Noutro dia, no carro de uma amiga, procurávamos um lugar num grande parque de estacionamento. O parque estava impossivelmente cheio e nós tínhamos mesmo pressa de chegar a uma reunião. Só havia um lugar vazio. Era daqueles que estão reservados para mulheres grávidas e pais com bebés.
Estávamos mesmo com pressa. Olhámos uma para a outra. Ela olhou para o lugar, abanou a cabeça e passou à frente. Cinco minutos depois, lá descobrimos outro lugar e chegámos dez minutos atrasadas à reunião (o que, para uma maníaca da pontualidade como eu, é doloroso, mas voltarei ao tema mais à frente).
Não há nada que me descanse mais do que saber que os meus amigos não são pessoas com tendência para quebrar pequenas regras. Nada me embaraça tanto como quebrar uma pequena regra. É muito mais provável que me encontrem a dançar na rua.
Mas a preocupação da minha amiga surpreendeu-me. Muito. Porquê? Porque ela é portuguesa e, pelo menos durante uns momentos, não praticou a arte marcial muito portuguesa do Quero-lá-Saber. Segundo as regras do Quero-lá-Saber, ela deveria ter ocupado o lugar reservado para as grávidas, com a desculpa de que estávamos com pressa e era só um bocadinho.
O Quero-lá-Saber distingue-se das outras artes marciais, que normalmente são reservadas para momentos de grande perigo ou para filmes, porque é utilizada todos os dias em Portugal, por toda a gente. O Quero-lá-Saber está na falta horrível de pontualidade (“estamos a chegar, é só um minuto”…) ou na tendência para estacionar o carro onde dá na gana. Inclui, quando estamos no café, em frente do balcão, a tentativa de tentar passar à frente de quem tinha chegado primeiro, porque o nosso café é sempre mais importante do que o dos outros.
O Quero-lá-Saber é praticado por quem não respeita o sistema de senhas nos CTT, porque não vai comprar nada, é só para perguntar uma coisa. É uma arte aperfeiçoada pelo peão que vai a correr com toda a pressa no passeio, mas chega à passadeira, e faz questão de atravessar a rua, parando o trânsito, à velocidade de um caracol, só porque sim. É o desplante da pessoa que espera na fila para comprar o bilhete de comboio, rabugenta porque as pessoas à sua frente estão a ter grandes conversas com o empregado, só para chegar a sua vez e ter uma conversa ainda maior.
O Quero-lá-Saber é a atitude do condutor que numa fila de trânsito lento, não deixa nenhum outro carro entrar na sua faixa. Para quê ajudar o trânsito a movimentar-se um bocado melhor, quando, em vez disso, pode ganhar uma vantagem de 3 metros? Ou é ainda a disposição desse outro condutor que na autoestrada se aproxima dos outros carros na faixa da esquerda a 170 km à hora, a piscar os faróis para os obrigar a voltar à faixa do meio, embora os outros estejam a ultrapassar todos os carros que vão a 100 km à hora na faixa do meio. Ou do condutor que, na faixa do meio, a fazer 100 km à hora, está determinado a ir sempre nessa faixa todo o caminho até Lisboa. Isso é o Quero-lá-Saber.
Enfim, falemos então do tema da pontualidade. Confesso: a pontualidade em mim é patológica. Se for convidada para um almoço às 13h, tento sempre sair de casa de modo a estar perto do local do almoço às 12h55, para chegar à porta mesmo às 13h. Quando por acaso me atraso para qualquer coisa, fico literalmente agoniada. Já sei, é um exagero. Vivo em Portugal há suficiente tempo para perceber que vou sempre ser a primeira a chegar, e muitas vezes já me aconteceu ter de esperar 2, 3 ou 4 horas pelos outros convidados (ou médicos, dentistas, agentes imobiliários etc., etc., etc.). Mas os que chegam atrasadíssimos? Pois, para eles é tudo uma questão de Quero-lá-Saber.
