rigor, as leis a que obedecem os fenómenos naturais pode, portanto, ajuizar uma tal excepção, pelo que a noção de milagre, mais do que religiosa, é essencialmente científica.
Não só o milagre é, por definição, um facto apenas constatável cientificamente como, para um crente, é um acontecimento dispensável. Com efeito, para um fiel, tão milagroso é o nascimento do sol todos os dias como seria, porventura, o seu não aparecimento porque, por força da sua própria fé, acredita que todas as coisas têm, como sua última causa, Deus, a quem tanto dá que o sol descreva todos os dias a mesma órbita ou que, para variar, dela se distancie. Para o crente, o milagre é, de certo modo, irrelevante, porque, como sabe que tudo é, de algum modo, milagre, não o espanta que algumas coisas o sejam de uma forma mais espectacular.
História breve de um milagre recente: no dia de Natal de 2013, o pároco do santuário de S. Jacek, na diocese de Legnica, na Polónia, inadvertidamente deixou cair ao chão uma partícula consagrada, ou seja, uma sagrada hóstia. Segundo a fé cristã, depois da consagração, o pão converte-se no corpo de Cristo, presente real e verdadeiramente na Eucaristia, muito embora a aparência de pão se mantenha inalterada. Como essa presença divina se conserva enquanto se mantiverem as características do pão, quando uma hóstia não pode, por qualquer motivo, ser consumida é colocada num recipiente com água, dentro do sacrário porque, enquanto não se dissolver completamente, a presença de Cristo, segundo a doutrina católica, também se mantém.
Ora aconteceu que, passada mais de uma semana, a dita hóstia, em vez de se dissolver na água, o que costuma acontecer passados dois dias, evidenciava uma coloração sanguínea, que de modo algum podia ser atribuída ao líquido, que era apenas água. Informado o bispo da diocese, tomou este a decisão de ceder, para investigação, algumas amostras daquela hóstia, a uma professora de medicina e a um histopatologista, que fizeram a recolha, sabendo portanto a sua proveniência. Mas os restantes investigadores que, depois, analisaram a hóstia e sobre ela se pronunciaram, desconheciam a sua origem. A conclusão de uns e outros foi unânime: “Na imagem histopatológica descobriu-se que os fragmentos do tecido contêm partes fragmentadas de músculo estriado. O conjunto da amostra é muito semelhante ao músculo cardíaco, com as alterações que acompanham muitas vezes a agonia. Os estudos genéticos indicam a origem humana do tecido”.
No mesmo sentido se expressou, em conferência de imprensa, a 12 de Abril de 2016, a prof. Bárbara Engel, cardiologista, que também declarou que a coloração da hóstia não se pode cientificamente explicar pela eventual acção de bactérias. Depois de realizados estes exames pelos investigadores da Universidade de Breslávia, os mesmos foram repetidos por peritos da Universidade da Pomerânia, em Szczecin, também na Polónia, cujo veredicto foi coincidente: as fibras correspondem a tecidos do miocárdio e aquilo que as envolve é tecido conjuntivo.
Também chamaram a atenção dos estudiosos outras incongruências científicas. O tecido observado apresentava as características exclusivas das fibras não necróticas, ou seja, era um tecido ainda vivo, e mostrava sinais de espasmos rápidos do músculo cardíaco, típicos da fase extrema que precede a morte, a agonia. Por outro lado, tendo a hóstia permanecido uma semana dentro de água, deveria apresentar os efeitos próprios de um organismo que sofreu um processo de autólise, isto é, a autodestruição provocada por acção das enzimas intracelulares, o que, contudo, não aconteceu. Mais ainda, depois de secado naturalmente, o fragmento de cor sanguínea manteve, desde então, o seu aspecto, apesar de não ter sido estabilizado ou conservado a uma temperatura especial. “Isto significa – segundo o parecer do prof. Stanislaw Sulkowski, da Faculdade de Medicina da Universidade de Bialystok – que, se se atribuísse a uma bactéria, o material se teria desintegrado, fragmentado e mudado de aspecto. Qualquer cultura microbiana, ainda que colocada no material mais limpo possível, depois de uma semana tem um aspecto completamente diferente”.
Embora a Igreja seja, por princípio, céptica em relação a milagres ou outros fenómenos sobrenaturais, até porque, nestas coisas, geralmente o que parece extraordinário raramente o é, não pode contudo deixar de neles crer, quando é a evidência científica que os impõe. O milagre é isso mesmo: uma constatação científica que a Igreja se limita a acatar e não uma imposição da Igreja de algo que, por se opor às leis científicas, é contrário à ciência e à razão. A fé cristã é racional: quem não acredita nos milagres que a ciência prova, opõe-se à razão e à ciência e, portanto, à fé. É essa atitude anticientífica que está na base de um certo ateísmo militante e irracional, que alguns confundem com a verdadeira fé. Foi a essa falsa fé que Dostoievsky aludiu quando, referindo-se aos seus conterrâneos, disse que alguns tinham tanta fé que até eram ateus!