A coisa mais estranha em tudo isto é que quase toda a gente se queixa imenso de todos os outros que praticam o Quero-lá-Saber, mas é capaz de passar a Querer-lá-Saber no momento seguinte. O Quero-lá-Saber é a mistura perfeita de falta de civismo e chico-espertismo. A única coisa que obtém é fazer abrandar tudo. Quebra sistemas, torna o trânsito mais lento, torna menos simpáticas muitas das trocas que temos de fazer no dia-a-dia, e irrita toda a gente. Toda a gente, e não só esta bifa rígida e fria que não entende a razão por que a maioria dos seus amigos e colegas, normalmente pessoas adoráveis, simpáticas e doces, são no entanto capazes de levar mais de 15 coisas a uma caixa de supermercado só para “15 coisas ou menos”, ou de estar sempre fabulosamente atrasados, ou de insistir em circular na faixa do meio na autoestrada.
Quero-lá-Saber: a mais estranha de todas as artes marciais.
(texto traduzido do original inglês pela autora)
The Portuguese Martial Art of Quero-lá-Saber
The other day, I was out with a friend in her car, and we were trying to find a parking space in a big car park. It was impossibly full and we really needed to get to a meeting. There was one parking space left. It was a parents and children and pregnant women parking space.
We were really in a hurry. We looked at each other. She looked at the parking space, shook her head and drove out of the car park. Five minutes later, we found a space elsewhere and were ten minutes late for our meeting (which, for a punctuality freak like me, is painful, but we’ll get to that).
There is nothing more calming for me than knowing that am out with someone who isn’t going to mortify me by breaking a small rule. I’m more likely to start dancing down the street than I am to break a small rule.
But this was an odd occurrence. Why? Well, my friend is Portuguese and for that moment, at least, she was not practising the very Portuguese martial art of Quero-lá-Saber. Quero-lá-Saber means “who cares? not me!”
Quero-lá-Saber is unlike most martial arts that are saved up for special occasions like defending yourself when in danger or making a movie. It is used every day in Portugal, by everyone. It manifests itself in your terrible punctuality (I will get to that in a minute), or parking the car wherever you fancy. It can be pushing past a person at a café counter because there is a gap of 50cm free and your coffee must come first.
You might be the one who disregards the ticketing system in the post office, because you’re not buying anything, you merely have a question to ask. You might walk briskly up to a zebra crossing, then slow right down to snail’s pace as you cross it, just to show the cars that you can. You might practise the speciality of being really grumpy in a queue for a train ticket because everyone ahead is taking so long having huge conversations with the cashier, then having a huge conversation with the cashier when its your turn.
Your thing might be edging forward just enough to not let someone into a traffic queue, because, hell, why help the traffic flow a bit more easily when, instead, you can give yourself a 3 metre advantage? Or are you the one who speeds towards the back of other cars in the fast lane at 170kph, flashing your lights at them to make them pull back into the middle lane, even though they are in the outside lane because they are overtaking all the cars doing 100kph in the middle lane? Or are you just one of those in the middle lane doing 100kph, determined to stay there all the way to Lisbon?
And now, let’s get to the punctuality thing. I admit, punctuality is a pathological condition of mine. If I get a lunch invitation for 1pm, I instinctively know exactly what time to leave my house to be near to the lunch at 1255 so that I can arrive at the door AT 1pm. If I am going to be late, even fifteen minutes late, I feel physically ill. I know, it’s a bit extreme. I have lived in Portugal long enough to know that I will always be the first to arrive, and have often waited for 2, 3 or 4 hours for the final guests (or doctor or dentist or bank manager or estate agent, etc. etc. etc) to arrive. And the late arrivals? A-Querer-lá-Saber.
The weird thing is that everyone complains about everyone else a-Querer-lá-Saber, whilst at the very same moment a-Querer-lá-Saber themselves. All that Quero-lá-Saber (a perfect mixture of incivility and wise-assery) really achieves is slowing things down. It breaks systems, it clogs up roads, makes potentially pleasant exchanges in public places unpleasant, and pisses everyone off. Everyone, and not just uptight Bifas who can’t understand why many of her friends and colleagues who are normally all lovely, kind, funny, sweet people are capable of taking more than 15 items through a 15 things or fewer till, or are fantastically late all the time, or drive in the middle lane.
Quero-lá-Saber. The weirdest martial art of them all.